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dez 28, 2023 | destaques, notícias, panorama2024

Plataformas precisam barrar as redes de ódio contra jornalistas

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Mesmo com a mudança de governo, as redes de ódio contra o jornalismo no Brasil não pararam de crescer. O problema tem sido acompanhado pela Repórteres Sem Fronteiras, que monitora a vulnerabilidade de jornalistas e comunicadores populares, principalmente os que atuam fora dos grandes centros. Nesta entrevista da série #panorama2024, o *desinformante conversou com Bia Barbosa, coordenadora de incidência do escritório da Repórteres Sem Fronteiras para a América Latina. Jornalista, especialista em Direitos Humanos e mestra em Políticas Públicas, Bia Barbosa atua há mais de 20 anos em temas como liberdade de expressão, acesso à internet e regulação da mídia e de plataformas digitais. Confira a entrevista.

Liz Nóbrega: Depois de quatro anos de um governo Bolsonaro claramente marcado por violências contra jornalistas, como você avalia o cenário da imprensa brasileira neste primeiro ano do governo Lula?

Bia Barbosa: A gente começa 2023 com muitas expectativas em relação à liberdade de imprensa no país com essa transição de governo. Tivemos sinalizações importantes do Governo Federal. No dia seguinte ao 8 de janeiro, uma série de organizações de defesa do jornalismo foram chamadas pelo ministro Paulo Pimenta ao Palácio do Planalto para manifestar solidariedade. Muito rapidamente o Ministério da Justiça também instaurou uma política pública que estava há bastante tempo parada no Governo Federal, o Observatório Nacional de Violência Contra Jornalistas e Comunicadores Sociais, que está se construindo ao longo deste ano. 

Porém, a gente tem um problema estrutural no Brasil, que é um país violento para o exercício do jornalismo há décadas. No cenário da América Latina nós estamos sempre entre os primeiros países com o maior número de agressões, inclusive de assassinatos contra jornalistas. O mais recente, que teve grande repercussão, foi o assassinato do Dom Phillips, em 2022. No Brasil há uma banalização da violência, que foi consolidada durante o governo Bolsonaro, quando aumentaram muitíssimo as agressões e a estigmatização contra jornalistas e comunicadores. Infelizmente esse cenário continua e a gente termina o ano ainda com um índice muito alto de violência contra jornalistas no país. 

Campanhas coordenadas de ataque

Liz Nóbrega: De acordo com o relatório da Repórteres Sem Fronteiras, nessa última década pelo menos 30 jornalistas foram assassinados no Brasil, o que levou o país a ser considerado o segundo mais perigoso da região para os profissionais da imprensa. Também há uma indicação sobre a vulnerabilidade de blogueiros, radialistas e jornalistas independentes, principalmente os que trabalham em municípios de pequeno porte, considerados às vezes desertos de notícia. Como o tamanho do Brasil agrava esse problema e como essa violência prejudica o acesso à informação no país? 

Bia Barbosa: Parte significativa dessa vulnerabilidade de jornalistas e comunicadores fora dos grandes centros tem a ver com a própria precariedade do exercício da atividade jornalística. Há muitos trabalhadores da imprensa que fazem freelas para 20 veículos ao mesmo tempo e portanto não têm uma retaguarda do local onde trabalham para responder a essas ameaças. Ou são jornalistas que nem tiveram acesso à universidade; comunicadores populares que estão ali produzindo informação local daquela realidade, às vezes como a única fonte de informação do lugar, e estão sozinhos enfrentando ameaças e interesses políticos muito grandes. 

Quem corre mais riscos dessas violências são jornalistas e comunicadores que cobrem temas como política, corrupção, violações de direitos humanos e meio ambiente. Eles estão denunciando autoridades e polícias. É um quadro que amplia a vulnerabilidade e consegue ter um efeito silenciador sobre o trabalho do jornalista. Isso gera uma bola de neve que retroalimenta essa característica do Brasil que são os desertos de notícias. 

