Enquanto autoridades correm para conter os efeitos da contaminação por metanol em bebidas adulteradas, a crise se tornou combustível para disputas políticas e narrativas falsas nas redes.
De acordo com boletim divulgado pelo Ministério da Saúde em 8 de outubro, o Brasil registrou 259 notificações de intoxicação por metanol associadas ao consumo de bebidas alcoólicas adulteradas. Vinte e quatro casos foram confirmados, outros 235 seguem em investigação e 145 suspeitas foram descartadas. São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul são os únicos estados com confirmações até o momento, sendo 20 em São Paulo, três no Paraná e um no Rio Grande do Sul. Entre os óbitos, cinco foram confirmados em São Paulo e outros 11 permanecem sob análise em diferentes estados.
A crise teve início em São Paulo e rapidamente se espalhou pelo noticiário e pelas redes sociais. Em poucos dias, o tema saiu dos grupos de mensagens para o centro do debate público, impulsionado por medo, incerteza e desinformação. Circulam nas redes vídeos e montagens com alegações falsas, como a de que lotes da Coca-Cola estariam contaminados com metanol ou de que beber leite ajudaria a combater a intoxicação, além de um deepfake simulando o Jornal Nacional anunciando dezenas de mortes.
Levantamento do Instituto Democracia em Xeque mostra que, entre 30 de setembro e 2 de outubro, o episódio foi rapidamente capturado pela polarização política. Perfis de direita passaram a atribuir o surto à suposta omissão do governo Lula, enquanto setores de esquerda responsabilizaram o governador Tarcísio de Freitas, cobrando transparência e ações de fiscalização.
A pesquisadora e coordenadora de projetos no NetLab/UFRJ, Nicole Sanchotene, explica que o fenômeno repete dinâmicas já vistas em outras crises recentes: “Situações como essa começam com pouca informação concreta, porque instituições e o jornalismo ainda estão investigando e tentando entender o que está acontecendo. O problema é que o tempo da internet é muito mais rápido do que o tempo da ciência e da apuração responsável. Essa diferença de ritmo abre espaço para ruídos, desinformação e pânico”, contextualizou.
Publicidade segmentada e opacidade das plataformas alimentam a desinformação
Após a reportagem da BBC News Brasil, publicada em 3 de outubro, revelar a venda ilegal de materiais usados na falsificação de bebidas alcoólicas em redes sociais, a Advocacia-Geral da União (AGU) determinou, no dia 05 de outubro, que a Meta, empresa responsável pelo Facebook e Instagram, remova conteúdos e grupos que promovem a venda ilegal de materiais usados na falsificação de bebidas alcoólicas, como lacres, tampas, rótulos e garrafas.
A AGU deu, ainda, 48 horas — prazo que findou no dia 07 de outubro — para que a empresa informasse as medidas adotadas e determinou a preservação de provas, incluindo registros de publicações e autores, sob pena de sanções judiciais e administrativas.
Segundo Nicole Sanchotene, o caso expõe um problema estrutural: a falta de transparência na publicidade digital. Como os anúncios são microssegmentados — ou seja, direcionados a públicos específicos com base em dados comportamentais —, a fiscalização se torna quase impossível. “As plataformas operam com um nível de opacidade que impede qualquer tipo de controle público sobre o que é veiculado”, afirma.
A pesquisadora explica que o baixo custo para veicular anúncios, o anonimato dos responsáveis e a opacidade das plataformas criam um ambiente propício à circulação de desinformação e conteúdos ilegais. Situações como essa já foram observadas em crises recentes, como durante as enchentes no Rio Grande do Sul e os boatos sobre a “taxação do Pix”, quando anúncios foram usados para espalhar falsidades e aplicar golpes.
Sem transparência e responsabilização das plataformas e anunciantes, reforça Sanchotene, a publicidade digital continuará sendo “um terreno fértil para a desinformação e práticas ilícitas”, finalizou.
Disputa política e enquadramento midiático
O levantamento do Instituto Democracia em Xeque (DX) mencionado no início da reportagem revelou ainda que nas redes, especialmente no Telegram, as narrativas conservadoras buscaram afastar qualquer responsabilização do governo estadual, enquanto responsabilizavam o governo federal e associavam o caso ao crime organizado. Já a narrativa progressista reforçou o contraste entre a ação do governo federal e a omissão do estadual, transformando dados de saúde pública em instrumento de cobrança política.
A imprensa, por sua vez, adotou um enquadramento humanizado e técnico, com relatos de vítimas famosas e anônimas, além de contextualização sobre os riscos do metanol e as investigações em curso. O levantamento destaca que parte da cobertura também projetou o caso em escala internacional, comparando-o a episódios semelhantes em países como Laos e Rússia, o que ajudou a reforçar a gravidade do risco para os consumidores.
Ainda segundo o Instituto, a mídia registrou a divergência entre declarações da Polícia Federal e do governo paulista: enquanto a PF afirmou “não descartar nenhuma hipótese de investigação”, o Executivo de São Paulo declarou de forma categórica “não haver envolvimento do PCC”, o que causou estranhamento entre jornalistas e analistas.
O estudo conclui que a crise do metanol acabou servindo de catalisador para disputas político-ideológicas, com a tragédia sendo convertida em arena de disputa narrativa, um fenômeno que, segundo o DX, reforça o papel das crises sanitárias como gatilho para a circulação de desinformação e polarização política.
