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dez 29, 2023 | Destaques, Notícias, Panorama2024

Combater a violência política de gênero a partir do legado de Marielle

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O enfrentamento à violência política de gênero está no centro do trabalho desenvolvido pelo Instituto Marielle Franco , fundado pela família da vereadora carioca assassinada em 2018. Hoje diretora executiva do instituto, a advogada Lígia Batista atua há 10 anos em organizações internacionais voltadas à defesa dos direitos humanos e à promoção da justiça racial e de gênero no Brasil e na América Latina. Mestranda em Políticas Públicas e Direitos Humanos na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Lígia falou para a série #panorama2024, do *desinformante, sobre a necessidade de aprimorar a Lei de Enfrentamento à Violência de Gênero, a morosidade do caso Marielle e a urgência em capilarizar a luta contra a extrema-direita no país. Confira a entrevista:

Ana d’Angelo: Lígia, você assumiu o Instituto Marielle Franco em 2023, quando a Anielle Franco foi nomeada ministra da Igualdade Racial. Pela primeira vez, o instituto tem uma pessoa de fora da família na direção. O que significa essa transição? 

Lígia Batista: O esforço que a gente coloca é de continuidade, de seguir preservando a memória, lutando por justiça, multiplicando o legado e regando as sementes. São esses os grandes pilares que orientaram a criação do Instituto Marielle Franco lá atrás e que seguem de muitas maneiras orientando o trabalho nesse novo ciclo. Do ponto de vista do que é esse olhar para mulheres negras, para pessoas LGBTQIA+ de favelas e periferias e para essa disputa pelas estruturas de poder, isso continua muito na ordem do dia. 

Nesse momento a gente está falando sobre o que virá a ser o trabalho para 2024, na disputa das eleições municipais, que seguramente serão profundamente atravessadas pela questão da desinformação, do discurso de ódio e da violência política. Para a gente do instituto, é fundamental seguir buscando estratégias de fortalecimento de mulheres negras e pessoas LGBTQIA+ na política, entendendo especialmente o quanto a violência política de gênero e raça é um dos grandes obstáculos hoje para essas figuras colocarem os seus corpos, as suas vidas, à disposição dessa disputa. Infelizmente a gente ainda não tem mecanismos, estratégias intersetoriais que deem conta de responder a esse fenômeno de maneira responsável, de maneira efetiva, para garantir a integridade física, a vida dessas pessoas, seja na disputa eleitoral, seja quando essas pessoas se tornam mandatárias. 

Para fechar, quero dizer que quando a gente fala sobre essa precarização da democracia, há uma provocação sobre qual é esse conceito de democracia que nos orienta, né? Se a gente entende a história de um país como o Brasil, que é atravessado por tantas violências e desigualdades, talvez a democracia sequer tenha existido realmente para todas as pessoas. E ainda que a gente confie nos mecanismos do sistema eleitoral brasileiro, o nosso modelo privilegia algumas pessoas a despeito de outras. E é também sobre isso que a gente quer discutir. Se a gente acredita ainda nesse modelo de democracia representativa que adota práticas que excluem pessoas negras, que excluem mulheres, que excluem pessoas indígenas, LGBT, e se ela é efetivamente uma estrutura que representa essa sociedade. 

STF sem ministra negra e lentidão no caso Marielle

Ana d’Angelo: Houve uma campanha grande, com pressão da sociedade civil, das organizações de direitos humanos e justiça racial, para que a gente tivesse a indicação de uma mulher negra à cadeira do Supremo Tribunal Federal (STF), o que não aconteceu. O que não funcionou? 

