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dez 29, 2021 | destaques, notícias

“Sem democracia não construiremos o novo”, diz Rogério Sottili

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“Este é um momento de refluxo, mas não acredito que seja uma tendência. O fundamental para esse processo é a defesa da democracia. Sem democracia nós não conseguiremos nunca construir um novo.” , afirma Rogério Sottili,  diretor executivo do Instituto Vladimir Herzog (IVH). Ele também foi Secretário Especial de Direitos Humanos do Governo Federal, Secretário Municipal de Direitos Humanos da Cidade de São Paulo, Secretário Executivo da Secretaria Geral da Presidência e Secretário-Executivo da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Para as eleições, a organização vai preparar um documento com os 10 pontos inegociáveis para o futuro presidente da República nas áreas de liberdade de expressão, na área de memória, [verdade e justiça], na área de educação em direitos humanos e na área de democracia.  Leia a seguir a entrevista concedida para a série #panorama2022 do *desinformante.  

 

Ana d´Angelo: Os termos e conceitos Direitos Humanos, Liberdade de Expressão e Censura – pilares do trabalho de vocês – foram `sequestrados` por grupos de extrema direita. Como restabelecer essa narrativa – também outra palavra usada como um “vale tudo” – com o significado devido, das lutas históricas? 

Rogério Sottili: A gente não pode fazer essa discussão e essa reflexão sem considerar exatamente o momento que vivemos. Além de um retrocesso do ponto de vista de valores, do ponto de vista da política, em nível mundial, mas particularmente no Brasil, vivemos um momento de pandemia, que coloca um cenário bastante diferente e que nos deixa bastante preocupados. A gente precisa considerar esses fatores porque senão vai achar que está indo para o fundo do poço. Nós estamos vivendo um cenário que, numa análise mais fria, é bastante compreensível. Eu sou daqueles que acredita na evolução da humanidade, sou uma pessoa bastante esperançosa e acho que o mundo está cada vez melhor sim. Mas, como tudo na vida, tivemos momentos de recuos, de retrocessos. É como se fosse um rio, o rio não volta, ele vai sempre para frente, mas tem suas curvas, tem aquelas madeiras que impedem uma passagem, volta… e nós estamos vivendo essa curva do rio, que é o recuo em determinados valores, em determinados processos. Não tenho a menor sombra de dúvida que é isso. 

Então o que eu quero dizer é que na história da humanidade todos os processos, todas as narrativas, todos os conceitos estão em disputa. O que está em disputa é uma visão de humanidade, de mundo e de sociedade onde determinados valores pautados no humanismo, na liberdade de expressão e na liberdade se contrapõem à lógica do mercado. 

E os direitos humanos, no meu entendimento, expressam essa nova visão de mundo, visão que também está em disputa. As raízes do conservadorismo, daqueles que mantêm o status quo, elas estão postas. Existe um processo em disputa muito grande. Este é um momento de refluxo, mas não acredito que seja uma tendência. Nós do Instituto (Vladimir Herzog) acreditamos que o fundamental para esse processo é a defesa da democracia. Sem democracia nós não conseguiremos nunca construir um novo. Nos alinhamos a três eixos fundamentais para a defesa da democracia: liberdade de expressão, a questão da memória e a educação em direitos humanos. 

Ana d´Angelo: Agora, Rogério, esse termo, exatamente a liberdade de expressão, virou uma porta de entrada para a desinformação, uma licença para desinformar. Como o instituto trata da temática da desinformação?

Rogério Sottili: Ana, essa é uma discussão super complexa  porque ela faz parte de todo esse processo de disputa que  estamos vivendo. A produção da informação (e desinformação) existe desde o surgimento de duas pessoas na face da Terra. É evidente que o desenvolvimento tecnológico trouxe novas dimensões e uma velocidade absurda em relação a isso. É preciso pensar como você traz a questão das novas tecnologias para a disputa da nova sociedade. Estamos falando de grandes empresas, de poder, de muito dinheiro. 

Ana d´Angelo: A rapidez da informação e a apatia estão comprometendo nossa indignação para as mudanças necessárias? 