Sanchotene observa que crises desse tipo têm uma dimensão política significativa: “de um lado, elas exigem respostas rápidas e coordenação por parte de governos e instituições, o que naturalmente coloca esses atores no centro do debate público. Ao mesmo tempo, são momentos em que as disputas de narrativa se desenrolam em tempo real e ganham grande visibilidade, abrindo espaço para narrativas que muitas vezes promovem interesses políticos ou econômicos específicos, nem sempre alinhados ao interesse coletivo”.
Para ela, quando o debate se afasta da dimensão sanitária e preventiva orientada por evidências, perde-se a capacidade coletiva de compreender o problema em sua complexidade e de mobilizar respostas efetivas.
Impactos econômicos da desinformação
A crise do metanol nas bebidas alcoólicas também teve efeitos diretos na economia de bares e restaurantes. Um levantamento da Palver, divulgado pela Folha de S.Paulo, mostrou que entre 30 de setembro e 4 de outubro milhares de mensagens com menções a “metanol” e “bebida falsa” circularam em grupos públicos de WhatsApp e Telegram, incluindo listas de bares supostamente interditados e alertas sobre marcas perigosas.
Cerca de 25% dessas mensagens estavam diretamente relacionadas às listas, enquanto outras associavam o caso ao PCC e a teorias conspiratórias sobre adulteração deliberada.
Segundo a análise, a desinformação se espalhou rapidamente devido a elementos que aumentam a credibilidade do conteúdo, como supostos vazamentos de listas de estabelecimentos conhecidos e mensagens acompanhadas de referências a pessoas de confiança, como familiares ou amigos policiais.
Esse efeito, associado ao caráter alarmante das mensagens e à proximidade com a rotina dos usuários são apontadas como as razões que teriam gerado a queda no consumo de determinados tipos de bebidas e redução de público em bares e restaurantes, provocando prejuízos econômicos.
Entretanto, no mesmo período, o Ministro da Saúde Alexandre Padilha, reforçou uma recomendação: a população deve evitar o consumo de bebidas destiladas em meio aos recentes casos de intoxicação por metanol, o que pode ter contribuído para o reforço ao efeito sobre o comportamento dos consumidores.
A Palver destacou ainda que a velocidade da propagação das mensagens dificultou a atuação do poder público, tornando mais lento o trabalho de comunicação e fiscalização. O Ministério da Saúde informou que vem adotando ações para esclarecer a população sobre riscos e medidas preventivas, mas o estudo evidencia que, na ausência de confiança consolidada e comunicação coordenada entre esferas municipal, estadual e federal, a desinformação tende a preencher rapidamente o vazio informacional, agravando impactos econômicos e sociais.
“Tudo isso reforça a importância de compreender a desinformação não apenas como um problema de comunicação, mas como um fenômeno social que afeta a forma como as pessoas percebem o mundo e tomam decisões”, pontua Sanchotene.
Como se proteger da desinformação
Em situações de crise sanitária, como a contaminação por metanol, é essencial diferenciar alertas legítimos de mensagens desinformativas. Segundo Nicole Sanchotene, “uma denúncia de risco tem base em informações verificadas por fontes institucionais reconhecidas, enquanto conteúdos desinformativos apelam para o medo e a urgência, sem referências claras”.
Estratégias simples podem ajudar o público a checar informações: buscar boletins oficiais do Ministério da Saúde, conferir notícias em veículos confiáveis e desconfiar de mensagens alarmistas que circulam apenas em grupos fechados ou que prometem ganhos financeiros.
A especialista destaca ainda que a comunicação contínua do poder público, com divulgação de dados e medidas de resposta, não apenas orienta a população, mas também funciona como referência segura para verificar outras informações encontradas online, reduzindo pânico e incerteza.
O que é o metanol e por que a crise aconteceu
As investigações indicam que o surto de intoxicações por metanol em 2025 está ligado ao consumo de bebidas destiladas adulteradas, como gin, uísque e vodca, uma prática ilegal.
De acordo com a Anvisa e o Ministério da Saúde, o metanol é um álcool altamente tóxico, usado na indústria química para produzir solventes, combustíveis e adesivos. Embora se pareça com o etanol, não pode ser ingerido: pequenas quantidades já podem causar cegueira irreversível ou morte.
Os sintomas de intoxicação surgem entre 12 e 24 horas após a ingestão, incluindo alterações visuais, náuseas, vômitos, dor abdominal e confusão mental. Em caso de suspeita, o Ministério da Saúde orienta buscar atendimento médico imediato.
Em entrevista coletiva, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, revelou que a principal hipótese é que produtores clandestinos tenham usado etanol de baixa qualidade, já contaminado com metanol, para aumentar o volume das bebidas.
Outra possibilidade levantada inicialmente foi a de que o metanol tenha sido empregado na higienização de garrafas reaproveitadas, antes do envasamento irregular, tese já descartada pelo Instituto de Criminalística (IC/SP), já que as amostras analisadas apresentavam altas concentrações de metanol puro, o que indica que a substância foi adicionada, e não resultado de uma destilação malfeita.
A Polícia Federal ainda investiga se há conexão com o crime organizado ou com adulterações importadas. Até o dia 6 de outubro, 20 pessoas tinham sido presas em São Paulo, e o governo estadual havia realizado 60 operações contra fábricas ilegais.