O Projeto de Lei (PL) 2.628/2022, conhecido como ECA Digital, ganhou novo fôlego no Congresso e pode ser votado ainda nesta quarta-feira (20) na Câmara dos Deputados. Ontem (19), a Câmara aprovou o requerimento de urgência para a proposta, abrindo caminho para uma tramitação acelerada. Na manhã de hoje, parlamentares participam de audiências públicas sobre o tema. Como o texto já passou pelo Senado, a medida encurtaria o caminho até a sanção presidencial.
O projeto conta com amplo apoio de organizações da sociedade civil que defendem a proteção de crianças e adolescentes, mas enfrenta resistência de parte do parlamento e forte lobby das plataformas digitais.
O parecer mais recente foi apresentado pelo relator, deputado Jadyel Alencar (Republicanos-PI) dias após a repercussão do vídeo do influenciador Felca, que expôs práticas de “adultização” de crianças e adolescentes nas redes sociais e reacendeu a pressão por respostas legislativas.
O PL 2.628/2022 estabelece um conjunto de regras específicas para ambientes digitais que envolvem crianças e adolescentes. Ramênia Vieira, coordenadora de incidência, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, avalia que “as regras são um avanço importante, pois reconhece a gravidade do perfilamento e do uso de dados pessoais para publicidade direcionada a crianças e adolescentes”.
“O texto mantém o espírito protetivo que convoca as empresas do digital a respeitarem os direitos de crianças e adolescentes também na internet, adotando por padrão e em seu design medidas mais seguras, evitando que os dados pessoais dessa parcela da população não sejam usados para fins comerciais, fazendo com que conteúdos ilegais contra crianças e adolescentes sejam prioritariamente removidos e proporcionando mais transparência em relação ao que fazem com esses conteúdos, por exemplo avaliou Maria Mello, coordenadora de programa do Instituto Alana.
Abaixo, separamos os principais pontos do projeto de lei.
Proteção integral como diretriz
O PL 2628 estabelece que produtos e serviços digitais voltados a crianças e adolescentes, ou que tenham alto potencial de serem acessados por esse público, deverão ser desenhados a partir da lógica do “melhor interesse da criança”.
Isso significa que empresas de tecnologia terão de observar não apenas o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas também o Código de Defesa do Consumidor e os princípios de proteção integral já consagrados em lei.
Na prática, o PL determina que plataformas adotem medidas desde a concepção até a operação de seus serviços para reduzir riscos de exposição de crianças e adolescentes a conteúdos nocivos e atuar com prontidão na remoção desses conteúdos.
A lista inclui exploração e abuso sexual, violência, assédio, incentivo a vícios e transtornos de saúde mental, jogos de azar, drogas, publicidade predatória, pornografia e orientações inadequadas de saúde.
Proibição do uso de dados e da sexualização
Ponto sensível do PL 2628 está no artigo 22, que proíbe práticas de perfilamento para publicidade dirigida a crianças e adolescentes. O texto também veda o uso de técnicas como análise emocional, realidade aumentada, realidade estendida e realidade virtual para esse mesmo fim.
Especialistas apontam que a medida responde a uma preocupação crescente: a exposição de menores a sistemas sofisticados de direcionamento de anúncios, que exploram vulnerabilidades cognitivas e emocionais.
“O perfilamento já é uma técnica largamente utilizada e influencia diretamente o comportamento das pessoas, desde o que consomem até como formam suas opiniões políticas”, explica Jonas Valente, pesquisador na UnB e membro da Coalizão Direitos na Rede (CDR).
No caso de crianças e adolescentes, lembra, pesquisas mostram que esse público tem menor capacidade crítica para diferenciar publicidade de informação. “Essa proibição cria salvaguardas para evitar que fiquem ainda mais vulneráveis ao uso desses sistemas de recomendação por agentes econômicos ou políticos”, completa.
Além da publicidade segmentada, o projeto de lei avança em outra frente sensível: a proteção contra a exploração sexual. O texto proíbe a monetização e o impulsionamento de conteúdos que retratem crianças e adolescentes em situações erotizadas, sugestivas ou inseridas em contextos do universo sexual adulto. Vale destacar que essa inclusão no PL ocorreu após a repercussão do vídeo de denúncia do influenciador Felca.
Para o pesquisador Paulo Rená, do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS), as previsões “podem ser eficazes para impedir o perfilamento e o uso de dados de crianças e adolescentes em publicidade e na entrega de conteúdos”.
Transparência como regra
O PL 2628 estabelece uma obrigação inédita de transparência para plataformas digitais voltadas ou acessadas por crianças e adolescentes com mais de um milhão de usuários no Brasil.
Essas empresas deverão publicar relatórios semestrais em português, detalhando canais de denúncia disponíveis, volume de notificações recebidas, ações de moderação de conteúdo e contas, além de medidas adotadas para aprimorar a proteção de dados e a privacidade de menores.
Outro ponto central é a abertura de dados para pesquisa técnica, acadêmica ou jornalística. Para Paulo Rená, a medida é estratégica: a exigência de relatórios e abertura de dados “é muito necessária para que possamos medir se a lei, de fato, está protegendo crianças e adolescentes”, afirma.
O PL 2628 estabelece, ainda, que empresas de tecnologia atuantes no Brasil devem adotar mecanismos rigorosos de denúncia e resposta a violações contra crianças e adolescentes, incluindo a comunicação às autoridades de casos de exploração, abuso sexual, sequestro ou aliciamento detectados em suas plataformas.
