Falta articulação entre os atores que influenciam na possível votação do PL 2630. Esta é a análise de Iná Jost, coordenadora de pesquisa da área de Liberdade de Expressão no InternetLab. Advogada, mestre em relações internacionais e direitos humanos pela Sciences Po (Paris), Iná Jost integrou por quatro anos o departamento eleitoral da Organização dos Estados Americanos. Ao *desinformante, falou sobre os prós e contras do Digital Service Act (DSA) como inspiração para a regulação das plataformas e apontou a necessidade de o TSE abrir uma consulta pública para as eleições de 2024. Leia a entrevista que integra a série #panorama2024.
Matheus Soares: O debate sobre regulação de plataformas ganhou força esse ano no Brasil e foi muito influenciado por legislações aprovadas em outros países, especialmente no continente europeu, onde tivemos o Digital Service Act (DSA). Como você analisa essa influência de medidas regulatórias europeias no contexto do Sul Global e no contexto brasileiro?
Iná Jost: Eu acho que em 2023, um ano pós-eleições, com os ataques de 8 de janeiro, com ataques em escolas, a ideia de regular as plataformas ganhou muita tração por uma série de fatores e o DSA é mais um desses fatores. É muito natural o nosso movimento de olhar para algo que já foi feito e ver prós e contras. O DSA é uma das primeiras experiências regulatórias do mundo e muitos países estão nessa esteira de buscar desenhos regulatórios para as plataformas, alguns com mais sucesso, outros menos. A Europa tem suas tentativas de exportar essa legislação, mas obviamente a Europa tem suas particularidades, assim como o Brasil tem as suas, então é muito arriscado a gente pegar uma legislação que está pronta e que foi discutida durante anos e transpor ela para cá. Tem coisas que não vão fazer sentido.
A gente não tem no Brasil uma entidade reguladora, que é uma entidade fundamental para analisar os relatórios, para avaliar o cumprimento de uma eventual legislação. Na Europa, a Comissão Europeia está fazendo as vezes de uma entidade reguladora. A gente não tem na América Latina, ou nas Américas uma articulação política que nos permita ir em bloco e pedir uma regulação para as plataformas, desenvolver um marco regulatório em nível regional. Então, com muita parcimônia, atentos ao que está acontecendo, podemos tentar entender o que se adequa ao Brasil, o que está funcionando e o que não está funcionando.
Liz Nóbrega: O que você acredita que a gente pode abraçar para a construção da nossa própria regulação de plataformas aqui no Brasil?
Iná Jost: A discussão de transparência é uma discussão que avançou muito no DSA porque você tem uma série de artigos que se dedicam a pedir mais transparência para as plataformas em determinados moldes, e essa discussão sem dúvida beneficia o mundo inteiro. O DSA está em vigor desde agosto para as plataformas grandes e a partir de fevereiro aparentemente ele vai ficar em vigor para todos os atores regulados por eles. A gente precisa fugir um pouco dessa dicotomia que é sociedade civil ou governo versus plataformas e entender, a partir dessa experiência do DSA, quais dados e o que, em termos de transparência, a gente precisa. Porque é muito fácil falar para as plataformas: “me manda tudo” e é muito fácil para a plataforma falar: “toma tudo”. Aí a gente tem um “tudo” que na verdade não significa nada, um monte de informação que a gente não consegue processar ou entender exatamente o que é.
Um informe recente da Amazon tem vários dados interessantes – quantidade de usuários por país, quantidade de conteúdo ilegal removido, financiamento. São dados que parecem tão básicos, mas pela primeira vez eu tenho acesso à quantidade de usuários do país. Também por meio do DSA, a Comissão Europeia fez um requerimento de informações para a Meta sobre remoção de conteúdo ilegal no contexto da guerra Israel/Hamas. Se a gente tivesse um dispositivo como esse na época do 8 de janeiro, a gente teria informação muito mais clara e muito mais direta.
Estratégia conjunta pelo PL das Fake News
Matheus Soares: Um dos argumentos de oposição à regulação que sempre volta à tona, quando falamos do assunto no Brasil, é a censura. Como você avalia essa alegação?
Iná Jost: Esse processo de regulação envolve muitos atores e ele perdeu tração, então é difícil avaliar se as pessoas seguem dizendo que o projeto traz censura. Acho que a preocupação da censura é legítima porque a gente está falando de regular ambientes de liberdade de expressão. As plataformas ganharam uma certa notoriedade como infraestrutura pública do debate: a gente debate lá, são canais onde a gente expressa as nossas ideias e opiniões. Então, é óbvio que as pessoas têm que ficar atentas ao fato de que a gente tem uma tentativa de regulação do Estado da liberdade de expressão; daí a chamar isso de censura é um caminho muito longo. Na minha opinião pessoal, a pessoa que está dizendo que o [PL] 2630 está exercendo censura é uma pessoa que não leu o 2630. Sim, o projeto tem oportunidade de melhora, mas, a gente não está falando de um projeto de lei que traz censura, é um projeto de lei que traz mecanismos de transparência, mecanismos de responsabilidade e regras claras.
