O avanço da inteligência artificial (IA) no Brasil ganha um novo diagnóstico com a publicação do relatório da Unesco de avaliação de prontidão para a ética na IA. A pesquisa, que inclui a aplicação da Metodologia de Avaliação de Prontidão (RAM) no país, traça um panorama detalhado sobre o nível de preparação institucional, regulatória e tecnológica para o desenvolvimento de uma IA ética e responsável e apresenta 17 recomendações de políticas sobre IA.
A iniciativa não apenas identifica desafios e lacunas, mas também propõe diretrizes para aprimorar o ecossistema nacional de IA, garantindo que a inovação tecnológica avance de forma sustentável e sem comprometer direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e acesso à informação.
A RAM, ferramenta estabelecida pela Recomendação sobre a Ética da Inteligência Artificial, aprovada pelos 193 Estados-Membros da Unesco em 2021, avalia a prontidão dos países em cinco dimensões: jurídica, social, científica, econômica e técnica.
No Brasil, a aplicação da metodologia começou em 2023, em um momento de intensa movimentação no Congresso Nacional e no Senado para a regulamentação da inteligência artificial. Segundo Cynthia Picolo, uma das responsáveis pelo estudo, esse cenário representou um desafio, pois as discussões evoluíam rapidamente, exigindo constantes atualizações na pesquisa.
Inicialmente, a principal referência para a RAM foi a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA), lançada em 2021, que, até então, era a política pública mais abrangente para o setor, estabelecendo diretrizes para o desenvolvimento e uso da IA no país. No entanto, ao longo do estudo, a EBIA foi descontinuada e substituída pelo Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA), apresentado em 2023. O novo plano trouxe um conjunto de ações e metas, com o objetivo de orientar o avanço da IA de forma ética e sustentável no Brasil.
Principais recomendações
O relatório aponta avanços nas políticas públicas voltadas à inteligência artificial (IA), mas destaca desafios estruturais e regulatórios que precisam ser superados para garantir uma implementação inclusiva e responsável.
Entre as 17 recomendações apresentadas, o documento enfatiza a necessidade de maior transparência nos sistemas de IA, fortalecimento da governança digital e investimentos estratégicos em educação e infraestrutura tecnológica.
Questionada sobre quais diretrizes considera mais urgentes para a construção de um ecossistema de IA ético e responsável, Cynthia Picolo ressaltou que todas as recomendações foram elaboradas com base em macroelementos interconectados, como transparência, responsabilização, diversidade, autonomia e defesa de direitos. No entanto, destacou pontos cruciais no contexto brasileiro.
Um deles é a recomendação 5, que propõe que o Governo Brasileiro adote medidas e métricas para garantir a inclusão e proteção de grupos vulneráveis no debate sobre IA, com apoio do PBIA. Segundo Picolo, essa diretriz é essencial para assegurar a preservação da diversidade cultural e linguística do país, incluindo a valorização do português brasileiro e das línguas indígenas.
Outra recomendação enfatizada foi a de número 8, que sugere a incorporação da sustentabilidade ambiental às discussões sobre IA. A proposta defende a participação ativa de povos originários e a criação de indicadores para monitorar os avanços dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), além do uso da IA no monitoramento ambiental e na mitigação de impactos climáticos.
Para Picolo, com a realização da COP30 no Brasil em 2025, a adoção desta recomendação fortaleceria o debate sobre o desenvolvimento sustentável da IA, trazendo benefícios a longo prazo.
A recomendação 10 também ganhou destaque por defender a ampliação do debate sobre o uso da IA na segurança pública, incluindo a suspensão de tecnologias como reconhecimento facial e policiamento preditivo até que sua eficácia seja comprovada. A pesquisadora alertou que, durante a aplicação da RAM, foi identificado um crescimento acelerado dessas tecnologias, sem que haja uma regulamentação adequada para seu uso.
Ela ressaltou que esse é um tema sensível, pois envolve direitos fundamentais, como liberdade, vida e proteção contra discriminação. Segundo Picolo, a falta de regulação agrava desigualdades, impactando principalmente grupos já vulnerabilizados, o que torna essa discussão urgente e essencial.
Estrutura do documento
O relatório brasileiro está estruturado em três partes principais. A primeira delas apresenta um diagnóstico do panorama nacional da inteligência artificial, analisando o atual cenário das políticas públicas voltadas para a tecnologia no país.
Em seguida, um roteiro nacional multissetorial detalha o processo de consultas públicas realizadas ao longo da pesquisa, evidenciando a colaboração de diversos setores na elaboração de um plano de ação mais inclusivo e eficaz. Foram ouvidos representantes de órgãos governamentais, como os Ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e das Relações Exteriores (MRE), além de acadêmicos, associações empresariais e representantes da sociedade civil organizada. Por fim, o estudo traz o conjunto de recomendações ao governo brasileiro para fortalecer um ecossistema de IA.
A Unesco no debate sobre IA
As crescentes preocupações com a inteligência artificial, incluindo desigualdades de acesso, concentração de mercado, falta de diversidade em equipes de desenvolvimento, uso de dados não representativos e algoritmos opacos, levaram a Unesco a criar a Recomendação sobre a Ética da Inteligência Artificial, em 2021.
As informações coletadas e as diretrizes propostas neste relatório brasileiro que utilizou a metodologia RAM serão disponibilizadas no Observatório Global da Unesco, possibilitando a troca de experiências e boas práticas entre países. O objetivo não é criar uma hierarquia entre as nações, mas fomentar uma cooperação internacional mais alinhada e eficaz no desenvolvimento responsável da IA.
O Observatório Global de Ética e Governança em IA foi lançado pela Unesco em 2024 durante o Fórum Global sobre Ética da Inteligência Artificial, na Eslovênia. Desenvolvido em parceria com o Instituto Alan Turing e a União Internacional de Telecomunicações (UIT), o observatório reúne informações e diretrizes para apoiar governos, pesquisadores e a sociedade civil na formulação de políticas que promovam o uso responsável da tecnologia.
A Unesco é uma agência da Organização das Nações Unidas que atua nas áreas de Educação, Ciências, Cultura e Comunicação, promovendo projetos de cooperação técnica com governos, sociedade civil e setor privado. Também apoia a formulação de políticas públicas alinhadas às metas globais dos Estados Membros.