Em um momento em que a Inteligência Artificial está sendo usada sem critérios e em aliança com práticas de monetização de conteúdo, as redações precisam deixar claro para o leitor como e para quê estão fazendo uso dessas ferramentas. Para o jornalista Sérgio Spagnuolo, fundador do Núcleo Jornalismo, por outro lado, esses novos modelos de linguagem são uma possibilidade de criar conteúdos que fortaleçam a democracia durante as eleições de 2024. Spagnuolo também é fundador da agência de jornalismo de dados Volt Data Lab e Knight Fellow do International Center for Journalists (ICFJ). Mestre em Relações Internacionais e Direitos Humanos pela PUC-SP, foi fellow do Tow-Knight Center for Entrepreneurial Journalism, em Nova York. Leia a entrevista concedida ao *desinformante para a série #panorama2024.
Ana d’Angelo: O Núcleo Jornalismo foi o primeiro veículo brasileiro a criar diretrizes para o uso da IA na redação. Queria começar por essa iniciativa que, pelo que li, não substitui o repórter, nem a apuração, e faz um uso parcimonioso da IA, como um assistente. Vocês já estão usando a IA generativa no dia a dia, como tem sido isso?
Sérgio Spagnuolo: Não tem muito mais jeito de fugir da Inteligência Artificial agora, né? Os jornalistas não têm nem o luxo de ignorar que isso existe. No Núcleo a gente não está vendo como um risco ou como uma obrigação, a gente está vendo como uma oportunidade. Quando lançamos a nossa política de uso de Inteligência Artificial, pensamos justamente em como fazer um uso responsável desse tipo de tecnologia, como aplicar isso para o nosso cotidiano porque é muito útil. A gente tem usado bastante. Desenvolvemos o nosso próprio chatbot baseado no nosso conteúdo, em um modelo de linguagem pago.
Claro, temos que pensar nos riscos e nos ganhos, mas principalmente pensar na inevitabilidade. Vamos ter que usar e promover melhores práticas de uso. É muito importante que os jornalistas tenham isso em mente antes de falar: “ah, não, isso vai roubar emprego, vai piorar conteúdo”. Tem potencial de fazer tudo isso, mas também tem potencial de ajudar em edição. Como os modelos de linguagem são treinados com muitos dados, eles não têm, ou pelo menos eu nunca vi, erro de ortografia. Às vezes você está editando um texto longo, e você pode ser o melhor editor, sempre vai sair um erro, mas a Inteligência Artificial não deixa isso escapar. A gente usa muito para a checagem de ortografia.
Conteúdo jornalístico treina IAs generativas
Matheus Soares: Pensando também nessa explosão das deepfakes, das imagens sintéticas, teve aquele caso [ da imagem ] do casaco do Papa, que a “Vogue” chegou a publicar como notícia real. Quais os desafios e responsabilidades das redações nesse mundo com a IA presente?
Sérgio Spagnuolo: Eu acho que a redação que não tem uma política aberta e pública de uso de Inteligência Artificial, mostrando como você está promovendo esse uso para fora e para dentro. Se você usar por acaso uma Inteligência Artificial em algum conteúdo e não for claro em relação a isso, não fizer disclaimers, não deixar claro para o leitor, você corre o risco disso ter um efeito na sua credibilidade também. Isso aconteceu algumas vezes nos Estados Unidos. Tem o caso da “Sports Illustrated” e outros casos que utilizaram ferramentas generativas de Inteligência Artificial sem aviso, descobriram e isso pegou mal para a credibilidade do veículo.
Se o jornalista já tinha que ser cuidadoso antes, tem que ser ainda mais, sempre desconfiar das coisas, checar com fontes primárias. O básico do jornalismo agora é mais sério e mais necessário, sob o risco de publicar coisas desinformativas. Tem algo muito importante que ninguém está falando, que é como a Inteligência Artificial está sendo usada em aliança com o SEO e práticas de monetização de conteúdo a partir da plataforma do Google. Isso está corroendo a internet agora, e não tem a ver nem com desinformação, tem a ver simplesmente com conteúdo sendo cuspido para bater nos critérios de Search Engine Optimization do Google e começar a monetizar. Então a qualidade do conteúdo vai cair muito, vai ter muito spam. A internet vai virar um spam se a gente deixar. Esse é mais problema das plataformas que habilitam esse tipo de modelo de negócios para outras organizações ou para pessoas que só querem explorar isso e não produzir conteúdo verificável.
Ana d’Angelo: Já que você está puxando esse assunto, qual modelo você acha que seria mais adequado para a regulação das plataformas? Pensando não só [no PL] 2630, mas o 2370, que é o projeto que acabou aglutinando tanto direitos autorais, como remuneração do jornalismo.
Sérgio Spagnuolo: Esses dois projetos não encampam tanto a Inteligência Artificial especificamente. Por serem abrangentes, eles vão acabar pegando alguns pontos de grandes empresas e plataformas de Inteligência Artificial, mas eu acho que essa regulação vai ser um bom primeiro passo para a gente começar a falar de regulação de plataformas de IA, como está sendo feito nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos as coisas também não andam, é muito parecido com o que está acontecendo aqui. Essa divisão partidária está ficando no caminho do desenvolvimento e da implementação de regulações. Mas parece ser um consenso que a regulação precisa sair logo. O 2630, que é o PL das Fake News, e o PL dos Direitos Autorais e da Remuneração do Jornalismo, que é o 2370, precisam avançar.
