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Qual o cenário de regulação sobre IA na América Latina?

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Embora a regulação de IA ainda seja incipiente mundo afora, vários países da América Latina já debatem o tema em suas casas legislativas. A organização internacional Access Now mapeou as propostas para regular IA em oito países (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Peru, México e Uruguai) com o objetivo de “orientar os envolvidos nessas iniciativas a compreender as diferentes tendências regulatórias e políticas”.

De acordo com o relatório “Regulatory Mapping on Artificial Intelligence in Latin America”, a maioria dos países propõe regulações inspiradas ou semelhantes ao Artificial Intelligence Act (AI Act) da União Europeia. “Alguns países, como Argentina e Brasil, têm iniciativas que propõem regulações para a IA em relação a certos temas ou contextos específicos, além de propostas que oferecem uma regulamentação geral da disciplina. Outros países, como Chile, Costa Rica e Colômbia, propuseram a criação de autoridades especializadas para supervisionar e monitorar a implementação e o desenvolvimento dessas tecnologias”, analisa o documento.

A pesquisa foi desenvolvida em 2023, portanto, não abarca proposições deste ano nem atualiza o andamento das propostas no âmbito legislativo. Veja os projetos de lei mapeados:

Argentina

O país possui alguns projetos de lei tramitando nas casas legislativas nacionais. O Access now destaca, por exemplo: 

  • Projeto de Lei 2505-D-2023: “Marco Legal para a Regulamentação do Desenvolvimento e Uso da Inteligência Artificial”: foca na proteção de princípios fundamentais, como respeito à dignidade humana, privacidade, transparência, responsabilidade e equidade, proibindo o uso da IA para fins ilegais, discriminatórios, maliciosos ou que infrinjam direitos humanos.
  • Projeto de Lei nº 1472-D-202: Alteração Proposta à Lei de Ciência, Tecnologia e Inovação nº 25.467: o objetivo é promover a incorporação de sistemas de IA e, para isso, propõe promover seu desenvolvimento, criação e aplicação com base em princípios e valores éticos.
  • Projeto de Lei nº 3161-D-2023: Criação do “Conselho Federal de Inteligência Artificial”: propõe “uma estrutura hierárquica e democrática” para garantir, promover e fortalecer o potencial da Argentina no campo da IA. A principal tarefa seria incentivar “pesquisa, estudo, conscientização, sensibilização e disseminação de informações relacionadas à IA” e atuar como um órgão consultivo interjurisdicional sobre essas questões
  • Projeto de Lei nº 1472-D-2023: “Regulamentação e Uso da Inteligência Artificial na Educação”: busca “garantir que a IA seja uma ferramenta benéfica e segura no ambiente educacional”. Ele visa estabelecer regulamentações e diretrizes para o desenvolvimento e uso da IA no campo educacional, que seriam aplicáveis a todas as instituições e organizações educacionais. 

O relatório analisa também algumas questões consideradas falhas nos projetos. De acordo com a pesquisa, a primeira proposta não consegue estabelecer proibições sobre certos usos, além de dar espaço para a redução de padrões de direitos humanos. As outras propostas, argumenta a organização, falham em deixar claro alguns aspectos práticos do projeto e da sua própria contribuição para o escopo regulatório argentino.

Chile

Há pelo menos cinco projetos de lei relacionados à regulação de IA tramitando no Chile. No entanto, pontua o relatório da Access Now, a maioria das propostas se referem a questões criminais para penalizar o uso inadequado dessas ferramentas. Apenas o projeto identificado no boletim 15869-19 busca regular a IA de forma mais geral, com o intuito de estabelecer um marco legal para o desenvolvimento, comercialização, distribuição e uso da tecnologia no país.

