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jan 13, 2022 | Destaques, Notícias

Plataformas não têm ética informacional nem ideia de serviço público

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Professora da Universidade Federal do Ceará e integrante do coletivo Intervozes, Helena Martins equilibra as inquietudes acadêmicas e as da militância. Nessa entrevista ela avalia o cenário atual da desinformação e diz que o problema está “absolutamente vinculado ao modelo de negócio das plataformas digitais”. Helena Martins cita Evgeny Morozov ao lembrar que as empresas não se guiam por uma ética informacional e não carregam a ideia de serviço público.

A conversa flui fácil entre avaliações densas e anedotas emblemáticas. Em 2018, durante a greve dos caminhoneiros, Helena resolveu fazer monitoramento de grupos e ligou para os números que mais compartilhavam fake news, pensando se tratar de robôs. “As pessoas existiam. Eu conversei com carteiro, com empregada doméstica, com caminheiro…”

Coordenadora do Telas – Laboratório de pesquisas em Economia, Tecnologia e Políticas de Comunicação da UFC, Helena afirma ser a desinformação um ato essencialmente político e avalia as redes sociais como nova forma de mediação social própria de um momento histórico do capitalismo, no contexto da reestruturação produtiva. A análise sobre 2022 carrega uma dose de pessimismo (“eu realmente acho que a gente ainda não está preparado para enfrentar a eleição de 2022, pelo menos nesse âmbito das informações”), mas Helena vê com otimismo o crescimento do estranhamento da sociedade em relação ao funcionamento das redes sociais.

João Brant: Na introdução do livro que você organizou e foi publicado pelo Intervozes, você traz a Hannah Arendt para dizer que “jamais alguém pôs em dúvida que verdade e política têm más relações”. Ali você fala que é preciso tornar evidente o fato de que a desinformação está conectada ao objetivo de provocar dissonâncias e desarranjos informacionais e institucionais. A desinformação é essencialmente um ato político?

Helena Martins: Para mim, sim. Eu tenho muito apego, inclusive, a esse texto da Hannah Arendt, essa leitura que foi construída ali no livro do Intervozes sobre esse tema, porque acho que a gente teve esse papel também de trazer essa dimensão política para o centro do debate. Compreender que a desinformação sempre existiu, mas que em alguns momentos históricos ela tem uma maior proeminência. Podemos pegar casos à época do nazifascismo, e agora também. Então como a gente pensa essa volta em momentos de crise? Tem uma leitura subjacente a isso que é a própria ideia de que a informação é um espaço de disputa política entre classes. Então a desinformação também é parte disso. E para mim fica cada vez mais evidente essa relação política de uso da desinformação, por exemplo, quando a gente vê coisas como o Facebook Papers e a utilização disso na instrumentalização de debates políticos ou quando vemos várias plataformas assumindo que elas projetam mais conteúdos de direita. Então por mais que essa explicação não dê conta de todos os meandros desse fenômeno, eu acho que ela alerta sobre esse papel político dele. E ela também tem esse objetivo de dar maior historicidade para a questão da desinformação.

É um problema do campo da comunicação, inclusive, muitas vezes abordar os fenômenos como se eles fossem completamente novos. Então você pega, por exemplo, características próprias do momento atual, como o fato da desinformação ser majoritariamente circulada pela internet, e transforma numa explicação praticamente tecnicista, problemática, de que vai pensar que a desinformação é fruto da internet. Você certamente já escutou argumentos desse tipo. Devemos pensar mais qual é o local histórico desse processo, como é que ele se modifica, mas também como ele permanece. E, para mim, essa permanência se explica muito por uma disputa em torno da informação e que vai também resvalar em campanhas de desinformação.

João Brant: Você falou de determinados momentos históricos. O que aconteceu entre o pós-guerra e 2010 para que essa questão não fosse tão forte ou relevante como ela é hoje?