Matheus Soares: Nesse último semestre diversos veículos bloquearam o acesso do Chat GPT para o próprio conteúdo. Eu queria saber um pouco da sua opinião sobre o uso desse trabalho jornalístico como matéria de treinamento dessas IAs generativas.
Sérgio Spagnuolo: Muitas dessas informações estão públicas, mas muitas estão protegidas por direitos autorais, então é uma questão bem particular. A gente nunca passou por isso antes na história da computação, da informática. Se eu pegar uma matéria do *desinformante protegida por direito autoral e copiar no meu site, isso claramente é uma violação. Mas e se eu usar isso para treinar [as IAs]? Isso só vai ser definido pelos tribunais, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, nos próximos cinco anos
Obviamente, as organizações jornalísticas querem receber recursos por isso porque elas gastaram dinheiro para produzir aquele conteúdo. E tem a questão de rede social também. Se você publica na rede social, o conteúdo é do usuário que publicou, é da plataforma, ou é compartilhado? Essas empresas de tecnologia estão ganhando muito dinheiro. A OpenAI tem 100 milhões de usuários por mês, um negócio gigante, então eventualmente eles vão acabar pagando, pelo menos para os maiores, ou para organizações que se unirem para receber, mas vai demorar um pouco para a gente saber o resultado final disso.
Assédios judiciais contra jornalistas
Ana d’Angelo: O que você pensa sobre essa decisão do STF que responsabiliza os veículos por entrevistas quando há acusações em relação a crimes? Vai ter mais judicialização, assédios judiciais aos jornalistas? Compromete ou não a liberdade de imprensa?
Sérgio Spagnuolo: Acho que essa decisão abre precedentes para que haja muito assédio judicial [ partindo] principalmente de atores importantes da política e do Judiciário, que têm poder e querem silenciar algum jornalista. O jornalista não está isento de ser processado por alguma coisa que ele publique, mas neste caso se trata de os juízes interpretarem, principalmente na primeira instância, quando isso é válido ou não. Esse é um tema que eu levo com parcimônia para emitir opiniões porque é muito complexo, mas acho que estamos em um mundo em que já existe muito assédio judicial, com muitas organizações de jornalistas tendo que tirar conteúdos do ar para proteger interesses de pessoas importantes, então eu acho que isso só tende a piorar. Se o nosso sistema judiciário não permitisse tanto assédio judicial, talvez essa discussão pudesse estar sendo feita de forma diferente.
Matheus Soares: Em 2024 a gente vai ter eleições aqui no Brasil. Quais são os desafios de cobertura dessas eleições contra a desinformação?
Sérgio Spagnuolo: O jornalista nunca deu conta de acabar com a desinformação, né? É muito mais fácil produzir desinformação e espalhar a desinformação do que conter e descredibilizar essa desinformação. Agora tem a questão da Inteligência Artificial generativa e eu acho que esse tipo de tecnologia vai ter um papel um pouco mais central no jeito que a desinformação se espalha, mas o papel do jornalista continua o mesmo: continuar produzindo um bom conteúdo. Eu trabalhei com checagem de fatos no [Aos Fatos] até 2018, e é um trabalho muito importante, mas eu decidi que não queria mais trabalhar diretamente com checagem, porque é muito árduo, vocês sabem muito bem disso. Me concentrei em produzir o melhor conteúdo investigativo que eu podia em vez de tentar identificar o que era errado ou falso. Mas eu acho que a checagem pode ser fortalecida também [ pela IA ] porque a checagem também tem acesso a essas ferramentas, então vai também da criatividade e da inovação que a gente implementar em 2024.
Matheus Soares: A presença das IAs nas eleições poderia reforçar o papel do próprio jornalismo nesse momento? São nos momentos em que qualquer conteúdo pode ser sintético em que o jornalismo ganha confiança?
Sérgio Spagnuolo: O jornalismo tem perdido audiência em geral. Muitas pessoas estão indo para outras plataformas de conteúdo, redes sociais, streaming. Continua ainda muito nichado em algumas camadas da população, mais instruídas, e obviamente isso abre espaço para que a desinformação chegue em lugares pouco atendidos pelo noticiário. Em 2024 talvez a gente tenha mais do mesmo: A gente vai ver desinformação, a gente vai ver polarização. Mas, principalmente, o jornalismo independente, como o que a gente faz, está perdurando e está até prosperando, né? O que está caindo um pouco é o jornalismo tradicional, que custa muito e às vezes comete os mesmos erros repetidamente, e isso tem prejudicado um pouco a confiança das pessoas no noticiário. Acho que vai ser uma eleição muito importante, principalmente porque vai ser a primeira com esses novos modelos de linguagem predominantes enquanto ferramentas de produção de conteúdo, mas também vai dar abertura para que a gente possa usar essas mesmas ferramentas para produzir coisas bacanas, desenvolver projetos que ajudem a democracia.