“Existe um ditado que é ‘o saber morre com o seu dono’, mas saber que morre com o dono não é saber. O saber, a gente tem que deixar aqui em cima, pra alguém pegar esse saber, aumentar esse saber e levar mais adiante. Por que ele vai morrer na gente? Se esgotar na gente?”
Foi com essa fala de Makota Valdina, exibida logo nas primeiras horas da WikiCon Brasil 2025, que o evento arrematou a atenção do público presente. A fala ecoou na voz do professor Nelson Pretto, durante a mesa Bens públicos digitais e liberdade na internet, e veio de um registro em vídeo do projeto Memória da Educação na Bahia, que se propõe a resgatar a história de vida de educadores baianos e disponibiliza esses depoimentos para uso aberto.
A educadora, yalorixá e ativista baiana, falecida em 2019, falava sobre a circularidade do saber, sobre o conhecimento que se constrói para ser partilhado, que se expande ao se espalhar, que só vive se for coletivo.
Ali, naquela escuta atenta de dezenas de pessoas reunidas em Salvador para pensar o presente e o futuro do movimento Wikimedia no Brasil, ficou claro o quanto aquele trecho poderia muito bem ser um manifesto não escrito da comunidade wiki.
A proposta de conhecimento livre – que sustenta o trabalho da Wikimedia e de tantos outros projetos de base comunitária, como os de software livre, ciência aberta e cultura digital colaborativa – encontrou naquela fala de Makota Valdina uma síntese poderosa: o saber precisa circular para que continue vivo. É um princípio ancestral, que atravessa tradições indígenas, quilombolas e de religiões de matriz africana, mas que também pulsa nas entranhas do digital quando este se abre à colaboração e à partilha.
O que é a WikiCon 2025 e quem é a comunidade wiki?
Organizada pelo Wikimedia Brasil, a WikiCon é a principal conferência dedicada à comunidade wikimedista brasileira. Mais do que um encontro de atualização e articulação, o evento é um espaço de celebração, troca de experiências e fortalecimento coletivo de quem constrói, no dia a dia, os projetos de conhecimento livre mais acessados do mundo, como a Wikipédia, o Wikidata e o Wikimedia Commons.
Ao longo dos dias 19 e 20 de julho, a WikiCon Brasil 2025 reuniu dezenas de atividades que refletiam tanto os temas estruturantes da internet quanto as especificidades do movimento Wikimedia. Entre oficinas, mesas, editatonas (como são chamadas as maratonas de edição) e encontros mais técnicos, o evento combinou o rigor do debate com momentos de troca sensível e experiências que podem ser caracterizadas como poéticas.
A programação contou com painéis sobre governança da internet, difusão científica, diversidade e educação. Também houve mesas voltadas à própria estruturação do movimento Wikimedia no Brasil, como pensar sua governança, os desafios dos direitos autorais, os caminhos possíveis para financiamento e a importância dos dados abertos e da colaboração.
A edição de 2025 marcou um novo capítulo para o movimento no Brasil. Isso porque, em dezembro de 2024, o Wiki Movimento Brasil foi reconhecido oficialmente como o capítulo nacional da Wikimedia Foundation. Desde fevereiro deste ano, passou a se chamar Wikimedia Brasil – tornando-se uma das organizações que apoiam a comunidade global de colaboradores da Wikimédia, ao lado de capítulos em outros países, grupos temáticos e grupos de usuários espalhados pelo mundo.
Mas o que é, afinal, esse movimento?
Fabiana Dias, gestora de comunidades da Wikimedia no Brasil, explica que esse é um movimento diverso, mas unido pelo espírito de colaboração para a construção e divulgação do conhecimento livre. “Essa busca pelo conhecimento livre é o que nos une enquanto comunidade”, disse.