Também prevê a disponibilização de canais acessíveis para notificação de violações por parte dos usuários e a retirada de conteúdos que atentem contra os direitos de crianças e adolescentes assim que forem identificados ou comunicados, sem necessidade de ordem judicial, reforçando o princípio da proteção integral.
Aferição de idade
A exigência de mecanismos de aferição de idade também está prevista no PL 2628. O texto prevê que plataformas utilizem APIs seguras para fornecer apenas um “sinal de idade”, sem armazenar ou explorar informações adicionais. A ideia é que os dados coletados sirvam exclusivamente para essa finalidade, em linha com o princípio da minimização do tratamento de dados, e que a conta de menores esteja sempre vinculada a um responsável.
Rená avalia que a proposta dialoga com um debate que vem sendo travado em escala global. Para ele, o modelo apresentado é razoável e equilibrado, pois combina salvaguardas de privacidade com a necessidade de criar barreiras ao acesso de crianças a serviços inadequados. “Colocar a responsabilidade nas plataformas é importante porque estabelece as obrigações e delimita os limites. Cabe a elas desenvolver soluções eficazes dentro do seu próprio funcionamento”, explica.
Leia também>> Regulação digital: o que pode avançar ainda este ano no Congresso
Controle parental e educação midiática
O ECA Digital também reforça o papel da família na mediação do uso da internet por crianças e adolescentes. No texto fica estabelecido que pais e responsáveis devem exercer um “cuidado ativo e contínuo”, utilizando ferramentas de supervisão adequadas à idade e ao desenvolvimento dos menores.
Já as empresas de tecnologia passam a ter a obrigação de fornecer informações claras sobre riscos, medidas de segurança, privacidade e proteção de dados, independentemente da aquisição de produtos ou serviços.
A proposta também insere a promoção da educação digital como política de Estado, com foco na cidadania e no desenvolvimento do senso crítico para o uso seguro da tecnologia.
Jonas Valente explica que o projeto equilibra responsabilidades entre famílias e plataformas, fortalecendo mecanismos de acompanhamento. Segundo ele, as medidas de educação midiática são “fundamentais para ampliar o conhecimento social sobre o funcionamento das aplicações, seus riscos e os direitos já previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, além dos novos direitos que podem ser garantidos pelo PL quando virar lei”.
Apoio ao PL 2628
O PL 2628/2022 tem encontrado respaldo tanto no Congresso quanto fora dele. O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), afirmou que a proposta é tratada como prioridade pela Casa. Segundo ele, apesar do direito de obstrução da oposição, o texto representa uma demanda urgente da sociedade e precisa ser votado, a exemplo do que já ocorreu no Senado.
O governo federal também se posicionou a favor, descrevendo o projeto em suas redes sociais como “o mais completo sobre o tema”. O apoio se estende à sociedade civil: um manifesto em defesa do PL já reúne a assinatura de 283 organizações e de mais de 4 mil pessoas. No documento, os signatários classificam a regulação como “absolutamente necessária” para proteger crianças e adolescentes de riscos digitais, que vão da exposição à publicidade de jogos de azar à coleta indevida de dados pessoais.
Ao longo desta quarta-feira, enquanto esperava-se a adição do projeto na pauta da Câmara, o clima era, segundo Maria Mello, do Instituto Alana, é de otimismo para a aprovação do projeto, mas com as organizações se mantendo atentas. “O Congresso parece estar unido em torno da proteção online das crianças no ambiente digital em nosso país e essa é a chance de os parlamentares mostrarem que não se curvam ao poder econômico e a polarizações políticas, mas se levantam pela infância brasileira”, avaliou.
A Coalizão Direitos na Rede (CDR), que inclui mais de 50 organizações que atuam na luta e defesa dos direitos digitais, também publicou uma nota de apoio.
Pressão das big techs marca resistência ao PL 2628
Deputados bolsonaristas acusam o texto de “tentativa de censura” nas redes sociais. O líder do PL, Sóstenes Cavalcante, chegou a mencionar que o partido pode obstruir a votação.
Paralelamente, reportagem do Intercept Brasil revelou a atuação direta das big techs na tramitação do projeto. Um lobista da Meta, Marconi Borges Machado, redigiu emendas apresentadas pelo deputado Fernando Máximo (União Brasil-RO). Os metadados disponíveis no site da Câmara confirmam que ao menos duas das quatro emendas protocoladas por Máximo – todas favoráveis às empresas – foram escritas por Machado, gerente de políticas públicas da Meta desde 2017.
As sugestões buscavam reduzir a responsabilização das plataformas, como retirar a obrigatoriedade da publicação de relatórios de moderação e excluir sanções criminais. Na manhã desta quarta-feira, na Comissão de Educação da Câmara, deputados de oposição resgataram um outro projeto de regulação, o PL 10.583/2018, apensando-o a outro projeto, o PL 840/2025, que busca combater a erotização de crianças em escolas públicas.
Apesar da expectativa de aprovação do texto, Ramênia Vieira analisa que o lobby das empresas tem enfraquecido medidas mais incisivas, ao defender a autorregulação e o adiamento das regras. Ela alerta para o risco de emendas de última hora diluírem as salvaguardas, mas pondera que “a mobilização de organizações da sociedade civil, de setores da saúde, direitos digitais e defesa da infância funciona como contrapeso político e social, mantendo vivas as chances de um avanço normativo relevante”.