 Rogério Sottili: A gente é pego muito de surpresa porque essa tecnologia vem com muita força na mão de um setor da sociedade mundial.  E a velocidade da informação nos deixa muito apáticos, sem saber como reagir, é como se fosse um processo de naturalização da violência – ela vem com tanta velocidade, o dia inteiro, o dia inteiro essa desinformação, essa reprodução desses valores, que a gente não consegue reagir, sabe? Se a gente pegar o Instituto Vladimir Herzog, a gente estava fazendo quase uma nota por dia, né? E se a gente fosse ser mais rigoroso, a gente faria duas ou três notas por dia, de tanta desinformação. 

Ana d´Angelo: Tipo chacina no Rio, né? “Ah, mais uma chacina”. 

Rogério Sottili: Exatamente. E você produzir duas notas por dia ou uma nota por dia de uma instituição, uma nota oficial, ela perde a força, ela perde a potência, então nós puxamos o freio de mão. É um pouco isso que acontece com isso que a gente está vivendo: é tanta informação, é tanta desinformação, é tanta violência, que a gente fica meio sem saber como reagir. 

Apesar da dureza e da dificuldade que isso nos impõe, apesar da tristeza e da violência que ela promove, eu acho que faz parte de um processo histórico importante. Nós vamos ter que nos adaptar. Não no sentido de aceitar, adaptar a esse momento, nos adequar para se apropriar dessas tecnologias e brigar por algumas coisas fundamentais neste processo. E uma das coisas fundamentais nesse processo é fazer com que a gente tenha maior participação nesses processos da decisão da tecnologia, espaços de participação para definição dos conhecimentos, das diretrizes, né? E isso é uma luta, é um processo de luta. 

Ana d´Angelo: E efetivamente como se dá esta participação? Existe algum diálogo, por exemplo, com as plataformas, entre entidades de direitos humanos e as plataformas, na condição de afetados pela desinformação? Até na questão da moderação de conteúdo porque sabemos que as plataformas são criticadas por interferências que acabam trazendo consequências nefastas para as pessoas. 

Rogério Sottili: Nós queremos estar nesse debate, não tem como estar fora. Nós temos uma excelente parceria com o Google, que é um super apoiador de um dos principais projetos do Instituto Vladimir Herzog. E eu gostaria muito de ampliar essa parceria com o Google, para outros projetos e também para discutir, com uma potência tão grande, essa questão da desinformação. E acho que nós temos sim a possibilidade de fazer isso, de questionar e de entender melhor porque algumas vezes os algoritmos reproduzem os valores do racismo, do preconceito, da manutenção do status quo, sabe? Então a técnica parte de uma padronização de conteúdo e nós queremos desconstruir este parâmetro.

Ana d´Angelo: Dá escala àquilo que você quer combater, né? 

Rogério Sottili: Exatamente. Eu escrevo um negócio lá no meu Facebook, no meu Instagram e então “palavra não permitida”. Puta merda, o padrão deles é que eles acham que puta merda não pode ser utilizado, sabe? Então que negócio é esse? A Bianca Santana, que é uma mulher extremamente potente do movimento negro, ela é do conselho do Instituto Vladimir Herzog. Fizemos uma reunião semana passada fazendo um balanço do Instituto. E aí nós discutimos o prêmio Vladimir Herzog (premiação de jornalistas que trabalham o tema dos direitos humanos) E a Bianca ponderou: ´olha, o Instituto só reconhecimento, mas precisamos avançar na questão do racismo estrutural´. Tomamos várias atitudes sobre a questão racial, mas ela está enraizada na gente, é uma questão cultural mesmo. Então o próprio prêmio Vladimir Herzog, por mais que ele tenha mudado nos últimos anos, os critérios técnicos que estão lá já estão viciados numa cultura racista. Nós temos que lutar contra isso forçando a barra, para que isso um dia se naturalize a partir de uma cultura não racista. 

Esse é um processo também para as plataformas, que estão enraizadas em determinadas premissas. 

Ana d´Angelo: Rogério e para o ano que vem? Vamos pensar como vão ser as eleições. Uma das questões é que na véspera eleitoral recrudesce muito o discurso de ódio, especialmente, o racismo e as maiores vítimas são mulheres e pessoas negras (dados do SaferNet). Você vê algum ingrediente diferente nessa eleição, você acha que a gente já está entendendo melhor os processos de desinformação e sabe se defender melhor neste cenário sombrio que se vislumbra? 

