“Dificilmente essa confiança [no processo eleitoral] será resgatada sem que as críticas, discussões e contribuições sobre a tecnologia da urna eletrônica sejam consideradas”. É o que acredita a organização Artigo 19, que tem a missão de defender e promover o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação. Com essa premissa, a instituição publicou neste mês um guia para jornalistas: “Como cobrir criticamente a urna eletrônica sem alimentar teorias da conspiração”.
A organização defende que a imprensa livre e plural pode colaborar em uma cobertura crítica do processo, mas também reconhece que essa abordagem pode acabar sendo subvertida para alimentar novas teorias conspiratórias, campanhas de desinformação e discursos golpistas. “Por isso, o objetivo desta publicação é justamente fornecer informações que possam amparar e fomentar uma cobertura que seja a um só tempo crítica e ousada, mas também equilibrada e consciente da complexidade e delicadeza do tema”, coloca.
No guia, a organização destrincha os principais sistemas de votação eletrônica utilizados no mundo e elenca os limites e complexidades de cada um deles. Primeiro, destaca a amplitude da “urna eletrônica” e pontua que ela pode, no debate sobre sistemas de votação, ser entendida como a máquina utilizada no Brasil, mas também como todo o sistema de votação no qual ela está inserida – desde o desenvolvimento do software até a totalização dos votos.
O material explicativo abrange o debate sobre os sistemas de votação serem dependentes ou não de softwares – o sistema brasileiro é – e as suas implicações. Assim, segue para esmiuçar e fazer uma análise crítica dos sistemas, como o Direct-Recording Electronic (DRE) voting system, utilizado no Brasil, e o Voter-Verified Paper Audit Trail (VVPAT), que é um sistema de software independente que combina o sistema eletrônico com um registro físico, modelo que ficou conhecido no Brasil como “voto impresso” – recomendado por algumas organizações internacionais, mas com suas limitações.
“Sistemas puramente DRE impossibilitam o cometimento de fraudes que só podem ser realizadas se houver impressão dos votos, muitas delas associadas a dificuldades em garantir a custódia das urnas físicas, a brechas nos procedimentos analógicos e a condições de segurança pública. Em um país com as características do Brasil e com uma história marcada por inventivas estratégias de fraude eleitoral nos tempos em que não havia voto eletrônico, isso não é nada trivial”, coloca o guia.
A Artigo 19 também relembra no guia o debate sobre o sistema VVPAT no Brasil, destacando que chegou a ser aprovado no Congresso em 2009 e 2015, mas foi declarado inconstitucional por colocar em risco o sigilo do voto. O tema voltou à pauta em 2019, pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. “O assunto foi abordado em um ambiente polarizado, dentro e fora do Parlamento, e de maneira açodada e pouco rigorosa, sem detalhamentos e contextualizações importantes. Pode-se dizer que a pauta foi instrumentalizada pelo Executivo da época e seus aliados para gerar desconfiança sobre o sistema vigente”, analisa a organização.
O guia também aborda outros sistemas de votação como os dispositivos de preenchimento de cédulas (ou BMDs, do inglês Ballot Marking Devices), o voto online – usado na Estônia – e os sistemas de criptografia que vêm sendo estudados, inclusive no Brasil, onde pesquisadores do Laboratório de Arquitetura e Redes de Computadores, da Universidade de São Paulo (Larc-USP), em convênio TSE, analisam o desenvolvimento de um modelo de criptografia de ponta a ponta que poderia ser inserido no atual sistema brasileiro.
Além de compreender os sistemas em si, a organização defende que é preciso considerar como as eleições são realizadas e o contexto de cada país. “Especialistas em segurança da informação entendem que não existem sistemas de votação invioláveis ou completamente seguros, sejam eles eletrônicos ou não. A avaliação meramente técnica das arquiteturas tecnológicas de sistemas de votação pode indicar que algumas apresentam maior risco teórico de vulnerabilidades. Mas é preciso considerar que fragilidades também são resultado da interação entre a tecnologia e o seu entorno”, conclui a Artigo 19.