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Pontos de vista

set 2, 2024 | Pontos de Vista

Um cálculo de alto risco: Como a militância de Elon Musk interfere na distribuição de conteúdo no X

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A transição entre o antigo Twitter e o atual X, adquirido por 44 bilhões de dólares em 2022 por Elon Musk, foi recheada de mudanças repentinas e contestadas. Trocou nome, logo, cor. Dissolveu o Conselho de Confiança e Segurança, que existia desde 2016 para escuta externa de especialistas em direitos humanos. Extinguiu o núcleo de políticas públicas. Bloqueou diversos jornalistas e ativistas críticos. Impediu menções ao Substack e links do Threads. Suspendeu o acesso padrão gratuito à API. Passou a permitir anúncios políticos e comunidades de conteúdo adulto. Publicou o código do algoritmo de recomendação no GitHub, mas usuários reclamam da falta de atualização. A lista é extensa, e as medidas contraditórias. 

Qualquer usuário ativo percebe que a experiência no X e a forma como os tuítes (sic) são classificados na aba-agora-padrão “Para Você” foram alteradas substancialmente: a tendência à tiktokização, não apenas pela prioridade habitual da internet pelo formato vídeo, mas pelo estilo de vídeo típico da plataforma-concorrente; o aumento das fronteiras, com tentativa de coibir ligação externa à web e a outros provedores; a maior exposição a posts virais esquisitos, assim como a perfis e a publicações da direita radical; e, claro, a onipresença dos posts da conta oficial de Musk, que aparece a quase todos e a qualquer momento em que se acessa a plataforma. 

Não apenas temos sido expostos a uma quantidade maior de publicações do perfil oficial de Musk, mas a postagens de teor partidário e ideológico do dono da própria plataforma, um recuo no paradigma da “neutralidade” política das grandes mídias sociais – o X é o quinto site mais acessado no mundo, segundo ranking recente do Similarweb, à frente da Wikipedia e do Amazon. Musk parece imitar a forma de agir dos gestores da Gettr e outras plataformas digitais que possuem pouca ou nenhuma moderação de conteúdo, que tomam partido e que permitem a expressão de opinião ideologicamente nociva e perigosa como se isso fosse sinônimo de defesa do princípio da liberdade de expressão. 
Elon Musk tem compartilhado perfis anônimos e suspeitos, fontes contestadas, muitas delas ligadas à direita radical dos Estados Unidos, América do Sul e Europa, além de mensagens de teor inflamatório, contencioso e até ilegal. Em agosto, o dono do X chegou a compartilhar postagem da co-líder de um partido da far-right britânica com manchete fabricada do site The Telegraph no contexto dos atos anti-imigração no Reino Unido, que dizia que o primeiro-ministro trabalhista considerava construir campos de detenção para enviar agitadores detidos. Elon Musk reverteu o compartilhamento depois de o post ficar 30 minutos no ar, sem qualquer correção ou comunicado e quando já tinha dois milhões de impressões. 

Publicação com desinformação compartilhada por Elon Musk

No universo paralelo da falsificação, em julho, Musk repostou e se divertiu com o vídeo deepfake criado por um youtuber de direita, em que insere voz de Kamala Harris como uma paródia da peça de campanha “We Choose Freedom”, para simular que a candidata chamou Joe Biden de “senil”, de “incompetente” e de “fantoche do estado profundo”, aludindo a teorias da conspiração. Post e vídeo continuam no ar. Segundo levantamento da Center for Countering Digital Hate (CCDH), organização sem fins lucrativos que o X processou numa tentativa sem sucesso de silenciá-la em 2023, Elon Musk publicou pelo menos 50 postagens com alegações eleitorais prejudiciais relacionadas às eleições dos EUA, já corrigidas ou desmanteladas por iniciativas de fact-checking, que teriam atingido o pico de 1.2 bilhão de visualizações. Os exemplos são listados em post da CCDH no X

No mês de abril, o X promoveu, na seção de notícias e tendência, uma peça de fake news gerada pela IA Grok, de que é proprietária. “Irã ataca Tel Aviv com mísseis pesados”, dizia a manchete inventada pela IA do X, que apareceu em destaque na plataforma na semana em que Israel realizou ataque aéreo contra a embaixada do Irã na Síria e em que uma retaliação passou a ser debatida nos media. É importante relembrar que a equipe de curadoria de notícias do antigo Twitter, composta por editores (humanos!), foi abolida na transição para a era X. Ironicamente, o próprio Elon Musk posta e reposta tanta informação falsa ou incompleta que não é raro ver a seção “contexto adicionado pelos leitores”, do Notas da Comunidade, acoplada às postagens do dono do X. Reportagem do The Verge mostrou que a usuários premium têm sido oferecida a possibilidade de criar e publicar peças de deepfake geradas pelo Grok a partir de prompts de texto sobre quase tudo o que pode ser considerado enganoso, impróprio, discriminatório, perigoso e violento. 

No Brasil, o histórico é conhecido e não precisa ser recontado. Com o bloqueio do serviço consumado no sábado (31) até segunda ordem, Musk mantém a ofensiva contra Alexandre de Moraes. No domingo (1), publicou um post afirmando que o ministro do STF pode pegar até 20 anos de prisão por tentar interferir nas eleições brasileiras de 2022. Pela primeira vez na história do Twitter/X, Musk lançou uma conta afiliada ao X de teor político, com selo de verificação amarelo, chamada “Alexandre Files”, que promete “revelar as diretivas ilegais emitidas ao X por Alexandre de Moraes”. Sem mencionar a enorme quantidade de posts de perfis aleatórios, sem qualquer critério, sobre questões internas do Brasil, que começam a ser repercutidos em contas conhecidas de comunidades conservadoras radicais, como o End Wokeness. Tem dito que irá lançar a VPN do X, antevendo que ações de bloqueio do serviço podem ser pedidas na União Europeia. Tem tentado reacender a alegação de fraude nas eleições dos Estados Unidos e do Brasil. Tem promovido o X como um espaço onde se encontra a “verdade” frente à “luta global como o autoritarismo”. 

Toda esta história levanta questões e desafios para qualquer tentativa de regulação de plataformas digitais e, mais precisamente, da atividade de moderação de conteúdo. O proprietário do provedor de serviço de internet que publica comunicados institucionais da plataforma junto a diversos outros tipos de informação política deve ser considerado editor ou distribuidor de conteúdo da plataforma de que é proprietário? Isto é, se um proprietário de um serviço de internet não apenas fornece infraestrutura, mas seleciona e produz conteúdo reiteradamente, deverá ser considerado um produtor e editor de conteúdo institucional? Como a militância de Musk interfere na distribuição de conteúdo no X? O provedor de aplicação de internet poderá ser responsabilizado por conteúdo gerado pelo dono da própria empresa? Em resumo: Musk deve mesmo ser tratado como um usuário comum do X? São tipos de questões que merecem mais reflexão e que Musk arrisca enfrentar na Justiça.

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Tatiana Dourado

Doutora em Comunicação pela UFBA. Realiza pósdoc no MediaTrust.Lab (Universidade da Beira Interior, Portugal). Pesquisadora associada ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital e diretora de Formação e Literacia no Instituto Democracia em Xeque.

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