A ´denúncia´ feita por uma diretora de escola do Rio Grande Sul, no seu perfil do Instagram, sobre cenas de sexo explícito contidas no livro “O Avesso da Pele”, escolhido pelo Programa Nacional do Livro, espalhou como pólvora. Após a diretora pedir censura ao livro, que trata do racismo e é vencedor do Prêmio Jabuti de 2021, medidas restritivas à circulação do mesmo foram tomadas no Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul.
Somente o fato de a diretora ter retirado um trecho de uma obra literária (e jogado nas redes), fora do seu contexto, já se configuraria um caso de desinformação. Mas existem outras camadas que levaram à censura da literatura em plena democracia e elas estão longe de serem resolvidas.
O tema da educação e as expressões artísticas em geral são alvos frequentes de informações falsas, propagadas por representantes da extrema direita há, pelo menos, 10 anos, segundo a pesquisadora Magali Cunha, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER) na área de Religião e Política e fundadora do coletivo Bereia.
Escola sem partido, mamadeira de piroca, kit gay, ideologia de gênero são alguns clássicos da desinformação da extrema direita que vêm sendo utilizados para radicalizar cidadãos e convencê-los de que toda a diversidade e a diferença representam “um inimigo a ser combatido”.
Não é uma tática exclusiva do Brasil, mas de um momento político em que temas culturais são matéria-prima na engrenagem desinformativa. E não sem auxílio das big tech. O modelo de negócios das redes sociais favorece as urgências, absurdos e denúncias não fundamentadas. É na economia da atenção que postagens desinformativas ganham uma velocidade de disseminação feroz, como a que ocorreu com o livro de Jeferson Tenório.
Nos momentos eleitorais, determinados temas ganham ainda mais relevância e podem ser canalizados para os propósitos políticos. Segundo Magali Cunha, o tema da educação está presente em contextos eleitorais desde 2020 e promete voltar a todo vapor este ano, quando vamos eleger prefeitos e vereadores.
Os monitoramentos do Bereia indicaram que no momento da Conferência Nacional de Educação, em janeiro de 2024, voltaram a circular as teses conspiracionistas sobre doutrinação marxista, comunista e de gênero nas escolas brasileiras. A campanha desinformativa estimulava, ainda, a barrar currículos, processar sindicatos e docentes, com forte apelo à censura de material didático.
“Estamos identificando que o pânico em torno da educação será o grande tema das eleições municipais este ano”, afirma Magali Cunha, que identifica três eixos principais da desinformação em perfis de candidatos com identidade religiosa desde as eleições de 2020: ideologia de gênero, pânico em torno da educação e cristofobia.
Onda conservadora favorece censura em plena democracia
Num viés complementar, a censura a expressões artísticas – onde também se enquadra o episódio de “O Avesso da Pele” – pode ser entendida como sintoma do legado autoritário brasileiro. Entre junho de 2017 e final de 2022, a pesquisadora Fernanda Sanglard, professora de Pós-Graduação em Comunicação da PUC Minas, chegou a 89 casos emblemáticos de censura às artes.
Estes episódios se enquadram em três critérios estabelecidos por Sanglard e seus pares na pesquisa sobre censura e autoritarismo: foram alvo de ação conservadora de julgamento ou criminalização da arte; tiveram repercussão nacional na mídia mainstream; envolveram reação e/ou mobilização em defesa das manifestações artísticas. O artigo da pesquisadora, com parte dos achados, está publicado no Latin American Research View da Universidade de Cambridge.
A partir da utilização de métodos mistos, que envolveram coleta de dados em plataformas de mídias sociais (como Facebook, Instagram e Twitter), monitoramento de mídia jornalística e análise de conteúdo, Sanglard criou um banco de dados com os casos.
Seria estranho pensar em censura em plena democracia, mas o que a pesquisadora aponta é que o autoritarismo – mola propulsora para a censura – pode sim conviver com a democracia, ainda que de modo conflituoso. E esta coexistência é característica da onda conservadora que muitos pesquisadores apontam estarmos imersos.
Suas características passam por tentativas de criar polarização política, estimular o embate entre grupos que se opõem, desacreditar a ciência e os pesquisadores, limitar a liberdade de expressão, atacar o jornalismo, censurar os costumes, reprimir performances e produtos culturais que não dialoguem com os interesses dos grupos que estão no poder, estimular expressões de ódio, ataques e atos de intolerância orquestrados na internet.
Ainda que a atuação de grupos conservadores contrários à livre expressão artística e adeptos à prática de censura no país não seja nova, Fernanda Sanglard entende que a organização dos ataques online inaugura um novo momento, contribui com a circulação de desinformação e promove verdadeira destruição de reputações, um modelo sustentado pela atuação em plataformas de mídias sociais.