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Acervo pessoal

jul 22, 2024 | Pontos de Vista

Abin paralela: como ir além do escândalo e evitar reincidir no mesmo problema?

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As novas revelações sobre a Abin Paralela, tornadas públicas recentemente envolvem, desde uma preocupante sugestão de assassinato do Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes à vigilância de figuras políticas importantes, incluindo o presidente da Câmara dos Deputados, o deputado Arthur Lira, os Senadores Renan Calheiros e Alessandro de Vieira, diversas ONGs, jornalistas de renome, agentes do IBAMA e até auditores da Receita Federal que investigaram o filho do então presidente, o Senador Flávio Bolsonaro, passando até pela criação e uso de contas em redes sociais com o intuito espalhar informações e narrativas falsas

A vigilância aqui poderia antecipar ações de adversários, como a denúncia de abusos de poder, viabilizando, por exemplo, tentativas de ‘envenenar a fonte’ para neutralizar o conteúdo da crítica. Ou seja, sujar o nome de quem viria a denunciar algum dos muitos crimes perpetrados pela gestão Bolsonaro. Também permite perceber mudanças nos alinhamentos políticos, de adversários e aliados. Essa estrutura de inteligência também auxiliou nos esforços de sujar o meio de campo do jogo democrático, informando como melhor desinformar, por exemplo, sobre o sistema eleitoral.

Muita coisa ainda pode e, espero, deve aparecer, mas está claro o nível de desvio e abuso da estrutura da Agência Brasileira de Inteligência que ocorreu durante o Governo Bolsonaro. Não foi, claro, a única estrutura estatal sequestrada para fins pessoais e políticos pelo o grupo que ocupou o Governo Federal entre 2019 e 2022.

Tampouco é a primeira vez que o serviço de inteligência persegue fins problemáticos, para dizer o mínimo, no Brasil. Após o fim do Serviço Nacional de Inteligência da Ditadura Cívico-Militar brasileira, a Subsecretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) executou, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, o monitoramento de lideranças de movimentos sociais, como João Pedro Stédile do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, assim como líderes de oposição, como revelou Paulo Motoryn do Intercept Brasil, em 2023. Stédile, revela Motoryn, preocupava o Governo FHC, pois poderia ser um presidenciável a disputar 1998 com o então presidente.

A Abin, criada em 1999, substituiu a SAE, mas os escândalos não pararam aí. Em 2008, reportagem da Veja denunciou que o ministro Gilmar Mendes teria sido alvo de escuta telefônica, durante a Operação Satiagraha. Segundo a reportagem da Veja, contudo, políticos importantes de todo o espectro político teriam tido sua privacidade invadida sem justificativa legal adequada. 

Outro porém vale ser lembrado. Não é só na Abin que esse tipo de violação ilegal da privacidade tem ocorrido para fins políticos. Na Revista Piauí de dezembro de 2023, Allan de Abreu denunciou o abuso de ferramentas de intrusão em diversos estados brasileiros, como no Amazonas, onde foi denunciado ao Ministério Público do Estado que “agentes da Secretaria de Segurança estavam extorquindo comerciantes de ouro depois de monitorá-los com o GI-2 e outro programa, conhecido como Guardião”.

O caso do Amazonas, assim como do First Mile, ferramenta abusada no caso da Abin Paralela, alerta que há uma novidade nesses escândalos. 

O inédito aqui é a capacidade de intrusão na vida privada possibilitada pelo desenvolvimento e difusão das Tecnologias de Informação e Comunicação. Com a telefonia e internet móvel integrando cada vez mais o âmago de diversas atividades humanas e esferas da sociedade, incluindo o acesso aos serviços públicos, e um modelo de negócios baseado na exploração de dados pessoais, há uma infraestrutura pronta para ser explorada também pelo setor público, especialmente útil às forças interessadas no controle das pessoas e suas condutas e pouco afeitas ao debate público aberto, honesto e democrático.

Essas agências podem, por meio diversos, ter acesso a uma ampla gama de informações coletadas sistematicamente por nossos dispositivos, como localidade, busca, comunicações, atividades nas redes sociais, finanças e dados pessoais – como idade, nome, gênero, etc – e biométricos – como características faciais – e, não menos importantes, os metadados, ou seja, quando, onde e como foram produzidos esses dados.

Apesar de o Brasil não ter capacidade tão alta de desenvolver suas próprias ferramentas de intrusão em dispositivos, sistemas e redes, empresas privadas têm agressivamente se disponibilizado a sanar essa falta. Com forte lobby, geralmente usando de pessoas com boa circulação em forças de segurança, elas têm alcançado contratos milionários com órgãos públicos. 

Esse é o caso da Cognyte, empresa israelense responsável pelas ferramentas GI-2, do caso do Amazonas, e do First Mile, usado pela Abin. O representante comercial era ninguém menos que Caio Santos Cruz, filho do general da reserva do Exército Carlos Alberto dos Santos Cruz, que foi secretário nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, durante o governo Temer, e ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência do Brasil de Jair Bolsonaro.

Por todo o país, há algum nível de capacidade de intrusão digital. É o que revelamos no estudo “Mercadores da Insegurança: conjuntura e riscos do hacking governamental no Brasil”, do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec), publicado em novembro de 2022. 

Usando a Lei de Acesso à Informação e os Portais de Transparência, encontramos, entre 2015 e 2021, 209 documentos contratuais a nível estadual e federal, compreendendo compra, treinamento de funcionários, termos aditivos, atualização de software e outros atos administrativos que comprovam que determinadas ferramentas de hacking estão e/ou estiveram em uso no país. 

No entanto, apesar desse poder inédito de intrusão, o quadro regulatório atual é insuficiente, para dizer o mínimo. Não há base legal específica e tampouco levam em consideração testes de necessidade e proporcionalidade diante dos níveis inéditos de violação aos direitos fundamentais derivados do acesso indiscriminado a dados pessoais que proporcionam. 

Nesse vácuo regulatório da aquisição e uso de capacidades intrusivas, ainda existem ferramentas que são adquiridas de maneira sigilosa, dificultando mais ainda o escrutínio público sobre esses grandes novos poderes. Além de investigar os abusos cometidos durante o governo Bolsonaro, é importante que a sociedade brasileira possa avançar e criar mecanismos legais, políticos e técnicos efetivos e eficazes para prevenir que os demandos se repitam novamente.

Para irmos além da indignação com os escândalos da vez, defendo que o primeiro passo é ampliar e fortalecer os procedimentos burocráticos que regem e registram as aquisições e uso de tecnologias de intrusão digital. Esses registros são essenciais para controle e responsabilização das pessoas envolvidas em abusos e violações. 

Por fim, mas tão importante quanto, é necessário fortalecer a transparência e o acesso à informação. Estes são essenciais para abertura da conversação pública que estamos tendo agora sobre a Abin Paralela e inibir abusos futuros. Apesar da natureza sigilosa das atividades inteligência e investigação, algum nível de transparência tem que ser possível. Se a democracia morre nas trevas, a luz do dia pode ser o melhor remédio.

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Pedro Amaral

Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco, mestre e bacharel pela mesma instituição. Coordenador de projetos e pesquisador do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife - IP.rec. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas de Segurança (NEPS) da Universidade Federal de Pernambuco. Coordenador do Grupo de Trabalho de Criptografia no Capítulo Brasil Internet Society. Membro da Rede da Surveillance in the Majority World Research Network. No IP.rec, co-coordena o Observatório da Criptografia (obcrypto.org) e lidera a atuação sobre hacking governamental, spyware e intrusão cibernética estatal.

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