Rogério Sottili: Eu li uma entrevista do Ailton Krenak em que ele reage de forma indignada sobre a pandemia estar nos ensinando alguma coisa. Eu entendo o lugar de fala dele (a população indígena está sofrendo um absurdo), mas, com todo respeito,  tenho uma diferença em relação ao Ailton Krenak sobre isso. Eu participei do governo do Presidente Lula, estive em postos importantes dos direitos humanos do governo e sei tudo o que nós conquistamos e construímos. E posso te garantir, Ana, que a minha visão hoje sobre o mundo, sobre a sociedade, sobre a questão racial, a questão de gênero, a questão indígena, sobre a questão da natureza, do meio ambiente, sobre a questão da informação, ela é muito diferente do que era na época que eu estava no governo do Presidente Lula. Ela é muito mais aberta, mais arejada, ela é muito mais conectada com o futuro, sabe? E acho que vem com a experiência de vida, de luta, de dedicação junto ao movimento social e ao terceiro setor nesse processo todo. 

Acho que essas dificuldades, essa tristeza da realidade, ela nos impôs uma reflexão sobre as nossas vidas, um aprendizado sim. Posso dizer para você que eu tenho certeza absoluta de que o Lula está muito melhor do que era antes, do ponto de vista de valores, ele se abriu muito mais, ele aprendeu muito mais sobre tudo. 

O Lula foi o presidente que mais fez pela questão racial provavelmente no mundo. Ainda assim, temos que considerar que vivemos em um país estruturalmente racista e isso precisa ser transformado, é nossa obrigação mudar essas estruturas. É um processo e tenho certeza que ele, assim como todos nós, estamos olhando para essa questão com essa perspectiva: de mudarmos as estruturas racistas que historicamente fazem parte do Brasil. 

O Instituto Vladimir Herzog vai apresentar os 10 pontos inegociáveis para o futuro presidente, nas áreas de liberdade de expressão, na área de memória, [verdade e justiça], na área de educação em direitos humanos e na área de democracia.  

Ana d´Angelo: Quando vai sair esse material? 

Rogério Sottili: O Conselho tirou isso na semana passada, agora a gente vai sair de recesso e na volta a gente vai trabalhar nisso. 

Nós estamos vivendo um processo muito rico e muito importante e nós não podemos ficar fora desse debate. Quando o socialismo real cai, você fica um pouco sem referência de para onde ir. E a democracia expõe os seus problemas porque ela não resolveu um monte de problema, nem o problema da liberdade, nem o problema da corrupção, nem o problema da participação de modo geral.  Então, vamos ter que nos debruçar sobre esse processo, eu acho que o Fórum Social Mundial, que acontece em janeiro em Porto Alegre, tem uma mega oportunidade para trazer à tona algumas questões importantes nessa perspectiva. Também não podemos deixar de aproveitar esse momento para denunciar, tanto em nível nacional e internacional, à sociedade, nas redes, toda essa violência contra democracia, contra os direitos humanos, contra a liberdade de expressão. O que a comitiva do presidente fez com a jornalista da Globo. (agentes de segurança da comitiva presidencial agrediram uma repórter da TV Bahia durante visita de Bolsonaro ao Estado)

O governo do Bolsonaro foi muito pautado pela desinformação, ele se constituiu pela desinformação, desde o tempo de Congresso Nacional. Mas nós não podemos esquecer que ele teve como sustentação, para chegar nesse momento que nós estamos vivendo, um golpe em 2016. Um golpe que também foi da desinformação e que toda a mídia participou desse golpe, como participou de todos os outros golpes também, o de 1964, do início do século passado. Quer dizer, a mídia sempre esteve nesse processo de disputa, sempre querendo impedir grandes mudanças nesse país. Então a mentira, a fake news, a desinformação, não nasce com esse governo, sempre foi parte dessa disputa. E os direitos humanos que representam, na minha concepção, o novo, que é a lógica do humanismo contra a lógica do mercado, da circulação de pessoas contra a lógica de circulação de carros, circulação de mercadorias, que é a lógica da liberdade, a lógica da participação social, é a lógica da cidadania, é esse processo que está em disputa. Então eu tenho certeza de que nós vamos sair diferentes nesse processo, nós sairemos dessa curva de recuo desse movimento do rio, retornaremos ao fluxo normal da história rumo à evolução da humanidade. Você assistiu ao filme “Jonas Que terá 25 anos no ano 2000”? 

Ana d´Angelo– Não, vou anotar. 

Rogério: É um filme belíssimo, que fala um pouco sobre essa questão da história, da visão que temos do mundo e de que vamos sempre aperfeiçoar. 

 

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