Helena Martins: É uma ótima pergunta, que me permite apresentar um pouco da leitura que eu tenho desenvolvido, a parte do campo da economia política da comunicação, sobre o lugar das tecnologias nessa disputa política. Você tem ali no pós-guerra o que muitos chamam de 30 [anos] gloriosos. É claro que essa é uma visão que tem que ser problematizada, tendo em vista inclusive o nosso lugar de latino-americano ou do continente africano – não tinha nada de glorioso nesse período nesses vários e vastos territórios. Mas, de alguma forma, o capitalismo conseguiu, inclusive dando resposta a pressões de trabalhadores, tendo em vista também a própria existência da União Soviética e uma necessidade de se contrapor a um outro modelo de sociedade, ele conseguiu ter um arranjo social um pouco mais estável. Esse arranjo durou ali entre 1945 e mais ou menos os anos de 1970, quando o sistema entra numa nova crise. Essa nova crise, que muitos chamam de reestruturação produtiva, ela tem diversos fatores, mudanças na política financeira, do papel dos Estados Unidos, um certo esgotamento também desse modelo anterior, que a gente pode pensar aqui como um modelo fordista.

Inaugura-se, então, um novo período. Nesse novo período, que o [David] Harvey chama de acumulação flexível, as tecnologias da informação e da comunicação têm um papel muito importante para a organização do sistema. É impossível pensar a globalização, mundialização ou mesmo a financeirização sem associar esses campos às tecnologias da informação e da comunicação. Só que, para além de uma abordagem estritamente economicista, é importante pensar que em cada momento histórico há também a configuração de um tipo de mediação social. Uma mediação de caráter mais massiva foi desenvolvida por meio de televisão, da radiodifusão tradicional. Um outro tipo de mediação social passa a ser configurada também pelo desenvolvimento dessas tecnologias da informação e da comunicação.

Atendendo a essa lógica de uma acumulação flexível de produção e de consumo mais segmentado, a gente também tem uma esfera pública mais segmentada. E as redes sociais hoje são ótimas expressões disso. A gente também tem, nesse processo da acumulação flexível, no contexto da reestruturação produtiva, um impulso do sistema capitalista de ir cada vez mais colonizando outras esferas da vida social, como a própria cultura, como os modos de vida de maneira geral. Hoje em dia até os nossos sonhos! Há patentes que buscam preenchê-los com publicidade, desenvolver tecnologia para preenchê-los com publicidade. Além de a gente ter hoje uma confusão generalizada nas redes sobre o que é um conteúdo não comercial e comercial.

Então esses fatores todos me permitem também ir construindo essa leitura sobre o lugar da desinformação nesse processo. Não à toa nós temos uma prática de desinformação, que é bastante vinculada a também objetivos comerciais. A gente antes falou do político, e para mim o político e comercial sempre andam muito juntos, é difícil dissociar os dois. Ainda mais quando a gente pensa que essas plataformas de redes sociais são hoje as corporações mais valiosas na economia mundial – basta olhar qualquer ranking da Forbes para ver lá Facebook, Amazon, Apple, Microsoft, Alphabet no topo dessas listas. Então, os objetivos econômicos e políticos estão casados.

É claro que sempre é importante pensar como esses processos globais se traduzem nas várias práticas sociais, para a gente não fazer uma passagem das determinações mais gerais do próprio sistema para essas atividades sem ter esse cuidado de pensá-las nas suas especificidades. Por exemplo, as redes sociais também permitem muita crítica, muita mobilização, isso também acontece, é um espaço contraditório. Mas me parece que a dinâmica hegemônica delas é uma dinâmica de segmentação, de individualização e de comercialização de absolutamente tudo.

João Brant: Essa segmentação está ligada também a uma lógica que vocês discutem no livro a partir do Morozov, que é de premiação de um conteúdo que mais gera engajamento (ou que mais gera curtidas e compartilhamentos, para dizer em sentido mais direto). Então se a economia da atenção organiza o sistema, eu preciso manter aquele cara engajado, preciso fazer com que ele convide mais gente e traga mais gente, e eu preciso, portanto, fazê-lo interagir com conteúdos. Então tem uma parte da lógica econômica e comercial que passa a guiar a organização da esfera pública, é isso?

