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Pontos de vista

acervo pessoal

fev 28, 2022 | pontos de vista

O cinema de golpistas e o conforto de estar mal informado

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Pensa bem você aí, dois anos de pandemia: medo de pegar a doença, medo de transmitir a doença, medo de evoluir para um quadro grave, morre gente próxima a você, atividades diversas retornando e a escola de sua criança adiando o início das aulas presenciais, você desmarca aquele encontro do Tinder porque ficou com preguiça de faxinar a casa e sem grana para fazer um PCR.

Você acorda hoje, mais uma segunda-feira de carnaval sem carnaval, você liga sua JBL no último volume e da play num Araketu, emenda numa Timbalada e, mais devastado que Lady Gaga cancelando sua participação no Rock n´Rio de 2017, você grita da janela “eu falei faraó” esperando que algum vizinho lhe retribua com um “ê, faraó”.

Liga a televisão, o rádio, acessa seu site de confiança e lá está a notícia: guerra. Sons de guerra. Cores de guerra. Rostos de guerra e em guerra.

Pegando carona no gancho de Ana D´Angelo no Ponto de Vista da semana passada, encarar a realidade pode trazer sofrimento. Atire o primeiro unfollow quem nunca fechou os olhos para o óbvio, quem nunca optou por aquela cômoda alienação. Se você nunca trocou aquela pesquisa importante que estava lendo para derreter o cérebro assistindo a uma comédia romântica dos anos 90 com a Julia Roberts ou não desligou o podcast de notícias para stalkear uma sub-celebridade em suas redes sociais, você precisa descobrir um jeito de produzir serotonina com água e farinha.

Recentemente estreou na Netflix uma série baseada em fatos reais e um documentário, Inventando Anna e O Golpista do Tinder, respectivamente. As produções, com golpistas nos personagens principais, têm feito muito sucesso.

Não são as primeiras nem serão as últimas produções audiovisuais sobre o tema. Nesta lista é possível citar vários filmes, todos eles baseados em golpes reais: A Inventora: À Procura de Sangue no Vale do Silício, Fyre Festival: Fiasco no Caribe, Fake Art: Uma História Real, Prenda-me Se For Capaz, As Golpistas, Vips, O Lobo de Wall Street, O Golpista do Ano, Os Reis da Fraude.

Se você já assistiu a algum destes, certamente você teve aquela sensação de “mas como essa gente toda caiu nesse papo?”. Eu também me perguntei isso. Eu olhava para aquelas pessoas e me pareciam um meme pronto: “você pode me fazer de trouxa uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove vezes, mas cuidado, uma hora eu desperto”. Obviamente, na maioria dos casos, esse despertar vinha tarde demais.

Para além da lábia fenomenal dos golpistas e um padrão físico que, na maioria das vezes, é facilmente detectável – sobre o que podemos falar numa outra oportunidade – percebi, enquanto assistia a alguns destes filmes e séries que, em determinados estágios do golpe e para algumas vítimas, existe um esforço por negar o que vai se mostrando óbvio.

Logo nos primeiros minutos do documentário O Golpista do Tinder uma das vítimas diz: “As primeiras lembranças que eu tenho do amor são da Disney…A sensação de um príncipe vindo te salvar não sai de você.” Falar sobre como o patriarcado opera em nós, mulheres, essa insistente ideia do amor romântico e da necessidade de salvação também não é objeto deste texto, mas preciso destacar que isso aconteceu ali com aquelas vítimas.

Numa outra medida, consigo comparar com aqueles momentos em que você sabe que a relação sexo-afetiva já foi para as cucuias, mas se recusa a reconhecer os sinais óbvios porque encarar a realidade de uma ruptura dói.

Em Inventando Anna, as vítimas, durante algum tempo, obtiveram vantagens por relacionarem-se com a golpista: jantares, viagens, roupas de grife, muito conforto. E aqui deixo um alerta: cuidado taurinas!

Obviamente não existe aqui nenhuma intenção de culpabilizar as vítimas que tiveram como elemento principal para manifestação de suas vontades a enorme habilidade dos golpistas de arquitetarem uma falsa percepção da realidade. Daria também para falar sobre vícios de consentimento, mas, de novo, esse não é o objetivo deste texto.

E sobre o que tratam todas essas linhas? Eu digo com frequência que é impossível ser feliz estando bem informada. E se você ficou aqui até agora eu quero te contar uma história: sou mãe de uma menino de 8 anos e tive uma experiência de parto ruim. Nenhuma complicação comigo ou com ele, mas, com o tempo, eu fui entendendo e assumindo minha responsabilidade sobre algumas escolhas fantasiosas que fiz em relação a minha médica, ainda que ela tenha me dado todos os sinais de que a praia dela era a cirurgia cesariana.

Pois bem, filhotinho nos braços, volta para casa e puerpério que, resumidamente e muito comumente, é aquela sensação de que você precisa fazer as malas para fugir dali levando consigo o bebê que era o motivo de te fazer querer fazer as malas para fugir dali.

Um tempo depois, fiz um curso de Doula e tive oportunidade de levar informação confiável a algumas mulheres que, entendendo as opções, puderam tomar suas decisões.

Faço a piada para manter a personagem, mas a verdade é que não acredito em escolhas quando não há informação. A ignorância não vai nos proteger, ela apenas nos deixa num estado de apatia e nos livra do difícil porém importantíssimo exercício da autocrítica.

E sim, encarar a realidade é muitas vezes exaustivo e desanimador, mas sempre haverá Um Lugar Chamado Notting Hill para que você se desconecte do caos.

 

 

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Paula Campos

Advogada com experiência na gestão pública e em organizações da sociedade civil, nas áreas da cultura e infância.
Interessada nos impactos políticos relacionados ao uso de mídias sociais.

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