Início 9 Pontos de Vista 9 Academia e sociedade civil: um diálogo necessário no combate à desinformação

Pontos de vista

jul 29, 2024 | Pontos de Vista

Academia e sociedade civil: um diálogo necessário no combate à desinformação

COMPARTILHAR:

Um dos maiores desafios postos àqueles que trabalham com produção e compartilhamento de conhecimento é conectar produção de conhecimento da academia científica com a produção de conhecimento da sociedade civil para gerar ganhos reais e efetivos para a cidadania.

A academia, setor da sociedade que faz pesquisa e ciência, enfrenta, desde sempre, uma provocação ao papel que lhe é atribuído: fazer com que todo esse conhecimento por ela produzido chegue até “a ponta” e resulte em alguma mudança social concreta, ou seja, traga melhorias para a sociedade e beneficie, em certa medida, a vida dos cidadãos. Pouco ou nada adianta a produção de estudos sobre desastres naturais se eles não puderem, ao fim, ser usados para salvar as vidas daqueles que por eles seriam afetados, ou pesquisa sobre mobilidade urbana que não possa melhorar a circulação dos moradores das grandes cidades, ou até estudos da área da saúde sobre fármacos que podem curar doenças se os cidadãos não puderem fazer uso destes para melhorarem a saúde e assim por diante. Os achados das investigações e pesquisas devem, ao fim, ser “convertidos” em soluções reais, seja, por exemplo, em produtos, como é o caso de medicamentos, seja políticas públicas concretas, que consistam em medidas e diretrizes que devem ser adotadas por governos para atender às necessidades da sociedade.

Nas ciências sociais não é diferente. Vamos usar como exemplo aqui a desinformação, que age justamente no sentido de atacar e negar a verdade, a ciência e os fatos. A academia vai trabalhar no sentido de compreender profundamente – e por uma perspectiva teórico/normativa – o problema por meio da análise dos ambientes digitais (mais precisamente, da análise de dados que afiram sobre a qualidade do debate público) que são o locus da disseminação e espraiamento da desinformação. Neste sentido, se, ao fim, a análise criteriosa do fenômeno caminha para o entendimento de que é preciso propiciar aos cidadãos ambientes de discussão mais saudáveis, plurais e democráticos e uma esfera de discussão pública de qualidade – o que hoje passa, invariavelmente, pelo debate acerca do papel que exercem as plataformas de redes sociais como mediadoras da (des)informação que chega aos cidadãos -, é preciso pensar sobre o que pode ser feito dentro da lógica em que este ecossistema atua, para (1) diminuir a circulação de desinformação e (2) aumentar a circulação da informação íntegra e de qualidade. Neste ponto, entra a atuação da sociedade civil, tanto na pressão frente às plataformas (exigindo medidas eficazes e transparentes para moderação de conteúdo, por exemplo), quanto no diálogo com o poder público (parlamento e Executivo para a elaboração de uma legislação robusta e eficaz, por exemplo). Este trabalho de advocacy realizado pela sociedade civil nesta pauta específica vai no sentido de tentar assegurar ao chamado sul global direitos e garantias já alcançados pelos países do norte global, como, por exemplo, o acesso a dados das plataformas para que pesquisadores consigam analisar o debate público.

Ao fim, para que os estudos sobre a desinformação reflitam no aumento da circulação de informação íntegra e na qualidade na esfera pública digital, é imprescindível que haja a tão falada “atuação multissetorial” ou “trabalho multi-stakeholder”, que pudemos ouvir nas explanações de figuras importantes da área que debateram sobre o tema no NETmundial +10 que aconteceu em abril de 2024, em São Paulo.

A ciência, cabe ressaltar, tem o seu tempo peculiar. Por este prisma, os problemas devem ser pensados, formulados e debatidos nos espaços acadêmicos, as hipóteses devem ser testadas, deve haver troca, é necessário que haja experimentos, publicações, revisões por pares. Trata-se, portanto, de um campo essencial da sociedade, que atua para a formação de pesquisadores capacitados a entender as demandas e necessidades dos novos tempos, dos diferentes contextos, e produz conhecimento e verdade. Por outro lado, os anseios, problemas e necessidades da sociedade são imediatos e urgentes.

Quando pensamos nas atuações da sociedade civil para a solução de problemas sociais, precisamos pensar a partir da perspectiva de que o seu tempo é outro, as organizações que nelas atuam podem produzir conhecimento sobre o mesmo problema tratado pela perspectiva acadêmica, porém por diferentes ângulos enfoques e timing. São diferentes lógicas, dinâmicas e propósitos.

Atores e organizações da sociedade civil trabalham: (1) no diagnóstico de problemas sociais – aqui, no entanto, este diagnóstico é feito a partir de estudos e pesquisas que seguem lógicas diferentes daquelas da academia, ou seja, são, em certa medida, mais rápidos e menos aprofundados, haja vista as urgências das questões que precisam ser mitigadas, resolvidas; (2) na solução dos problemas detectados, ou seja, após a detecção de determinado problema, a sociedade civil trabalhará para solucioná-lo de maneira mais ativa e pragmática e, ainda (3) na fiscalização das ações do Estado e na pressão para transformarem em políticas públicas aspectos que consideram fundamentais das causas que representam – o chamado advocacy. O intuito aqui pode ser, por exemplo, de colaborar para a oferta de serviços básicos e para a promoção e garantia de direitos humanos e combate às desigualdades. A sociedade civil trabalha no sentido de influenciar de maneira mais direta a formulação e execução de políticas públicas mais urgentes, papel que não pode – nem deve – ser exercido pela academia.

Falamos aqui de atores cujas atividades são essenciais para o avanço da sociedade, a melhora da vida das pessoas. Para que estas atividades se interrelacionem, entendemos que é preciso pensar a produção de conhecimento como um ciclo, que deve funcionar continuamente e se retroalimentar. Faz-se necessário o diálogo entre as partes para a concepção, o diagnóstico e a resolução de questões sociais. É preciso haver o trabalho atuante de universidades e pesquisadores para o fazer científico autônomo, isento, verificado e respaldado, mas é importante e essencial também que esse conhecimento seja compartilhado com a sociedade, alcance a outra ponta e influencie a esfera de tomada de decisões para que consiga gerar melhorias e trazer ganhos reais para as pessoas. 

COMPARTILHAR:
Maria Paula Almada

Diretora de Projetos do Aláfia Lab, Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Facom/UFBA). Realizou estágio-doutoral na School of Public Affairs and Administration, Rutgers University (EUA) e estágio de pesquisa no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Atualmente é pesquisadora INCT.DD e coordenadora do Grupo de Trabalho “Governo e Parlamento Digital” da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica).

0
Would love your thoughts, please comment.x