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Pontos de vista

set 20, 2021 | pontos de vista

Quando o jornalismo apressado leva à desconfiança

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No início de julho, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma reportagem de dados que chamava a atenção da população para a aplicação de vacinas vencidas. O texto indicava que cerca de 26 mil doses do imunizante da AstraZeneca estavam fora da validade quando foram aplicadas em mais de 1.500 municípios. A reportagem, a mais lida da história do jornal, segundo o ombudsman da Folha, baseava-se em uma análise da base de dados publicada pelo Ministério da Saúde. Os dados, contudo, trouxeram mais desinformação que esclarecimento.

A reportagem gerou um grande burburinho nas redes sociais e nos comentários no site do jornal. Enquanto alguns municípios rapidamente rebateram as acusações, outros confirmaram que existiram alguns casos de vacinas vencidas aplicadas e prometeram tomar medidas. As informações divergentes geraram muito ruído levando à desconfiança das pessoas e acusações de que o jornal teria espalhado fake news.

A correção só veio quatro dias depois. A reportagem foi escrita com a suposição de que os dados do DataSUS refletiam fielmente a realidade quando, na verdade, havia muitas falhas na inserção dos registros de vacinação e duplicação da entrada de dados.

Todo ser humano é passível de erros e com jornalistas não seria diferente. Porém, a falta de checagem dos dados e a demasiada confiança na suposta objetividade que os dados prometem acabou gerando esse equívoco.

Dados são produtos feitos por pessoas e estão sujeitos a refletirem comportamentos tendenciosos na sua produção. Por esse motivo, pesquisadores defendem que a objetividade de dados não existe e é preciso checar cuidadosamente a forma como foram produzidos. Também é preciso tomar cuidado na manipulação de dados pelos jornalistas para evitar análises superficiais ou equivocadas.

Em um estudo publicado na revista científica Journalism Practice, os pesquisadores Jingrong Tonga e Landong Zuo apontam três problemas com os dados. Primeiro, existe uma dificuldade de os profissionais verificarem a credibilidade e a neutralidade das fontes de dados. Isso é particularmente preocupante no jornalismo, que utiliza dados de raspagem de portais ou dados abertos fornecidos por entidades públicas. Além disso, jornalistas investigativos costumam trabalhar com vazamento de informações. Qualquer uma dessas bases de dados pode vir incompleta ou trazer informações relevantes apenas para a fonte que as forneceu.

O segundo ponto é que existe tanto uma desigualdade no acesso como na representação dos dados. Durante a pandemia, diversos grupos não foram incluídos entre os contaminados pelo novo coronavírus devido ao acesso restrito aos serviços públicos. Dessa forma, os casos não refletem o cenário real, excluindo moradores de áreas periféricas e suburbanas.

Terceiro, jornalistas não têm informações suficientes sobre os contextos de coleta e produção de dados. Diferentes formas de coleta podem distorcer os dados. Por exemplo, no caso de pesquisas eleitorais, as perguntas influenciam o resultado da sondagem.

Independente dos meios pelos quais os jornalistas coletam seus dados, as decisões sobre quais informações são pertinentes e o entendimento sobre as formas como os dados foram coletados é essencial no processo de combater informações falsas ou enganosas. No caso da Folha, a extrema confiança nos dados acabou causando medo, descrédito e levou o veículo a ser acusado de disseminar desinformação.

É importante apontar as limitações dos dados, os processos metodológicos adotados na análise e até, se possível, criar repositórios com os códigos usados para que outras pessoas possam replicar e checar as análises. Dessa forma, jornalistas poderão identificar erros mais rapidamente e corrigi-los a tempo de evitar uma avalanche de desinformação.

 

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Mathias Felipe

Jornalista, cientista da computação e pesquisador, trabalhou para organizações do Brasil e do exterior. Interessado nas mudanças da prática jornalística, em particular dados e novas tecnologias.

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