Lígia Batista: Eu acho que quando a gente fala sobre essa decisão e também sobre a decisão de quem é o indicado à Procuradoria Geral da República, a gente está falando sobre um momento político no país em que a administração Lula 3 não é a mesma administração dos seus últimos dois mandatos. O país conta com um Congresso profundamente conservador, que vai desafiar o Executivo de várias maneiras, que vai querer, especialmente a partir do Centrão, colocar em disputa as pautas a partir do nível de capilaridade que eles têm dentro da estrutura do Executivo Federal. A maneira como o Lula hoje toma as decisões para governar é esse presidencialismo de coalizão, com essa disposição para flexibilizar pautas que seriam pautas mais à esquerda. 

Para além do discurso sobre a necessidade de maior diversidade dentro da estrutura do sistema de Justiça, há a maneira como a prática política é orientada no nosso país, onde é muito fácil jogar essa agenda para escanteio porque ela parece sempre ser menos importante. Foi muito importante que os movimentos estivessem organizados tentando pautar o Executivo, mas o que a gente esperava é que a pessoa que fosse nomeada para ser ministra do STF tivesse realmente fundada numa dimensão de reparação histórica por uma estrutura que nunca pareceu aberta para acolher pessoas como nós na tomada de decisões. Me preocupa muito que a escolha do presidente seja muito mais fundamentada por um olhar personalista, do que propriamente por uma reflexão sobre o que seria um legado histórico que se deixa dentro do STF com a nomeação de uma ministra negra para uma daquelas cadeiras. 

Ana d’Angelo: Dentro ainda desse momento Lula 3, com relação ao caso Marielle, em que ponto estão as investigações e as respostas que a gente não tem ainda?

Lígia Batista: A gente ainda tem pouco a dizer sobre avanço. No dia 14 de março de 2023 completou cinco anos sem resposta. Temos duas pessoas que hoje estão em prisão preventiva e que são apontadas como os executores desse crime aqui no Rio de Janeiro, mas essas pessoas ainda sequer foram responsabilizadas pelo que aconteceu e a gente não tem qualquer notícia sobre quem são os potenciais mandantes. Se trata de um caso super complexo, que não se soluciona do dia para a noite, mas a gente segue tendo uma expectativa muito grande de que essa virada de chave do Governo Federal pode vir a ser um avanço nessas investigações e nesse caso na Justiça. 

É claro que foi fundamental, a partir da chegada do novo governo, não só a nomeação da Anielle Franco para o Ministério da Igualdade Racial, mas também as várias declarações públicas, tanto do Presidente Lula, quanto de outras pastas de outros ministérios, em defesa desse compromisso com o caso. Mas não é ainda o suficiente para que a gente possa alcançar as respostas sobre o crime. Houve uma movimentação importante esse ano, que foi o deslocamento da Polícia Federal para apoiar as investigações no Rio de Janeiro sobre os mandantes, mas ainda assim a gente tem a sensação de que está longe de saber quem são esses mandantes, se eles efetivamente vão ser levados à Justiça e responsabilizados. A gente segue aguardando os desdobramentos, cobrando e esperando que a justiça realmente seja feita. 

Fragilidade na lei de violência política e cotas em disputa

Ana d’Angelo: Vocês têm um trabalho robusto em relação à violência política de gênero, com pesquisas bem amplas e uma contribuição inclusive para a criação da lei de enfrentamento à violência política. A lei fez dois anos em 2023. Qual é o balanço? 

Lígia Batista: A gente realmente tem se dedicado a fazer algumas análises diagnósticas a respeito desse fenômeno da violência política. Lançamos a nossa primeira publicação em 2020, olhando para qual é a realidade de violência política durante a corrida eleitoral. Em 2022 a gente moveu o nosso olhar do contexto eleitoral para dialogar com as eleitas e nosso diagnóstico foi que, mesmo depois de eleitas, elas seguem desprotegidas, em especial quando a gente olha para a situação de mulheres negras e mulheres LBTI. Em 2023 a gente lança a nossa pesquisa mais recente [https://www.violenciapolitica.org/], que é esse exercício de balanço sobre os dois anos da Lei de Enfrentamento à Violência Política. 

