Um mundo e muitas vozes!!!!
Há quase 40 anos, a UNESCO chamava atenção para os riscos sociais de cenários globais com a propriedade dos meios de comunicação cada vez mais concentrada. Diversidade de vozes se conquistaria com democratização da comunicação, dizia o “Relatório MacBride”.
Naquele janeiro de 1983, nossos graves problemas midiáticos eram o controle dos jornais, rádios e televisão por políticos e pelas ditaduras militares, assim como ocorria em tantos “países periféricos”. Com o tempo, foram se multiplicando as tecnologias, redes, teias, conexões.
Mas, e as vozes? E a pluralidade?
Nos últimos anos, diversos e díspares países têm vivenciado um fenômeno similar: as expressivas votações de pessoas que estavam no ar na televisão aberta para cargos políticos de destaque. Filipinas, EUA, Rússia, Chechênia, Ucrânia, Guatemala, Costa Rica, Tailândia, Índia e Brasil tiveram, entre seus candidatos centrais, apresentadores, atores, âncoras e comediantes buscando vagas de presidentes, primeiros-ministros, senadores ou deputados. São muitas vozes, de fato. Mas se assistimos aos conteúdos televisivos que deram origem a estes fenômenos eleitorais impressiona outra coincidência: a tônica da “renovação política” pautada na ampliação do discurso de ódio.
Palco central tanto para o comércio do prestígio político quanto para a manutenção dos privilégios históricos das velhas oligarquias, as velhas tecnologias gratuitas, abertas, massivas, de rádio e televisão têm se tornado cada vez mais ocupadas pelo discurso conservador como elemento de falseamento da representação. São os defensores do povo! Servos do povo! Justiceiros! Mitos! E, como se fossem aquelas músicas chatas e grudentas que tocam demais e nos pegamos assoviando distraidamente, reverberam “bandido bom é bandido morto!”, “ideologia de gênero”, “mimimi”, “direitos humanos para humanos direitos”.
Um submundo do baixo clero: donos e comunicadores políticos
O avanço das lideranças conservadoras e religiosas pela plataforma televisiva acontece num cenário de intensas transições no ambiente midiático. Com a centralidade das energias globais voltadas para a Internet e os fluxos de conteúdos e dados por streaming ocorrendo num período imediatamente posterior à decadência dos sistemas estatais de mídia em todo o mundo, os meios locais de comunicação se tornaram extremamente frágeis frente a competidores globais. A aliança entre elites conservadoras – que também viviam um período de fragilidade, desde o avanço progressista ocorrido no final do século XX e no início do Séc. XXI – e sistemas locais, especialmente pequenos grupos de mídia, parece ter se tornado um mecanismo de sobrevivência.
Se olharmos o contexto brasileiro, Band, SBT, Rede TV!, Jovem Pan e tantas outras empresas de pequeno porte sobrevivem há mais de uma década do loteamento das suas grades de programação para programação religiosa e para os interesses políticos. Foi nestes espaços, pouco observados pela crítica, pouco regulados e profundamente difusos na estrutura midiática que uma combinação de atores sociais singulares têm se fortalecido: os políticos donos de meios e os comunicadores políticos. Estas figuras, historicamente secundárias no jogo econômico político nacional, formam uma rede complexa de trocas de favores envolvendo uma densa composição que atravessa o País.
O grupo de pesquisa em Políticas e Economia da Comunicação e da Informação – PEIC – da UFRJ, vem acompanhando simultaneamente as concessões de TV e os parlamentares ligados à comunicação nas últimas décadas. Desde 2003, temos acompanhado os donos das 2842 outorgas de TV pertencentes a políticos e, por outro lado, os 744 deputados federais, eleitos entre 1983 e 2018, que são comunicadores políticos. Consideramos comunicadores políticos as pessoas que se candidatam a mandato eletivo no mesmo período que estão trabalhando regularmente em alguma plataforma midiática. Esta é uma situação que ocorre em todo o país, sem concentração específica em uma ou outra região.
A principal característica que difere estas duas personagens, o dono e o comunicador, é o capital político. O dono se caracteriza, essencialmente pelo privilégio. Quem são os donos de mídia no Brasil?
Homens brancos.
A resposta óbvia ganha melhores contornos quando especificamos que de 116 deputados e deputadas donos de rádio ou TV catalogados pelo nosso estudo, apenas 2 são negros, ambos pastores da Igreja Universal do Reino de Deus, totalizando 94% da amostra. No entanto, é no dado de 6% de mulheres donas que este dado reverbera outra característica central do nosso modelo: o patriarcado. Todas as deputadas federais donas de rádio ou TV, eleitas entre 1983 e 2018, são brancas e filhas ou esposas de políticos tradicionais, reverberando o capital político familiar. Há, também uma permanência no poder, que reverbera: 53% destes donos tiveram 3 ou mais mandatos e 75% deles tiveram outros cargos além de deputados federais.