De acordo com o relatório, a proposta parece ter certa influência do AI Act da União Europeia, principalmente pela classificação dos riscos dos sistemas de IA. No entanto, essa avaliação é criticada pela organização: “A redação dos artigos é vaga e insuficientemente precisa para garantir uma proteção adequada dos direitos fundamentais dos cidadãos chilenos no contexto da implementação de sistemas baseados em IA. Por exemplo, as autoridades têm considerável margem de manobra para definir quando as exceções contidas na parte final do artigo serão aplicadas. Isso pode, especialmente, legitimar o uso de tecnologias como o reconhecimento facial remoto em espaços públicos para fins de prevenção, o que tem sido identificado como um mecanismo desproporcional em relação aos seus objetivos e à violação dos direitos básicos dos cidadãos em jurisdições da América Latina”, coloca a Access Now.

Colômbia

A Colômbia possui um projeto de lei apresentado ao Senado (PL 059 de 2023) que tem o objetivo de estabelecer diretrizes para o desenvolvimento, uso e implementação de sistemas de inteligência artificial. A proposta traz princípios como autoridade humana, bem comum, design seguro, primazia da inteligência humana e pesquisa preventiva, e também propõe a criação da Comissão para o Tratamento de Dados e Desenvolvimentos com Inteligência Artificial (CTDDIA).

No entanto, a Access Now destaca a necessidade de maior elaboração em algumas medidas propostas pelo projeto de lei, como questões relacionada à segurança e risco, discriminação e uso de IA para fins bélicos. De acordo com a entidade, algumas definições são vagas no texto, o que dá margem para interpretações amplas.

“Em termos gerais, o projeto de lei analisado apresenta uma série de abordagens comuns a muitos projetos de lei apresentados na região, com uma estrutura relativamente restrita, talvez com a intenção de permitir que o regulador elabore aspectos técnicos ao desenvolver a futura regulamentação da lei. Sendo assim, acreditamos que o projeto de lei pode servir como um ponto de partida para um sério debate multi-setorial sobre a necessidade de uma lei específica para regular as tecnologias de IA e, nesse caso, para que se desenvolvam suas disposições de forma mais robusta”, analisa a organização.

Costa Rica

A Costa Rica possui dois projetos de lei protocolados em 2023 e que ainda estão em estágios iniciais de tramitação e um Decreto Executivo proposto para regulamentar o uso de IA no setor de saúde.

  • Projeto de lei número 23.771, sobre a Regulamentação da Inteligência Artificial: o projeto foi redigido inteiramente pelo ChatGPT, com base em um comando dado pelos deputados que o propuseram. O comando foi o seguinte: “Pense como um advogado e consultor legislativo, use vocabulário técnico e gere uma proposta de lei para regulamentar a inteligência artificial, levando em consideração a Constituição de 1949 da Costa Rica. Apenas pergunte sempre que tiver dúvidas”. A proposição prevê alguns princípios como justiça, responsabilidade, transparência e privacidade, mas não regulamenta como serão garantidos na prática.
    • “O projeto de lei é um exemplo dos resultados insatisfatórios que podem ser obtidos se a IA for entendida como uma ferramenta que pode substituir pessoas em todos os casos. Portanto, sem diálogo com as partes interessadas relevantes que possam fornecer suas recomendações e sugestões de melhoria, esse mecanismo é insuficiente para garantir o respeito aos direitos fundamentais”, analisa a Access Now.
  • Projeto de Lei nº 23.919, “Lei para a Promoção Responsável da Inteligência Artificial na Costa Rica”: o projeto busca promover o uso, pesquisa, design, desenvolvimento, implementação e aplicação da IA “de acordo com os princípios de ética, responsabilidade, dignidade humana, igualdade, equidade e transparência”. A proposta é extensa e detalhada, estabelece princípios e cria a “Comissão Interinstitucional para o Desenvolvimento da Inteligência Artificial”. Além disso, foca em sistemas de “interesse público” ou “alto risco”, que terão que atender a certos requisitos pré-implantação. Inova ao trazer propostas para espaços de testes controlados e “protótipos regulatórios”.