Helena Martins: Sim, sem dúvida, isso acompanha o desenvolvimento histórico dos meios de comunicação. Para quem vai nos ouvir, eu sugiro a leitura do Habermas, A Mudança Estrutural da Esfera Pública, um autor clássico para a comunicação que vai discutindo como as mudanças nas formas de comunicação, na conversação social, vai impactando também a esfera pública. E, sem dúvida alguma, acho que essa é uma expressão do que a gente também vive hoje, uma esfera pública mais segmentada, mais individualizada. Aliás, muito ótima para o próprio sistema neoliberal, que adora esse tipo de segmentação e de individualização. O sistema tem que ter uma produção de uma ideologia, de um modo de vida, então as redes vão ao encontro disso.

Mas eu gosto também de evitar determinismos e ser cuidadosa com essas passagens do micro para o macro: a pessoa tem que gostar do conteúdo, acho que essa é uma questão importante. Eu não acho que martelando algo na cabeça das pessoas simplesmente as coisas aconteçam, é mais complexo do que isso. Tem que haver algum tipo de conexão com expectativas e desejos que as pessoas têm.

Um exemplo que deixa isso muito nítido é o caso da Manuela D’Ávila. Na eleição passada, participei de um projeto coordenado pelo Leonardo Avritzer, que chama Observatório da Democracia. Acompanhei muitas questões nas eleições e produzimos vários textos sobre a desinformação. O caso da Manuela D’Ávila me chocou muito, ela vinha num crescente ali no primeiro turno, foi para o segundo turno com expectativa de vitória, e no segundo turno acabou não ganhando. A gente pode discutir até as questões de gênero associadas à desinformação, mas, no caso da Manuela especificamente o que aconteceu foi uma avalanche de desinformação, que realmente prejudicou a candidatura dela.

Eram fake news todas conhecidas, eram as mesmas fotos, eram os mesmos vídeos manipulados, eram informações já muito conhecidas. Então tem que ter alguma coisa que explique essa conexão. As pessoas às vezes querem compartilhar isso. É claro que se elas forem expostas a apenas um lado da história, se elas frequentemente só têm contato com conteúdos negativos sobre a Manuela D’Ávila, para seguir no exemplo, é mais provavel que elas queiram também isso – gosto é uma construção social. Mas tem uma relação. Como a gente explica tanta desinformação sobre questões LGBT e sobre família, e não só no Brasil? Mamadeira de piroca também apareceu na Colômbia, num debate sobre as FARC! É surreal você imaginar isso, né?

Por que isso acontece? O livro do Intervozes trabalha essa discussão já no primeiro capítulo, mencionando essa relação de crise, a expectativa que as pessoas têm de às vezes verem os problemas resolvidos de uma maneira muito rápida, muito fácil. Eu acho que tem muito essa conexão com demandas das pessoas por respostas. Se a gente for pensar na questão da violência, como a gente apresenta uma solução para a violência a partir do campo progressista? É complexo, né? A gente vai discutir relações sociais complexas. Aí pode ter uma desinformação que coloque, em duas imagens, a saída para a violência. Tudo isso também vai compondo esse cenário de crise e essa instrumentalização política da desinformação.

João Brant: Dialogando com o que você está falando agora, o Ricardo Fabrino fala que a gente tem que parar de considerar o tio do Zap um cara ingênuo e a gente precisa reconhecer que ele é um agente político de menor grau, com menos capacidade de trabalhar de forma coordenada, mas também igualmente motivado e mobilizado por afetos políticos. Você concorda?

Helena Martins: É isso. É óbvio que esse agente vai ter menos poder do que outros agentes que organizam as campanhas de desinformação, inclusive do ponto de vista de educação para mídia, de conhecimento dos processos de funcionamento das redes, das lógicas algorítmicas etc. Tem grupos que organizam as campanhas de desinformação e tem pessoas que se engajam nessas campanhas de desinformação. Considerar esse engajamento como engajamento real é importante para a gente dimensionar a necessidade de uma politização, de um diálogo social mais amplo, e não de respostas às vezes que são puramente vigilantistas, ou mesmo que desconsideram um processo político da nossa sociedade.