Estes senhores da mídia, cuja relação com a política data desde o início do rádio no Brasil, nos anos 1930, são uma categoria mais conhecida e marcada. Os comunicadores, por outro lado, tinham pouca visibilidade até mais recentemente. Mesmo presentes no cenário midiático, há pelo menos cinco décadas, são usualmente confundidos com celebridades, pouco estudados, apontados como aberrações midiáticas, acidentes de percurso político. Apenas recentemente, a partir da onda de extrema-direita que vem se alastrando nos últimos tempos, é que voltamos os nossos olhos mais detidamente para eles.
Quem são os comunicadores políticos no Brasil?
Homens brancos, claro. Mas, não tantos. 92,5 dos 744 deputados federais que nossa pesquisa classifica nesta categoria são homens, destes, 32% se declaram pretos ou pardos. Além de menos brancos, também as mulheres da amostra são mais diversas: 0,7% delas são negras e apenas 18% do total são esposas ou filhas de outros políticos proeminentes. Os comunicadores têm menor estabilidade política que os donos, 46% deles tiveram 3 ou mais mandatos. É na visibilidade que se vê sua maior fragilidade. Enquanto apenas 12% do total de donos acompanhados estiveram liderando programas de TV ou rádio no período estudado, 81% dos deputados comunicadores não se reelegeram a mais nenhum cargo quando saíram do ar, caracterizando, assim, em primeiro lugar, o prestígio como seu capital político essencial e, consequentemente, a dependência intrínseca dos donos para sua permanência no jogo político.
Homens brancos zangados: o ódio como ferramenta
Aquela pessoa cansada das injustiças do mundo, exasperada por tanto ver o sofrimento social, o herói que perde a paciência e explode, num momento de descontrole. Esta personagem, o homem branco zangado, ilustrada com muito sucesso nas personagens Walter White, de Breaking Bad, e no Capitão Nascimento, de Tropa de Elite, vem sendo estudada pela doutoranda Marcia Gonçalves, é amplamente performada pelos comunicadores políticos brasileiros. Ratinho, Sikêra Junior, Boca Aberta e tantas outras figuras referendam esta persona, cuja operação semântica central, é a brancura e o ódio como solução para os conflitos sociais, em particular, as crises econômicas. Resgatando o exemplo dos 744 deputados e deputadas federais comunicadores que estamos estudando, podemos ter uma imagem mais clara quando observamos os gêneros dos programas que eles encabeçam.
Grafico: Gêneros Televisivos dos programas de comunicadores políticos eleitos deputados federais entre 1983 e 2018
O dado de que 29% dos programas têm natureza policial deve ser também concatenado ao fato de que esta classificação de gênero não dá conta do caráter híbrido da programação televisiva. Um programa como o de Ratinho, no SBT, é caracterizado como auditório, mas o apresentador traz frequentemente pautas policiais e assistencialistas. O programa Balanço Geral, da Record, usualmente é classificado como policial, mas em muitas praças é entremeado por quadros religiosos transmitidos diretamente das sedes da IURD, por assistencialismo, por humor e também por quadros de defesa de direitos. Do Balanço Geral, por exemplo, nasceu o Patrulha do Consumidor. Um programa de defesa de direitos dos cidadãos que, a partir do sucesso eleitoral de Celso Russomanno, elegeu diversos dos seus apresentadores regionais. A programação televisiva tornou-se plataforma de visibilidade que agrega donos, comunicadores e partidos numa geografia complexa de interconexões.
Neste cenário, desinformar é quase tão relevante quanto informar. O discurso populista-conservador se constitui como importante ferramenta de falseamento da representação, em especial as pautas morais, anti-establishment e de combate à corrupção. Esta ferramenta do ódio é um recurso constante do casamento entre donos, homens brancos, muitos deles herdeiros das elites escravistas que buscam a manutenção das tradições políticas da estrutura econômica rural, mesmo que vivam em ambientes urbanos, com comunicadores, nem sempre tão brancos, mas vivendo num habitat cujo sustento pela publicidade já se comprovou mitológico escancarando a dependência direta do dinheiro da política e da fé. As grandes redes midiáticas, tanto de streaming quanto plataformas na internet, como o Youtube e as redes sociais, lucram diretamente com a visibilidade e a captura da política pelo espetáculo bizarro. A democracia vai, aos poucos, ruindo ao ficar a mercê das assimetrias e (in)visibilidades destas intersecções entre os sistemas político e midiático que estão no rádio, na TV, no WhatsApp, no Youtube, no Facebook e em todas as plataformas: um só discurso (de ódio) e(m) muitas vozes.