Liz Nóbrega: O PL 2630, o famigerado PL das Fakes News, é o que a gente tem de mais avançado hoje no Brasil em termos de projetos legislativos, mas sofre pressão de todos os lados, especialmente das plataformas digitais, que fazem uma campanha massiva contra ele. O que precisa ser feito em 2024 para que a gente tenha uma regulação de plataformas para chamar de nossa?
Iná Jost: São muitos atores que influenciam essa possível votação do PL. A gente depende de uma agenda de governo, de uma agenda de Congresso, de articulação política. Outra coisa: tem muitos projetos regulando plataformas tramitando tanto na Câmara, quanto no Senado. A gente tem o PL 2370, que fala de remuneração de artistas e de jornalistas; a gente tem o PL 1354, que fala só sobre a remuneração de jornalistas; a gente tem o PL de IA; a gente tem um PL de proteção de crianças e adolescentes na internet. São muitas frentes abertas. Um movimento que a gente precisa fazer é tentar articular essas frentes para não perder a nossa energia. Eu não estou dizendo que esses PLs têm que ser unidos, mas estou dizendo que a gente tem que tentar fazer uma estratégia conjunta.
Outro dia eu ouvi uma frase que adorei: “em Brasília existem dois textos, um ótimo e um aprovável”. Se a gente está falando de uma regulação que toca em tantos pontos, a gente precisa criar um consenso e o consenso é o estágio em que todo mundo abriu um pouquinho de mão do seu para encontrar um bem comum. Eu acho que está faltando um momento político para que isso entre na agenda do governo e do Congresso como uma pauta de prioridade, assim como a Reforma Tributária é uma pauta de prioridade. A gente precisa tratar disso fora de [um contexto de] reação aos ataques às escolas, fora de uma reação a uma insurgência democrática, a gente precisa tratar essa pauta como uma pauta prioritária. A internet foi desenhada por meio das plataformas e é um canal de liberdade de expressão que precisa de determinadas regras e balizas. Como a gente tem eleições municipais ano que vem, eleições muito mais difusas do que a eleição nacional, seria muito interessante, por exemplo, que a gente tivesse braços regulatórios para enfrentar campanhas de desinformação massivas, discurso de ódio, discursos de fraude eleitoral.
Ecossistema jurídico
Matheus Soares: Caso o PL 2630 não consiga avançar em 2023, ainda dá tempo de criar mecanismos legislativos alternativos para criar obrigações para essas plataformas, especialmente em um ano eleitoral?
Iná Jost: O dever primordial da regulação vem do Congresso e a gente tem que ficar muito atento a isso e advogar para que essa regulação venha do Congresso, que é o ator responsável. Isso não quer dizer que isso não seja uma tarefa para todos os poderes da República – a gente precisa de um Executivo engajado, a gente sabe que a SECOM é uma secretaria de políticas digitais super ativa e que tem um papel muito importante nessa articulação; que o Ministério da Justiça está muito envolvido, tanto que acabou também de criar uma secretaria de direitos digitais; óbvio, o Judiciário, o STF tem diversas ações de controle concentrado, de constitucionalidade de dispositivos do Marco Civil que também vão dizer respeito à regulação da internet; o TSE emitindo as suas resoluções para as eleições. Acho que a gente precisa pensar em todos esses atores articulados, em um diálogo institucional entre os entes federativos.
Um canal que ainda não foi resolvido são as resoluções do TSE sobre as eleições de 2024. Todo ano ímpar o TSE começa a organizar as resoluções que vão regular as eleições do ano par seguinte. O TSE está se movimentando para revisar as resoluções anteriores e emitir resoluções novas. A gente quer muito que exista uma consulta pública sobre esse processo porque é super importante que a sociedade civil seja envolvida na redação dessas resoluções.
Matheus Soares: Qual a importância de criar um ecossistema jurídico para lidar com essas diversas regulações?
Iná Jost: A sociedade civil e o próprio governo têm um pouco esse papel de pensar numa regulação holística. As coisas são muito interligadas. Se a gente está falando de campanha de desinformação e de discurso de ódio, a gente está falando de eleição; se a gente está falando de campanhas de mutilação de crianças e adolescentes, a gente está falando de moderação de conteúdo. Então são muitas pontas e a minha opinião é que essas pontas têm que ser articuladas. Não estou falando de um pacotão de medidas para a internet, mas espero que o Poder Legislativo esteja atento à quantidade de trabalho que existe no campo e esteja sagaz o suficiente para integrar essa atividade, para que as coisas funcionem num ecossistema geral.