Do muito que se pesquisou sobre as estratégias de desinformação já se sabe que a reta final de uma campanha eleitoral é um dos períodos mais sensíveis para a disseminação das informações falsas, com potencial de dano imediato no resultado do pleito. Mesmo antes da capilaridade exponencial das redes sociais, é nesta curva derradeira que aparecem os escândalos sobre os candidatos para aquela virada desejada – isso desde que temos eleições.
O que mudou de um escândalo divulgado em rede nacional para as redes sociais e os aplicativos de mensagens é que eles inauguraram um modo instantâneo com impacto sem precedentes. Ainda não temos respostas à altura das estratégias das campanhas desinformativas. Elas “nadam de braçada” nas redes. Precisamos entender desde os núcleos de criação até a forma como são distribuídas entre as plataformas digitais e como chegam até as pessoas.
Neste 2024, podemos citar algumas narrativas que viralizaram dessa forma e neste período, como o vídeo que circulou no domingo das eleições dizendo que a candidata à prefeitura de Natal, Natália Bonavides, queria legalizar o furto de celular. O vídeo, que viralizou no Facebook e Instagram, alterava um conteúdo verídico de uma fala da candidata, acrescentando um narrador que distorcia a fala de Natália em um debate e ainda trazia um letreiro sugerindo que eleitores que votarem no PT estariam “cooperando” com o crime. Não se sabe a quantas pessoas chegou o conteúdo, etiquetado como Falso pela agência de checagem Lupa, mas o vídeo rodou neste período crucial véspera e dia das eleições.
Um outro exemplo é um post, que também circulou na véspera das eleições municipais, alegando que o deputado estadual do Mato Grosso e candidato a prefeito de Cuiabá, Lúdio Cabral (PT), teria sido beneficiado com R$1 milhão da Odebrecht, intermediado por ministro da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Conforme a agência de checagem, o juiz eleitoral Moacir Tortato concedeu direito de resposta a Lúdio nas redes sociais de Abílio por considerar a propaganda uma difamação, uma vez que nunca foi comprovado judicialmente que o candidato tenha recebido dinheiro da Odebrecht.
Bonavides como Lúdio, candidatos pelo PT, perderam as eleições municipais neste segundo turno.
O que antes do ecossistema digital se concentrava num programa eleitoral com horário pré-determinado na TV e no rádio ou num panfleto que poderia ser levado pela chuva, hoje corre como pólvora nas redes socais que, sim, têm mecanismos de rotulagem e parceria com as agências de checagem, mas com efeitos limitados. Isso porque a peça não fica restrita àquele espaço em que foi postada, dali segue para outras redes, na estratégia multiplataforma das campanhas de desinformação e circula nos aplicativos de mensagens.
Estes, por sua vez, têm uma proibição quanto ao disparo em massa desde 2019, mas também uma enorme opacidade devido à criptografia ponta a ponta, a justificativa da privacidade das conversas particulares. A verdade é que são muitas pontas soltas num aplicativo que tem ferramentas para falar com grupos e canais que de conversas particulares não têm nada e que exercem um papel importante no consumo de informações no país.
Outros casos que vimos neste 2024 mostram o poder do combo ´timing véspera de voto + redes sociais + WhatsApp´. Segundo levantamento da Lupa com dados da Palver, as declarações sem provas dadas pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, de que integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC) orientaram familiares e apoiadores a votarem em Guilherme Boulos para prefeito de São Paulo tiveram um alcance estimado de até 176 mil usuários distintos de aplicativos de mensagens até às 16 horas no domingo de votação (27).
Neste contexto, quando a Justiça eleitoral se posiciona e desmente a declaração falsa de um governador ou quando a mídia tradicional e as agências de checagem se esforçam para também desmentir e “derrubar” o conteúdo, o estrago já foi feito.
Não há quem possa com o poder das redes em distribuir a desinformação em um cenário de profunda descredibilização da mídia e das instituições democráticas – isso também faz parte das campanhas desinformativas. A imprensa e as instituições democráticas passam por uma crise que abre o espaço perfeito para a mentira se instalar.
Além do trecho da fala de Tarcísio, publicações disseminaram no WhatsApp e Telegram que o PCC ‘mandou’ a ordem de ‘votar em Boulos’. Outros disseminaram mensagens de texto que afirmam que a vitória do candidato do PSOL representaria a expansão da facção criminosa na cidade.
Boulos foi derrotado pelo atual prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes.
O episódio evidencia também que narrativas associando candidatos progressistas ao PCC não são novidade no cenário eleitoral. Em 2022, exatamente neste vácuo decisivo entre o primeiro e o segundo turnos, uma peça de desinformação dava conta de que o líder da facção criminosa PCC Marcola teria declarado voto no então candidato Lula e ordenado que os integrantes da facção e seus familiares seguissem a mesma orientação. A declaração foi amplamente desmentida pela imprensa e agências de checagem bem como o TSE ordenou que o conteúdo fosse excluído dos sites e redes sociais. Em menos de 24 horas a postagem no Facebook já tinha mais de 34 mil visualizações. Não dá para dimensionar o impacto de um conteúdo dessa natureza na decisão de voto.
Sobre as táticas: sabemos que continuam os usos de matérias verdadeiras da mídia, a que são agregados áudios, legendas e vídeos falsos (com ou sem uso de IA). Velhas fakes bem-sucedidas em seus momentos tendem a ser repetidas, haja vista os ataques às urnas e ao processo eleitoral. No domingo da eleição acumulavam centenas de likes no Instagram um post dizendo que 6.000 urnas eletrônicas foram substituídas em Fortaleza e que isso seria um indicativo de fraude eleitoral.
O que mais sabemos? Ao certo é que precisamos seguir na busca de mais respostas e detalhes, no entendimento de como a desinformação é produzida, por quem, com que dinheiro e qual o caminho tem trilhado nas redes. Neste último caso, vamos precisar de instrumentos externos à vontade das grandes plataformas para determinar o que é legítimo na garantia da nossa democracia e dos nossos direitos de cidadãos. E isso passa longe da censura, trata-se de soberania.
Tem mais dois blocos de assuntos que valem ser mencionados rapidamente aqui, mas que por si só carecem de outras análises.
O uso da IA não se comprovou tão intenso como imaginado, a desinformação mal feita, aquela montagem tosca e antiga continua circulando. Interessante pensar que muitas notícias falsas já foram desmentidas pelas agências, mas continuam “pegando”.
As regras previstas nas resoluções do TSE se mostraram um pouco caducas diante das dinâmicas das redes. Suspender a propaganda eleitoral alguns dias antes criou esse vácuo de informação que é um fermento para a desinformação, como já observou Nina Santos em PV anterior.
Haverá um balanço final de como foram respeitadas ou não as resoluções da justiça eleitoral sobre propaganda e fluxo de informação durante o pleito? Alguma conclusão e pontos de preocupação? Acho que o momento pede.