O movimento nasceu a partir da comunidade da Wikipédia e se expandiu para outros projetos livres que operam de forma colaborativa e aberta, sustentados por um grande ecossistema de voluntários, programadores, educadores e defensores do software e da cultura livre. Mais do que um conjunto de plataformas, trata-se de um modo de existir na internet que se baseia na partilha e no cuidado com a integridade da informação.
Foi essa cultura que se revelou com força na WikiCon 2025. Entre uma mesa e outra, ou nos intervalos do café, ficou evidente o desejo de pertencimento e de construção conjunta. De agremiar-se não por hierarquia ou autoridade, mas por afinidade de propósitos: colaborar, aprender e devolver ao mundo o que se sabe.
Acolhimento como prática política e pedagógica
Conversas com integrantes da organização e da comunidade revelaram o quanto o acolhimento é central para garantir a permanência de novas pessoas, mas também para consolidar um ambiente que promova a integridade da informação. Fabiana também chamou atenção para o desafio da retenção de novos editores, especialmente aqueles que chegam de forma espontânea e não contam, de início, com apoio para compreender as regras da enciclopédia.
“Se a pessoa publica algo que não está de acordo com as diretrizes e não entende por que a edição foi revertida, ela pode se frustrar e desistir”, apontou. Por isso, campanhas, oficinas e tutoriais são formas de oferecer apoio técnico, mas também de praticar uma escuta ativa que acolhe as dúvidas e amplia saberes.
Essa prática cotidiana de escuta e orientação se relaciona diretamente com a integridade da informação e o combate à desinformação, temas que atravessaram diversas conversas ao longo da conferência.
A presidente da Wikimedia Brasil, Érica Azzellini, reforça essa dimensão política do cuidado e do encontro do movimento, que se traduz também na conferência. Segundo ela, o que começou como um evento de reconhecimento mútuo em 2022, hoje amadureceu como espaço de construção identitária e compromisso ético.
“Estar na Wikimedia é estar presente numa política. Não é uma política partidária, mas uma prática de busca por consenso, baseada na neutralidade e em fontes confiáveis”, disse Érica Azzellini.
O que conduziu até o tema da Wikicon 2025
“Bens públicos digitais” foi o grande tema que guiou a WikiCon Brasil 2025. O foco da edição foi escolhido pela própria comunidade, em um processo que refletiu não só os interesses internos do movimento, mas também o contexto político e tecnológico do momento.
O que são bens públicos digitais?
“São bens públicos na forma de softwares, conjuntos de dados, modelos de inteligência artificial, padrões técnicos ou conteúdos. Em geral, são obras culturais livres ou com licenças mais restritivas, tal como conteúdo não comercial, com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento digital sustentável em níveis nacional e internacional.” definição disponível na Wikipédia.
Nas falas, nas oficinas e nos corredores, ficou claro o que motivou essa escolha: a urgência de proteger e fortalecer o conhecimento livre diante da crescente concentração de poder nas mãos das grandes plataformas digitais. A pauta dos bens públicos digitais dialoga diretamente com esse desafio.
O contexto não poderia ser mais oportuno, pois a própria Wikipédia, projeto central do ecossistema Wikimedia, foi oficialmente reconhecida em fevereiro como um bem público digital pela Aliança para Bens Públicos Digitais (ABPD), iniciativa apoiada pelo Secretário-Geral da ONU. O reconhecimento, além de simbólico, é estratégico: reforça o papel da enciclopédia como um recurso de interesse coletivo, que deve ser protegido e mantido por e para as pessoas.
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a responsabilidade das plataformas e as discussões em curso sobre regulamentação de plataformas foram lembradas durante o evento como exemplos de como o ambiente legal brasileiro impacta diretamente projetos do movimento Wikimedia e, por consequência, toda a lógica de produção e circulação de saberes na internet. A WikiCon 2025, nesse sentido, foi também um espaço de análise crítica e engajamento político em torno de temas que definem o futuro da rede.