Quando não se protege um jornalista, não se dá condições para um comunicador social trabalhar e produzir conteúdo na sua localidade, a gente não está prejudicando só individualmente o trabalho dessa pessoa, está lesando o direito à informação de toda uma sociedade, de um país que tem, necessariamente, em função da sua amplitude geográfica, um desafio a enfrentar nesse sentido. Quando discutimos as políticas de proteção a jornalistas falamos muito da importância de elas terem uma capilaridade e chegarem a todas as regiões e municípios. O Estado precisa chegar a todos os lugares também na questão da liberdade de expressão e de imprensa. 

Liz Nóbrega: Além da violência física em si e do assédio judicial contra jornalistas, a gente vê uma violência online muito forte, principalmente contra mulheres, que continua a crescer. Qual é a sua análise sobre essa naturalização da violência digital contra jornalistas e como as plataformas digitais poderiam atuar para minimizar esse problema?

Bia Barbosa: Esse é um desafio mais recente que mostra o quanto esses universos do mundo offline e online não estão mais separados. Se você tem uma agressão contra um comunicador no ambiente offline, como a gente viu em vários momentos direcionados a um ou outro jornalista pelo presidente Jair Bolsonaro, e isso se transforma em uma onda coordenada de ataques no ambiente online, essas coisas estão relacionadas e se retroalimentam. Isso também está associado ao ambiente de violência que alcança não só jornalistas e comunicadores no ambiente online, mas todo um universo de defensores de direitos humanos, ativistas, principalmente população negra, LGBTQIA+ e mulheres. 

A gente não está falando de um fenômeno específico, mas de algo que conseguiu se capilarizar de uma maneira muito significativa no país a partir do modelo de negócios dessas plataformas digitais, que favorece um tipo de conteúdo sensacionalista e extremista e que não tem regras concretas para impedir o impulsionamento de determinados discursos nesse ambiente. A Repórteres Sem Fronteiras tem monitorado isso há bastante tempo, A gente lançou, no início 2023, um relatório que fala exatamente das redes de ódio contra o jornalismo no Brasil, a partir de uma parceria com a Universidade Federal do Espírito Santo durante as eleições de 2022. 

O grande desafio hoje no enfrentamento à violência contra jornalistas no ambiente online são as campanhas coordenadas de ataque. As plataformas precisam dar retornos mais céleres, ter canais de denúncias específicos para tratar desse tema e um olhar específico para contas autoidentificadas de jornalistas, pela importância que esse tipo de trabalho tem para a democracia. Mas elas também precisam entender que um post isoladamente pode não significar uma violência contra uma jornalista, mas se uma jornalista recebe 500 posts violentos por dia, isso vai ter um impacto para o trabalho dela, vai gerar silenciamento e, muitas vezes, até a saída dela das redes sociais. No Observatório de Violência Contra Jornalistas e Comunicadores do Ministério da Justiça existe um grupo de trabalho sobre ataques digitais, que a Repórteres Sem Fronteiras coordena, onde estamos nesse esforço de estabelecer um diálogo com as plataformas digitais para pensar em alternativas a curto prazo. 

A Repórteres Sem Fronteiras fez um outro estudo, em parceria com a Gênero e Número, que mostrou o impacto da desinformação e da violência online no cotidiano de jornalistas. Daquelas que sofreram ataques, 15% desenvolveram problemas de saúde mental e muitas deixaram o jornalismo ou pararam de cobrir os temas que cobriam. É um desafio que se complexifica num cenário de naturalização da violência bastante disseminado na sociedade brasileira, com várias colorações políticas, digamos assim. O bolsonarismo usa isso como uma ferramenta de comunicação poderosa, antes de governo e agora de luta política, mas não está restrito a eles. 

Medidas preventivas e responsabilização

Liz Nóbrega: De acordo com dados da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), nos primeiros meses de 2023 a violência contra jornalistas cresceu 34% em comparação ao ano anterior, alavancada principalmente pela polarização e pelo 8 de janeiro. Qual seria a perspectiva para 2024, considerando que teremos eleições nos mais de 5 mil municípios brasileiros?

