Início 9 Destaques 9 Conectar é resistir: redes comunitárias miram autonomia digital

Últimas notícias

Brasil com S

abr 26, 2025 | Destaques, Notícias

Conectar é resistir: redes comunitárias miram autonomia digital

Brasil com S
COMPARTILHAR:

Num ponto de cultura do Jardim São Luís, na Zona Sul de São Paulo, jovens se reúnem para falar de soberania digital. No Alto Rio Negro, comunicadores indígenas levam informações em pendrives por rios e trilhas até territórios sem acesso à internet. No interior do Maranhão, um jovem quilombola auxilia na expansão de conexão por outros territórios. São histórias diferentes, unidas por uma mesma pergunta: e se a conectividade nascesse do território, ao invés de chegar de fora para dentro?

As redes comunitárias despontam como uma possibilidade frutífera de resposta prática e política para essa pergunta. Construídas por e para as comunidades, elas surgem em regiões onde nem mesmo os pequenos provedores comerciais de internet conseguem ou querem chegar. Mas mais do que preencher lacunas, essas redes constroem futuro, sustentado na autonomia, na colaboração e na resistência local.

A autonomia como ponto de partida

Segundo a pesquisa TIC Domicílios 2024, 29 milhões de pessoas seguem sem acesso à internet no Brasil, número que repete os dados de 2023. Entre os que estão conectados, 22% dependem apenas de Wi-Fi e 4% exclusivamente de redes móveis, frequentemente instáveis e com acesso limitado. A maioria dos planos é pré-paga, um reflexo das desigualdades no acesso à tecnologia, e entre os mais afetados estão povos tradicionais, como indígenas e quilombolas, populações rurais e das periferias urbanas.

“Essas redes não surgem para competir com os grandes provedores, mas para atender onde eles não chegam ou não se interessam em chegar. Lugares onde o investimento não se paga”, explica Bruna Zanolli, da Local Networks Initiative (LocNet), iniciativa internacional de fomento a redes comunitárias que teve início em 2017 em uma colaboração entre a Rhizomatica e a Associação para o Progresso das Comunicações (APC).

A diferença vai além do alcance: enquanto as operadoras seguem lógicas empresariais, as redes comunitárias apostam na autogestão, no fortalecimento das capacidades locais e no uso ético da tecnologia. “É um projeto sobre conectividade, não sobre internet em si”, complementa Bruna.

Territórios que criam seus próprios caminhos

Na periferia de São Paulo, a rede comunitária da Casa dos Meninos se estrutura sobre três pilares: apropriação do território, acúmulo científico e saber popular. Para Daiane Araújo, educadora e gestora da rede, é uma forma de disputar os usos da tecnologia: “Hoje as tecnologias são usadas para enriquecer bilionários. Mas elas também podem ser usadas para criar outras condições de vida”.

Na região do Alto Rio Negro, no Amazonas, a Rede Wayuri de comunicadores indígenas tem enfrentado a ausência de internet com criatividade e persistência. Eles criaram uma rádio online para levar informação a dezenas de aldeias da região do Alto Rio Negro, onde não há estrada e a comunicação depende de rios e longas viagens. “Nosso boletim de áudio ainda circula em pendrives. A gente coloca em uma caixa de som, e a comunidade ouve”, relata Juliana Albuquerque, comunicadora da rede.

Como ainda há locais sem acesso à internet, o formato funciona com base na realidade do território, em um modelo que reinventa a circulação de informação.

No Quilombo Itaperinha, em Tutóia (MA), Douglas Barbosa participou de uma tentativa de implementação de rede comunitária que não se sustentou no longo prazo. Ainda assim, a experiência foi decisiva: “Essa experiência foi tão marcante que acabou por direcionar meu caminho profissional”.

A formação técnica recebida por meio do Instituto Nupef abriu portas para que ele atuasse como multiplicador, auxiliando outros territórios quilombolas a construírem suas redes. “Podemos acessar políticas públicas, preservar nossas histórias e enxergar o mundo com outros olhos”, diz Douglas. Ao lado de outros jovens, ele integrou o projeto Territórios Resilientes e Conectados, promovendo trocas entre comunidades e inspirando novas redes a partir de sua trajetória.

Atividades de campo do projeto Territórios Resilientes e Conectados. Autoria: Nayanne dos Santos.

Exemplos de diferentes locais do mundo também foram trazidos por Bruna Zanolli, como na Argentina, onde uma rede construída pela organização AlterMundi conecta diversos municípios da região de Córdoba a partir do uso compartilhado da infraestrutura de uma universidade pública. O projeto desenvolveu seu próprio hardware e software livre, facilitando que as próprias comunidades implementem e mantenham suas redes.

Na Colômbia, a Rede de Desenvolvimento Sustentável Colnodo utiliza sensores ambientais para monitorar a qualidade da água e do ar. O mesmo ocorre no Quênia, onde comunidades locais têm utilizado essas ferramentas para medir o impacto da exploração de carvão, gerando dados independentes que muitas vezes contrastam com os números divulgados por empresas ou governos. Na Nigéria, o projeto MAJI utiliza a tecnologia para visualizar potenciais impactos ambientais da extração e do refino de combustíveis fósseis na vida de populações rurais.