Relato: A pluralidade da comunidade – rostos e causas
Circular pelos espaços da WikiCon 2025 foi como caminhar por um mosaico de rostos, sotaques, bandeiras e histórias de vida. Há quem venha da academia e quem venha de organizações da sociedade civil. Quem chegou por militância política, por paixão por tecnologia, por compromisso com a educação – ou por uma vontade genuína de transformar a internet.
Dialogando com a Fabiana Dias questionei sobre o desafio de construir um movimento que se propõe diverso em um país como o nosso, de dimensões continentais e marcado por profundas desigualdades raciais, sociais e de acesso à informação.
Ela reconhece que é um trabalho em constante construção, mas que tem avançado por meio de várias frentes, inclusive pelas afinidades temáticas que aproximam as pessoas. “Fazemos parcerias diversas com museus, universidades, escolas, centros comunitários, para que elas construam esse conhecimento junto conosco”, me contou. É também por essas pontes que novas pessoas chegam, muitas vezes a partir de um projeto específico, e acabam ficando. Viram editoras, multiplicadoras, construtoras.
A comunidade brasileira tem se engajado principalmente em quatro frentes: a própria Wikipédia; o Wikimedia Commons, que é um repositório multimídia colaborativo; a Wikiversidade, voltada para projetos educacionais e partilhas de aprendizagem; e o Wikidata, um banco de dados estruturado e aberto. Além disso, realiza concursos e campanhas como o Wiki Loves Monuments, o Wiki Loves Cultura Popular e o Wiki Loves Estados – que desde 2021 seleciona regiões subrepresentadas para ampliar conteúdos sobre seus contextos. A última edição teve o Maranhão como tema.

Entre as histórias que ouvi, a de Danilo Moura me chamou atenção. Ele é coordenador do Centro Palmares e co-criador do projeto Afropédia. A iniciativa nasceu de uma inquietação: como figuras centrais da história negra brasileira e mundial seguiam invisíveis na maior enciclopédia do mundo?
“A ausência negra é um elemento que precisa ser combatido em uma enciclopédia que se tornou referência de busca no mundo. O conhecimento livre, para nós, é um importante espaço a se disputar e construir junto”, me disse. Danilo contou que os primeiros verbetes que tentou publicar foram rejeitados, o que o levou a se aproximar da comunidade, entender as diretrizes, e iniciar um trabalho profundo de construção conjunta com o movimento.
Já Edilson Vinente, servidor público do município de Óbidos, no Pará, começou sua trajetória na Wikipédia criando verbetes sobre objetos cotidianos que tinha em casa. “Foi uma maneira que eu encontrei de transformar aquelas coisas do meu cotidiano em algo que pudesse ser útil para outras pessoas e sentir que estou construindo algo, que sou parte de algo. É muito estimulante.” Para ele, a Wikipédia também é uma ferramenta de memória local, um arquivo vivo das tradições e histórias de sua região. Participar da WikiCon, contou, foi uma forma de renovar o compromisso com uma internet mais plural e inclusiva.
Conheci e conversei também com o Pedro Terres, historiador e mestrando na Unicamp, que começou a editar a enciclopédia como parte de um projeto de extensão durante a graduação. A proposta era simples: traduzir o conhecimento acadêmico em verbetes acessíveis a qualquer pessoa com conexão à internet. “Eu vejo isso como um dever do universitário, sobretudo de universidade pública. Estar na Wiki é devolver para a sociedade o acesso que tive.”
Para ele, estar na conferência é estar em rede, no sentido mais literal e afetivo da palavra. “Somos pessoas que editamos sozinhas nas nossas casas, mas precisamos umas das outras. Precisamos construir juntos.”
História oral e os limites da validação do conhecimento
Embora o engajamento coletivo na construção de informação livre seja potente, ele também revela tensões que precisam ser enfrentadas. Ampliar a presença de saberes diversos na internet passa por desafios como a validação do conhecimento tradicional. Foi o que me contou Geisa Silva – comunicadora, educadora popular e referência no movimento software livre – ao compartilhar sua trajetória no universo wiki.
