Em abril de 2020, uma série de tuítes da conta anônima @Aarthisharma08 alegava a existência de um aplicativo altamente sofisticado e secreto chamado “Tek Fog”. Segundo esse funcionário descontente da célula de tecnologia da informação (ITCell) do Partido do Povo Indiano (ou Bharatiya Jana’ Party – BJP), ele seria usado por agentes políticos filiados ao partido para poder inflar artificialmente a popularidade do partido, assediar atores críticos aos políticos associados e manipular as percepções do público em grande escala nas principais plataformas de mídia social.
Dear BJP i was working for your IT cell since 2014, now i Quit. And understood, you made us Scapegoats only! Perhaps, You are giving us ₹2/tweet . But you promised us in 2k18 if BJP comes to power again you shall get government job. Now you are denying? Liers! Where is Job?
— Aarthi Sharma (@AarthiSharma8) April 24, 2020
There are many #BJPitCell softwares, i was suggested to use ‘The tek fog’, this is secret app only for #ItCellWorkers. It bypasses reCaptcha codes, is used for auto-upload texts and hashtag Trends. However, pro-players of #ItCellWorkers are using Tasker app too.
— Aarthi Sharma (@AarthiSharma8) April 28, 2020
Nesses últimos dois anos, The Wire, uma revista indiana, se dedicou a verificar a existência desse aplicativo. A publicação buscou o delator que afirmou que o Tek Fog tem sido usado por agentes online para influenciar o público nas principais mídias sociais e plataformas de mensagens criptografadas e ampliar a propaganda da extrema direita. Em conversas subsequentes, a fonte explicou que seu trabalho diário envolvia sequestrar a seção de “tendências” do Twitter com hashtags direcionadas, criar e gerenciar vários grupos de WhatsApp afiliados ao BJP e direcionar o assédio online a jornalistas críticos ao partido, tudo através do aplicativo.
O delator ainda contou que decidiu fazer a denúncia depois que Devang Dave, ex-chefe de mídias sociais e tecnologia da informação nacional e atual gerente eleitoral do partido em Maharashtra, não cumpriu a promessa de emprego em 2018, condicionada à continuidade do BJP no poder nas eleições de 2019.
A fonte não forneceu acesso ao aplicativo devido ao forte processo de segurança que envolvia três senhas de uso único e um firewall local (barreira) que impedia o acesso fora da instalação. Para analisar a veracidade, a equipe de The Wire fez um processo de verificação independente sobre cada informação do delator e também buscou saber mais sobre as diferentes funcionalidades do aplicativo, a identidade dos criadores, seus usuários e as organizações que o utilizavam. Por meio de e-mails criptografados e salas de bate-papo online, o delator enviou várias capturas de tela e compartilhou sua tela mostrando os recursos do aplicativo. Também forneceu documentos para provar sua identidade e as dos empregadores envolvidos nesse esquema.
O aplicativo
As informações fornecidas destacaram os vários recursos do aplicativo e ajudaram a equipe da The Wire a obter mais informações sobre a estrutura operacional utilizada diariamente para manipular o discurso público, assediar e intimidar vozes independentes, além de perpetuar um ambiente de informação polarizado e partidário na Índia. Para isso, uma das principais funções do aplicativo é influenciar na seção de tendências do Twitter (Trending Topics) e do Facebook (Trends) através de recursos de automação integrados para ‘auto-retuíte’ ou ‘autocompartilhar’ as de indivíduos ou grupos.
Outro recurso oferecido pelo aplicativo é sua capacidade de sequestrar contas “inativas” do WhatsApp e usar esses números de telefone para enviar mensagens para os “contatados com frequência” ou “todos os contatos” daquele usuário. Para isso, o aplicativo usava uma técnica semelhante a “roubo de token”. Segundo a publicação, isso permitiu que esses agentes criassem uma base de dados de contatos de cidadãos categorizados de acordo com sua ocupação, religião, idioma, idade, sexo, inclinação política e até atributos físicos que poderiam ser usados em futuras campanhas de assédio e trollagem.
Em uma segunda parte da investigação, a equipe de The Wire mostrou como o aplicativo tinha a capacidade de mapear as notícias publicadas em veículos confiáveis e utilizá-las para redirecionar leitores desavisados para portais similares com notícias falsas, ao mesmo tempo que usava esses links para invadir e assumir outras contas do WhatsApp. Como evidência dessa capacidade, o delator enviou um link (gerado por um encurtador de URLs) que redirecionava para uma versão manipulada de um artigo do jornal online indiano The Print. O link gerado tinha um código embutido na string de consulta, que levava a uma página que se assemelhava a uma página da publicação original, mas o título e partes do texto eram editadas para enganar o leitor.
A equipe da The Wire também identificou que, no aplicativo, existiam telas que permitiam que os operadores excluíssem ou mapeassem todas as contas existentes a qualquer momento. Isso permitiria teoricamente que esses agentes destruíssem todas as evidências incriminatórias de suas atividades passadas. “Essas características do aplicativo são extremamente sofisticadas, o que requer alto desenvolvimento e um projeto de longo prazo. Isso me faz pensar que esse aplicativo pode ter sido utilizado por anos e influenciado outras eleições no mundo”, sugere Ceron.
Quem está por trás?
The Wire pediu ao delator que fornecesse informações sobre seus empregadores. Ele enviou um extrato bancário e contracheque que mostravam o envolvimento de duas empresas privadas, Persistent Systems e Mohalla Tech Pvt. Ltd.. Ambas estavam listadas, respectivamente, como “empregador” e “cliente”. Segundo a publicação, Persistent Systems é uma empresa indiana-americana de serviços de tecnologia, de capital aberto, fundada em 1990, e Mohalla Tech Pvt. é a empresa sediada em Bangalor que está por trás do ShareChat, uma popular plataforma de mídia social em idioma regional indiano, que tem financiamento do Twitter.
Para a publicação, a fonte explicou que o projeto tinha uma estreita colaboração com o ShareChat e Devang Dave. The Wire não pôde confirmar a supervisão direta de Dave, embora tenha indícios que exista uma ampla conexão.
Em resposta à publicação, a ShareChat informou que essa relação entre os criadores do suposto aplicativo Tek Fog e a Mohalla Tech Private Limited é completamente incorreta e falsa. Segundo nota enviada, a empresa reitera que a reportagem está absolutamente equivocada e que não “tem conhecimento, nem ajudamos (financeiramente ou de outra forma) em qualquer momento e de qualquer maneira, o grupo de pessoas relacionadas a este aplicativo ‘Tek Fog’”. Além disso, a empresa pediu mais detalhes para que as equipes internas investiguem o caso.