Isso me fez lembrar de outro caso: em 2018, eu fiquei muito preocupada com a desinformação crescendo, tinha havido greve dos caminhoneiros e já estava acompanhando um pouco desses grupos. Resolvi fazer um monitoramento e vi quais eram os números que mais compartilhavam desinformação em alguns grupos de WhatsApp. Então resolvi ligar para esses números, achando que eram robôs. E as pessoas existiam. Eu conversei com carteiro, com empregada doméstica, com caminheiro… elas existiam.

Não existe robô? Claro que existem robôs, eles têm um papel fundamental nisso, mas tem também essas pessoas que se engajam. E compreender as expectativas delas, por que que esse discurso reacionário está chegando até essas pessoas é muito importante também para construir uma saída que passe por um outro diálogo, por um processo de politização em outros termos com nossa população.

João Brant: Ainda nesse bloco de diagnóstico, queria te perguntar se você acha que as empresas são aliadas ou inimigas na luta contra a desinformação.

Helena Martins: Quando você coloca a disjuntiva dessa forma me deixa num lugar um pouco desconfortável. Mas reagindo diretamente a isso e, talvez, para alertar, eu diria inimigas. Porque o modelo de negócios dessas empresas favorece a ocorrência de desinformação. Se elas não tivessem impulsionamento, se elas não coletassem dados, se elas não vendessem dados para grupos que têm interesse nisso, se elas não tivessem um objetivo de simplesmente gerar visualizações e manter as pessoas conectadas, com conteúdos polarizados, talvez a desinformação continuasse a existir, mas não tivesse a projeção e a capacidade de enraizamento que tem hoje.

Para mim o tamanho do problema da desinformação hoje está absolutamente vinculado ao modelo de negócio das plataformas digitais. É o que o Morozov também discute ao mencionar que essas empresas não se guiam por uma ética. Elas não se guiam nem por uma ética informacional, nem têm a ideia de serviço público que, ainda que com muitos problemas, de alguma forma norteia a própria radiodifusão. Elas não têm isso, elas querem realmente dados, produzir campanhas que gerem engajamento.

Acho que os exemplos mais recentes tornam isso muito nítido: o Facebook Papers,  a manutenção de vários canais desinformativos sobre Covid, tratamento precoce etc., conforme a própria CPI trouxe à tona, também torna isso nítido. O fato de o Twitter ter assumido que os seus algoritmos privilegiam conteúdos de direita também. O Facebook é o mais óbvio, mas no Youtube também a gente vê um crescimento exponencial de canais de extrema-direita em períodos eleitorais, inclusive como houve aqui no Brasil em 2018. São muitos indícios que apontam que elas realmente estão do outro lado do interesse público, digamos assim.

Agora, claro, num processo de saída a gente tem que contar com elas, para que as plataformas sejam chamadas a assumir um lugar mais responsável. E que tenham posturas que contribuam para a redução do problema da desinformação. Agora, sem nenhuma expectativa de que estamos no mesmo campo de conhecimento nem de interesse sobre isso. Por um lado, as plataformas sabem muito mais do que dizem que sabem. Por outro, no fim das contas, se assumimos que a desinformação está vinculada ao modelo de negócios dela, elas teriam que mudar esse modelo e isso elas realmente não estão dispostas a fazer por conta própria.

João Brant: Então vamos discutir saídas. Quais são as saídas para a desinformação? Esse problema parece, na sua perspectiva, grande e grave. Por onde vamos, quais são as saídas possíveis?

Helena Martins: Para mim a saída um é realmente a mudança de lógica das plataformas. Eu não consigo imaginar uma saída mais rápida para esse problema da desinformação que não passe por você não ter um processo de coleta de dados, de venda de dados, de produção de públicos segmentados e de uma viralização artificial dos conteúdos. Na última campanha eleitoral nós tivemos 100 milhões de reais utilizados apenas para impulsionamentos no Facebook, essencialmente, e uma parte também no Google. Esse é o tipo de situação que para mim é drástica, é um tipo de modelo que não é democrático.