A lei que existe hoje no Brasil é sim um marco histórico importante, porque a gente nunca teve algo parecido na história do país, mas ao mesmo tempo ela tem que ser tratada como ponto de partida, e não como ponto de chegada nessa corrida. Ela abriu a possibilidade de qualificar esse debate, mas ainda precisa de muito aprimoramento. A lei olha para a questão de gênero muito voltada para essa dimensão mais cisheteronormativa da mulher, e não necessariamente tratando a violência de gênero que vai afetar mulheres cis, mulheres trans, mulheres nas suas diversidades de orientação sexual e de identidade gênero. 

Acho que a lei perdeu a oportunidade de tratar sobre o eixo de proteção. Hoje, não só os canais de denúncia que existem para endereçar casos de violência política são confusos e ineficazes, mas também existe uma outra parte desse problema, que é a ausência de mecanismos efetivos de proteção. Então, quando a gente tem um caso de uma mandatária, de uma parlamentar que passa por violência política, ela não sabe a quem recorrer e ela não recebe muitas vezes apoio do seu próprio partido, não recebe apoio de outras instituições públicas, e muitas organizações, como o próprio Instituto Marielle Franco, acabam assumindo essa responsabilidade de dar acompanhamento e apoiá-las. 

Com alguns casos concretos, a gente vem levando o debate da violência política para dentro do Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos, como forma de tentar acomodar, dar uma resposta e acolher essas parlamentares ameaçadas. A Lei de Enfrentamento à Violência Política está em disputa e é fundamental que organizações como o Instituto Marielle Franco e outros aliados continuem tentando pautar e aprimorar esse mecanismo para que a discussão siga acontecendo no país. 

Ana d’Angelo: O que você pode adiantar sobre os projetos do Instituto Marielle Franco para 2024, pensando que é um ano de eleições municipais? 

Lígia Batista: O olhar para o enfrentamento à violência política segue muito no nosso radar porque a gente sabe que o contexto eleitoral é extremamente violento, é um contexto que demanda das organizações um acompanhamento mais próximo dessas pessoas que estão se colocando à disposição da disputa eleitoral. Queremos poder articular estratégias que nos ajudem a expandir a nossa capacidade de acolher essas demandas de violência política de gênero e raça que chegam até nós e criar ferramentas para fortalecer as pessoas que constroem as campanhas eleitorais. 

Hoje no nosso país a gente vê uma crescente de iniciativas que qualificam candidaturas de mulheres, de pessoas negras, mas acho que ainda existe uma carência na qualificação de pessoas que constroem essas campanhas, de pessoas que estão ali caminhando junto com a candidata e que são tão fundamentais quanto para poderem disputar essa vitória. A gente quer cada vez mais qualificar os quadros que constroem campanhas eleitorais. Como a gente qualifica esses quadros e faz com que as campanhas eleitorais de mulheres negras, de pessoas LGBTQIA+, que caminham junto com a gente, sejam campanhas cada vez mais disputáveis, cada vez mais aptas a serem eleitas? É para isso que a gente tem trabalhado. 

Dentro dessa reflexão sobre como a gente capilariza a luta, há a nossa capacidade de estruturar o que a gente chama de rede de sementes, que é uma rede ativista, de pessoas que se mobilizam por esse símbolo de luta que Mari se tornou no Brasil e no mundo. A gente quer estruturar uma estratégia que se capilarize em alguns territórios do Brasil para ter núcleos organizados que façam frente ao avanço da extrema-direita hoje. Porque se tem algo que a gente pode ter de diagnóstico do último ciclo eleitoral de 2022 é que, ainda que o Bolsonaro tenha sido derrotado nas urnas, o movimento bolsonarista saiu muito fortalecido. Saiu fortalecido e espalhado pelo país não só com as eleições dos governos dos estados e dos municípios, mas também disputando valores e uma visão de mundo. É fundamental fazer frente a isso que a gente não acredita que é um projeto adequado para a sociedade e para a consolidação da democracia. 

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