Bia Barbosa: Quando a gente fala que a polarização aumenta o nível de violência contra os jornalistas no ambiente online, isso é verdade, mas eu também não quero igualar o nível de violência que é praticado pelos diferentes lados dessa polarização. O que a gente monitorou durante o governo Bolsonaro foi algo que nunca tinha se praticado no Brasil, em termos de incitação à violência, e isso vindo não só do presidente da república, mas de todo um entorno que a gente chamava, na Repórteres Sem Fronteiras, de Sistema Bolsonaro, que envolvia os seus filhos e ministros de Estado. Não há nada parecido com isso em termos de violências propagadas por autoridades em 2023. 

Para 2024 a gente se preocupa muito com o cenário eleitoral, principalmente porque é uma eleição municipal, em que a gente vai ter pleitos acontecendo no Brasil inteiro, e é muito mais difícil monitorar o resultado da violência. Num cenário municipal, a gente está falando de cada blogueiro, comunicador popular, radialista comunitário que está naquela localidade produzindo informação sobre a campanha e que pode se tornar alvo. Mesmo que você não tenha contextos muito polarizados na disputa eleitoral, a violência contra jornalistas aumenta, e isso não é só no Brasil, é uma realidade de vários países.

Fica um alerta para as autoridades, não só do governo central, mas do Ministério Público, de Defensorias Públicas que precisam ser acionadas porque esses comunicadores às vezes não têm condição de pagar um advogado para se defender das agressões que estão sofrendo. A gente também está falando da Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos, que tem o dever de zelar nacionalmente pelo direito de acesso à informação da sociedade; da Justiça Eleitoral, que muitas vezes concentra o enfrentamento à desinformação no processo eleitoral, quando é importante que se faça também um enfrentamento à desinformação sobre as urnas e a segurança das eleições. As autoridades devem pensar em medidas preventivas, por um lado, e também reparadoras, por outro. Porque historicamente a gente constata que uma violência praticada que não gera uma responsabilização deixa a porta aberta para uma nova agressão. Se a gente vai perpetuando esse quadro de impunidade, a violência vai se institucionalizando. 

Liz Nóbrega: Em 2024 o que você acha que a sociedade civil pode fazer para  tentar trazer um ambiente menos violento não só para os jornalistas, mas também para todos os cidadãos? 

Bia Barbosa: O fato de a gente falar sobre esse assunto já ajuda muito porque leva o tema a outros setores da sociedade, problematizando essas questões e fazendo as pessoas refletirem sobre as consequências dessa violência para a nossa democracia. A gente também viu nesse primeiro ano muitas autoridades passando a se preocupar mais com esse cenário, com a retomada das atividades do Fórum de Liberdade de Imprensa do Conselho Nacional de Justiça, presidido pelo ministro [Luís Roberto] Barroso. Com uma série de outras organizações de defesa do jornalismo, tivemos uma audiência longa com o ministro para apresentar os desafios que estão colocados, inclusive do ponto de vista do assédio judicial, que é outro tema que não mudou com o novo governo. No Rio de Janeiro, o Ministério Público Federal criou um fórum para discutir o assédio judicial. Recentemente a gente também realizou um seminário com o Ministério Público do Estado de São Paulo para pensar um plano de ações para proteger os jornalistas. A Procuradoria Geral dos Direitos dos Cidadãos firmou um termo de cooperação com organizações da sociedade civil de defesa do jornalismo para monitorar esses casos. 

A própria discussão do assédio judicial precisa ser feita com a sociedade porque se é verdade que, por um lado, qualquer pessoa tem direito de acessar a Justiça ao se sentir lesada por uma reportagem, por outro lado é fundamental que a Justiça entenda que há ações em massa sendo movidas contra jornalistas, visando o silenciamento dessas pessoas. Cito o caso da Shirley Alves, repórter que cobriu o caso de estupro de Mariana Ferrer. Em reportagens para o Intercept, ela denunciou que, durante a audiência, a vítima foi violentada pelo juiz, pelo promotor e pelo advogado do seu agressor. Foi processada pelo juiz, promotor e advogado e condenada a um ano de prisão e 400 mil reais de multa. Uma jornalista perder a sua liberdade por trazer à sociedade informações de interesse público é algo muito preocupante num país que pretende ser democrático. Então, apesar de termos boas perspectivas de ampliação do debate público e da sinalização de algumas autoridades, ainda temos desafios muito grandes para 2024. 

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