Mais do que isso, esse é um modelo que permite muito opacidade. Então junto com essa mudança dos modelos de negócios vem a questão da transparência das plataformas, que talvez seja até mais tolerável e está no debate brasileiro do PL 2630. Precisamos que elas atuem para diminuir a desinformação, mas precisamos que elas não sejam tomadas como ministérios da verdade e que não atuem de forma unilateral, com suas próprias regras e decisões próprias acerca de conteúdos que circulam nas redes sociais – dada a importância das redes sociais na própria esfera pública.

E junto com essa questão do modelo de negócios e da transparência, é ter uma política diferente em relação aos dados. Causa-me algum espanto que em vários países, inclusive liberais, tenha crescido tanto o debate sobre a quebra dessas plataformas para impedir que elas utilizem dados coletados dos vários serviços e tenham tanto poder, e aqui na América Latina esse debate ainda não tenha tido maior robustez. Eu falo realmente de uma quebra de propriedade das plataformas. Estados Unidos e União Europeia têm discutido isso e essa é uma agenda que a gente ainda precisa fortalecer bastante, inclusive aqui no Brasil.

Não querer que as plataformas operem todos os serviços que elas operam é bom inclusive para concorrência, mas é fundamental para que elas não tenham tantos dados sobre a população e acabem não controlando tanto as nossas próprias experiências nesses ambientes. Esses são alguns caminhos que eu considero fundamentais nesse campo das plataformas.

Outros caminhos também são imprescindíveis, educação para mídia é um deles. As pessoas têm que conhecer os processos de editoração, os processos de operação dessas plataformas de redes sociais, elas têm que saber como os dados são coletados e para quê, tudo isso é muito fundamental.

João Brant: Eu queria explorar o primeiro ponto que você falou, sobre mudança de modelo de negócios. Como é possível pensar um caminho, dada a dominância econômica e política dessas plataformas? O Tristan Harris já disse que precisaria de um Acordo de Paris para as plataformas. As grandes potências precisam se unir e dizer ‘chega, desse jeito não tem como’. Que brigas podem tornar efetiva a sua ideia de mexer no modelo de negócios das plataformas?

Helena Martins: Eu adorei essa menção ao Acordo de Paris, não conhecia, porque eu acho que tem duas dimensões que essa menção me traz: primeiro, o reconhecimento de que talvez sejam as duas questões do século XXI, a questão ambiental e tecnológica, que aliás estão muito juntas e às vezes a gente não percebe essas vinculações. Na COP26, por exemplo, uma série de saídas para a crise ambiental foram apresentadas como saídas tecnológicas, numa lógica mesmo de capitalismo verde. Isso fala da importância desse tema. E fala de fato de uma necessidade de uma governança global sobre ela, embora também a Conferência de Paris e agora a COP26 mostrem os limites dessas institucionalidades.

Temos que brigar por elas, temos que conseguir colocar esse tema numa agenda pública internacional, onde as pessoas de fato debatam, que tenha uma repercussão que gere uma mobilização social e que seja também fomentadora de alternativas. Por mais que as alternativas não sejam diretamente internalizadas por esses espaços multissetoriais, elas são formuladas e viram pautas da sociedade civil em âmbito global, porque é um problema global.

Mas isso tem que entrar na agenda política do campo progressista em âmbito internacional. Os democratas nos Estados Unidos chegaram a debater mais isso na própria eleição. A Elizabeth Warren, por exemplo, estava com essa agenda. Na União Europeia também tem, lembro do bloco de esquerda fazendo debates sobre essa questão no parlamento europeu, mas ainda precisa ser colocado nesse lugar de uma pauta que organiza a sociedade.

João Brant: Vamos para uma última pergunta, sobre perspectivas para 2022. Você falou de 2018 e de 2020, trouxe o exemplo da Manuela. Tivemos algumas mudanças das próprias plataformas nesse período, algum nível de consciência talvez aumentada da sociedade sobre a questão, mas é possível dizer que isso é suficiente para gerar um 2022 diferente? Qual é a sua leitura?

Helena Martins: Não, de forma alguma. Eu estou absolutamente preocupada com 2022, acho que nós não compreendemos ainda essa dinâmica. Nós, do campo progressista em sentido amplo, não compreendemos nem nesse sentido de tornar uma pauta de transformações e nem de ocuparmos as redes. Por exemplo, o impulsionamento pago nas redes sociais não virou pauta na sociedade civil nem no TSE. O TSE legitimou, nas suas últimas movimentações, o impulsionamento, e isso para mim é um problema. Nós não tivemos mudanças substanciais na forma de funcionamento das redes.