Redes comunitárias: resistência como horizonte

As redes comunitárias são ferramentas de luta e também de futuro. “Elas não só conectam, como ensinam. A formação que promovemos transforma os jovens em agentes ativos de transformação”, conta Carol Magalhães, do Instituto Nupef, que atua na formação de lideranças em diversos territórios. 

“É soberania digital na prática, é resistência à imposição de modelos de fora, é respeito aos modos de vida”.

Carol Magalhões, do Instituto Nupef

De acordo com um estudo do Cetic.br, as redes comunitárias vêm se consolidando como alternativas concretas para promover a inclusão digital em regiões historicamente marginalizadas, especialmente em áreas com pouca ou nenhuma infraestrutura de Internet.

A pesquisa revela que 83% destas redes estão presentes em localidades remotas e vulneráveis, sendo 40% em quilombos ou territórios quilombolas, 33% em aldeias ou territórios indígenas e 23% em áreas ribeirinhas. Mais do que garantir acesso à conectividade, essas iniciativas nascem, em sua maioria, de territórios com forte organização social, impulsionadas por objetivos que envolvem o fortalecimento da comunicação local, o acesso a direitos e a resistência territorial, é o que aponta o estudo.

Carol Magalhães, do Instituto Nupef, reforça essa ideia: “As formações não envolvem apenas aspectos técnicos, como configurar roteradores e torres, mas também contribui para o desenvolvimento crítico sobre soberania digital, segurança de dados e uso ético da tecnologia”.

É nesse cruzamento entre o técnico e o político que essas redes se tornam ferramentas de autonomia. “Os jovens deixam de ser apenas usuários passivos da tecnologia e se tornam agentes de transformação, tomando decisões técnicas e políticas sobre o uso da conectividade”, diz Carol.

Atividades de campo do projeto Territórios Resilientes e Conectados. Autoria: Fabrício Serrão.

Para Bruna Zanolli, as redes comunitárias propõem uma forma de conectividade que nasce das necessidades e possibilidades locais, e não da lógica de mercado. Essas redes podem ser erguidas com materiais acessíveis, como bambu, e funcionar com energia solar, reduzindo impactos ambientais. 

Mais do que acesso à internet, elas podem viabilizar serviços diversos: rádios comunitárias, servidores locais, sistemas de troca de bens, moedas locais e formas próprias de governança digital. Ao fortalecer a autonomia tecnológica e a organização comunitária, elas apontam para modelos sustentáveis, solidários e plurais de comunicação ancorados no território e voltados para a coletividade. Nesse sentido, Daiane Araújo destaca que “as redes comunitárias são talvez o único projeto que dialoga diretamente com as bases sobre tecnologias, tentando fazer com que esse diálogo não fique restrito a grupos específicos. As redes tentam conversar com as bases e construir comunicação com elas”.

Caminhos abertos, mas com obstáculos

Apesar de seus impactos positivos, as redes comunitárias ainda enfrentam entraves regulatórios, financeiros e técnicos. Não há políticas públicas permanentes de apoio à criação ou manutenção dessas redes. “Elas sobrevivem com apoio de editais, prêmios e parcerias, muitas vezes de fora do Brasil”, explica Bruna.

“O modelo do Serviço Limitado Privado (SLP) funciona, mas falta acesso a redes de alta capacidade. Muitas vezes as redes comunitárias precisam dividir uma conexão de casa com dezenas de famílias”, afirma. Ela defende a criação de políticas públicas que reconheçam e incentivem esses projetos, não como ameaça, mas como complemento essencial à inclusão digital.

Juliana Albuquerque concorda: “A regulamentação é essencial para que a gente possa acessar editais, formalizar as redes e garantir sustentabilidade. Hoje, muitas funcionam de forma voluntária, mas isso tem limite”.

Além das dificuldades técnicas e regulatórias, muitas dessas redes surgem em territórios que já enfrentam múltiplas camadas de desigualdade — onde o acesso a direitos básicos como educação, saneamento, renda e até mesmo energia elétrica é precário ou inexistente, é o que alertou Carol Magalhães.

A preocupação é compartilhada por Zanolli, que explicou que nessas regiões, a conectividade não é apenas uma demanda digital, mas parte de uma luta mais ampla por dignidade e cidadania. As redes comunitárias, nesse contexto, funcionam também como ferramentas de auto-organização, permitindo que comunidades em situação de vulnerabilidade, muitas vezes inseridas em contextos de disputa territorial ou sob ameaça, se articulem, denunciem violações e exijam seus direitos com mais segurança e visibilidade.

Esperança que se espalha

O que une essas experiências, de acordo com as pessoas entrevistadas, é a vontade de existir com autonomia. São iniciativas que não apenas conectam, mas transformam relações, ativam memórias e constroem pertencimento. São, ao mesmo tempo, infraestrutura e sonho. Em tempos de plataformas globais predatórias e vigilância em rede, as redes comunitárias nos lembram que a comunicação pode ser construída desde as bases.

COMPARTILHAR:
0
Would love your thoughts, please comment.x