Peru

O Peru é o único país da América Latina que tem uma regulação sobre IA. Em julho de 2023 foi publicada a Lei nº 31814 que se propõe “promover a utilização da inteligência artificial no âmbito do processo de transformação digital nacional, priorizando a pessoa e o respeito pelos direitos humanos, a fim de promover o desenvolvimento económico e social do país, num ambiente seguro que garante a sua utilização ética, sustentável, transparente, replicável e responsável”.

Para isso, a legislação prevê diretrizes para o desenvolvimento de IA a partir de critérios como análise de riscos, da pluralidade de participantes e privacidade dos usuários. A regulação também designa a Secretaria de Governo e Transformação Digital (SGTD) para supervisionar o uso e desenvolvimento da IA, com a tarefa de promover e incentivar sua adoção. 

De acordo com o relatório, além dessa lei também foram apresentadas outras propostas para regulamentar o uso da IA em setores específicos, como por exemplo o Projeto de Lei nº 5763-2023-CR, que propõe “uma Lei de Reforma Constitucional para estabelecer a IA como um dos princípios da administração da justiça e busca que tanto o Judiciário quanto o Ministério Público adotem o uso de tecnologias baseadas em IA para a resolução de processos judiciais e como uma ferramenta de suporte técnico nos procedimentos realizados pelas partes durante seus julgamentos”.

México

No México, há um projeto de lei que busca criar uma base para regulamentação do uso de IA. A proposição apresenta seis objetivos amplos, como “promover a criação de normas oficiais mexicanas, baseadas em princípios éticos” e “regular e governar o uso de inteligência artificial (IA) e robótica”.  A proposta também estabelece o Conselho Mexicano de Ética para Inteligência Artificial e Robótica (CMETIAR) e cria a Rede Nacional Estatística para o uso e monitoramento de Inteligência Artificial e Robótica.

O CMETIAR, explica o relatório, não será uma autoridade de fiscalização, mas sim um órgão formado por cidadãos mexicanos com expertise técnica na área com o intuito de gerar recomendações e regulamentações específicas para alinhar as políticas mexicanas aos usos de sistemas baseados em IA considerados éticos e responsáveis. 

“Além deste projeto de lei, há outras iniciativas que buscam reformar leis existentes que indiretamente contêm certas regulamentações ou disposições relacionadas à inteligência artificial. Existem duas iniciativas no México para reformar a Lei Geral de Saúde para a implementação e regulamentação da inteligência artificial na prestação de serviços de saúde. Ambas foram encaminhadas para a Comissão relevante para revisão, mas, como em outros casos, não serão examinadas aqui porque merecem uma abordagem separada”, acrescenta a Access Now.

Uruguai

No Uruguai, a proposta legislativa enfatiza a rotulagem digital obrigatória de sistemas e aplicações que utilizam inteligência artificial. De acordo com o relatório, o objetivo central do projeto é proporcionar aos usuários a capacidade de saber quando o conteúdo foi modificado ou criado por meio de inteligência artificial por meio de rótulos. Além disso, o PL prevê expressamente a possibilidade de implantação de “sistemas de reconhecimento de emoções ou um sistema de categorização biométrica” , tema que vem causando preocupação em organizações de todo o mundo, inclusive no Brasil.

E o Brasil?

O Brasil é o país que possui mais propostas legislativas para regular a inteligência artificial. O relatório da Access Now pontua cinco projetos de lei protocolados no Congresso, entre eles o que está efetivamente em pauta e é discutido no Senado Federal, no âmbito da Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial no Brasil, é o PL 2338. O projeto, que já chegou em vias de ser votado na comissão algumas vezes, vem sofrendo forte pressão da indústria. Veja os PLs mapeados:

  • Projeto de Lei nº. 5.691 de 2019: O projeto visa estabelecer uma Política Nacional de IA e promover um ambiente favorável ao desenvolvimento dessas tecnologias no Brasil, estabelecendo princípios e diretrizes. O projeto tramita em conjunto com o PL 2338 na Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial.
    • “Em geral, essa iniciativa repete, sem maior elaboração, os elementos considerados necessários para uma regulamentação baseada em princípios éticos. Conforme já mencionado neste relatório, essa abordagem não é suficiente para estabelecer uma regulamentação que garanta os direitos fundamentais”, analisa o relatório.
  • Projeto de Lei nº 5.051 de 2019: Também estabelece princípios para o uso de IA no Brasil com base na premissa de que a IA deve estar a serviço do bem-estar dos seres humanos e inclui considerações sobre o impacto da IA no mercado de trabalho e no emprego. O projeto tramita em conjunto com o PL 2338 na Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial.
    • “Em termos gerais, este projeto de lei, assim como o anterior, é breve, e seus artigos são essencialmente um resumo de aspectos éticos ou desejáveis, em vez de uma regulamentação específica sobre o controle ou requisitos que poderiam ser criados em torno da IA”, analisa o relatório.
  • Projeto de Lei nº 21 de 2020: Define um conceito para inteligência artificial, cria princípios para o desenvolvimento da IA no Brasil como não-discriminação e busca pela neutralidade, e requer que o desenvolvimento respeite a LGPD. Também estabelece como princípio o incentivo à auto-regulação. Está atualmente parado na Câmara dos Deputados.
    • “O Access Now considera o risco para os direitos fundamentais representado pela delegação da regulamentação aos próprios stakeholders envolvidos no design, desenvolvimento e implantação dessas tecnologias (…) Deixar o processo regulatório nas mãos dos stakeholders do ecossistema de IA equivale a delegar a confiança necessária para proteger e garantir os direitos fundamentais àqueles que devem ser objeto dessa regulamentação”, analisa o relatório.
  • Projeto de Lei nº 872 de 2021: Determina que os sistemas de IA devem respeitar os direitos humanos, a ética, os valores democráticos, a diversidade, a privacidade e os dados pessoais, além de serem transparentes, confiáveis e seguros, e garantir a intervenção humana quando necessário. O projeto tramita em conjunto com o PL 2338 na Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial.
    • “A proposta é semelhante às leis anteriores e até repetitiva”, diz o relatório.
  • Projeto de Lei nº 2338 de 2023:  Estabelece regras gerais para o desenvolvimento, implantação e uso responsável de sistemas de IA. Define uma abordagem regulatória baseada na classificação de risco dos sistemas de IA e na criação de um registro público. O projeto tramita na Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial.
    • “Pode-se afirmar que o Projeto de Lei No. 2.338, resultado de discussões mais aprofundadas, é o mais importante e provavelmente será tomado como ponto de partida para futuras discussões sobre o tema no Brasil”.

Além dos projetos de lei para regulação de IA ao redor da América Latina, o relatório também mapeia as estratégias nacionais de cada país, em são expostas as expectativas e prioridades para o desenvolvimento e implementação de tecnologias de IA. No Brasil, por exemplo, recentemente foi lançado o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial – que não é elencado no relatório por ser de 2024.

Recentemente outro país latinoamericano entrou no rol dos que possuem propostas de regulação para o uso de IA. Em junho deste ano – o relatório só abarca propostas até dezembro de 2023 -, a integrante da Assembleia Nacional do Equador, Patricia Núñez, apresentou um projeto de lei para criar regras que lidem com o impacto da IA nos direitos fundamentais dos cidadãos, na diversidade e coesão social do país. A proposta é baseada em riscos, como acontece no projeto brasileiro e no europeu.

“O impulso para a regulamentação da IA na América Latina está em andamento. Isso é evidenciado pela existência de múltiplos projetos de lei, estratégias nacionais e pela produção prolífica de documentos de soft law e projetos de governança. É previsível que, nos próximos anos, esses esforços se intensifiquem, tornando necessário manter o foco nos direitos humanos no desenvolvimento das políticas públicas sobre IA. Os benefícios que as tecnologias de IA podem oferecer à sociedade não justificam a desconsideração desse conjunto de regras fundamentais ou a legitimação de danos aos indivíduos”, conclui a Access Now.

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