A pesquisa que o Intervozes fez – eu, Bia Barbosa, Jonas Valente – sobre as respostas às plataformas digitais mostra uma série de medidas muito tímidas, que em geral nem são apresentadas pelas redes como as medidas de combate à desinformação. Então não tivemos grandes mudanças em relação a isso.

Se toda essa análise já serve para a gente imaginar um problema, acho que o caso do Chile comprova a permanência desse problema. Como a gente tem, num país que acabou de passar por uma série de mobilizações, que conseguiu arrancar uma Constituinte, que tem crescido o campo progressista, como a gente tem esse processo de mobilização e um segundo turno agora para as eleições presenciais do Chile com a extrema-direita presente? Para mim não tem como dissociar isso dessas formas de comunicação nas redes sociais e também das campanhas de desinformação das redes. Entrei em contato com pessoas que estão monitorando as eleições no Chile e elas me confirmaram isso: “olha, está terrível aqui. Os mesmos processos que nós vimos em 2018 no Brasil tem aparecido” [a entrevista foi realizada antes do segundo turno das eleições chilenas]. São todas expressões da permanência desses problemas.

E um outro lado da moeda é de fato a nossa possibilidade de ocupação das redes sociais, né? De 2018 para cá, eu não vi nenhum processo organizado do campo progressista realmente ter uma política de ocupação de conteúdos, de produção de conteúdos de circulação no campo das redes sociais de uma maneira um pouco mais articulada. Então essa ausência me parece que é só nossa. Eu realmente não acredito que o Bolsonaro tenha desmantelado totalmente os seus esquemas. É claro que a existência da CPI, o crescimento desse debate, tudo isso dificulta também a operação do esquema no mesmo nível de 2018, mas em algum nível haverá. Nada me convence do contrário e eu realmente acho que a gente ainda não está preparado para enfrentar a eleição de 2022, pelo menos nesse âmbito das informações.

João Brant: Como você tem, assim como eu, uma visão pessimista nesse ponto, eu queria te deixar um espaço para falar o que no último período, no último ano, te deixou otimista na discussão sobre desinformação? Tem algo que você viu e falou: “olha que coisa interessante e potente”, enfim, algo que te mexeu por aí?

Helena Martins: Olha, eu acho que pode parecer contraditório falar de um problema como algo otimista, mas o escândalo Facebook Papers me deixou muito otimista. Primeiro você tem uma mulher trabalhadora que topa vir à tona e denunciar uma corporação do tamanho do Facebook. Você tem uma série de trabalhadores, inclusive dessas plataformas, que têm se mobilizado, que têm gerado críticas, feito denúncias. Estou pegando o Facebook Papers como exemplo, porque eu acho que ele também tem sido pouco abordado no Brasil, mas para falar que o debate está crescendo.

Esse estranhamento está crescendo, então o que me anima é o estranhamento estar crescendo, é uma desnaturalização dessas plataformas como apenas lugares legais, que nós utilizamos para fazer as nossas comunicações, mobilizações, como se elas fossem neutras e absolutamente potentes. Esse tipo de estranhamento tem mobilizado os trabalhadores, tem também construído toda uma possibilidade de leitura, até mesmo no campo acadêmico, sobre as plataformas. Uma leitura muito diferente de um otimismo de 10 anos atrás, um tanto quanto acrítico.

É esse estranhamento que permite que a gente avance, por exemplo, no PL 2630 aqui no Brasil, em relação às exigências de transparência, é o estranhamento que vai fazer com que a gente talvez cobre mais o próprio TSE por medidas em relação às eleições. Se não tiver essa inquietação, as outras medidas não vão poder ganhar lastro social. Então isso me anima realmente, acho que a gente está em outro momento. Agora a nossa tarefa é conseguir dar uma densidade maior para isso e transformar em um tema que seja claramente visto como fundamental para a sociedade nesse século XXI.

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