Em 2014, quando participou da sua primeira editatona das minas, em São Paulo, Geisa vem levando o conhecimento livre a jovens das periferias de Salvador, especialmente mulheres, aproximando a linguagem da Wikipédia da educação popular.
Foi nesse contexto que criou o verbete de Maria Felipa, mulher negra baiana símbolo da resistência à ocupação portuguesa. A motivação veio das memórias orais de sua infância, mas ela enfrentou um desafio comum no movimento: transformar saberes tradicionais em conteúdos aceitos pela enciclopédia, que exige fontes verificáveis e reconhecidas.
Esse tipo de impasse, segundo ela, é conhecido por comunidades da América Latina que reivindicam a oralidade como forma legítima de produção e transmissão de conhecimento, sobretudo frente a séculos de apagamentos sistemáticos provocados pela colonização. A Wikimedia Brasil reconhece a importância dessa reflexão e tem como um de seus eixos estratégicos promover a equidade do conhecimento.
A organização explicou que busca apoiar comunidades e saberes marginalizados por meio de ações como o Wiki Loves Estados, que valoriza, também, histórias orais. Ainda assim, o desafio permanece: equilibrar a abertura a formatos diversos com o rigor necessário para combater a desinformação. Um dos caminhos apontados pela Wikimedia é incentivar o registro acadêmico dessas narrativas, o que pode ajudar a atender aos critérios da enciclopédia e ampliar a presença de outros modos de saber.
Geisa não propõe abrir mão dos critérios de integridade, mas sim um aprofundamento coletivo das diretrizes, com sensibilidade para lidar com os contextos históricos e sociais de cada verbete.

A discussão sobre quem decide o que é saber legítimo ecoou também na mesa “Quem decide o futuro da internet (e por que você)?”, ministrada por Amalia Toledo e Polinho Mota. Ele provocou a comunidade a refletir sobre o papel político de quem estabelece as regras e os critérios desse ecossistema digital. Para ele, ao construir espaços como a Wikipédia, também se exerce o poder de decidir o que é válido ou não – uma responsabilidade que exige atuação consciente, comprometida com a construção de uma internet mais plural, inclusiva e democrática.
Outra atividade que me marcou na programação foi a sessão mediada por Mel Campos, que apresentou a WINI.IA, uma inteligência artificial desenvolvida a partir da plataforma colaborativa Biografia Preta. A ferramenta nasce como uma proposta de reparação algorítmica e justiça cognitiva, aliando tecnologia à educação antirracista. Durante a apresentação, Mel compartilhou o processo de criação da IA e refletiu sobre como essa construção tecnológica também é uma forma de imaginar e reivindicar futuros mais justos.
Uma construção multissônica da Wikicon 2025
Uma apresentação da Sociedade Filarmônica União Sanfelixta deu a tônica do encerramento, um som que reverberou como símbolo de tradição e coletividade. Para a organização, essa não foi uma escolha aleatória: uma filarmônica, com suas diferentes vozes em sintonia, representa bem o que é a comunidade Wikimedia, uma construção coletiva, descentralizada, onde cada um tem um papel importante e onde todas as contribuições importam.
Participar da WikiCon 2025 foi, para mim, uma experiência de encontro entre mundos: o da tecnologia, o das comunidades e o das mobilizações. Mais do que um evento, a conferência se revelou uma expressão viva da utopia do conhecimento livre: pessoas de diferentes cantos do país reunidas para compartilhar saberes, dúvidas, códigos, estratégias e histórias. Um desejo coletivo de pertencimento e construção conjunta.
Me parece que o movimento wiki já oferece pistas valiosas de como a relação entre humanos e tecnologia pode ser orientada por valores éticos, pelo direito ao conhecimento e pela transformação das pessoas e do mundo.