O que seria das nossas vidas sem humor, não é mesmo? Seja para tornar as coisas mais leves, para fazer críticas ácidas ou para burlar sistemas de repressão, o recurso do humor é importante para a vida em sociedade e, ainda mais, em um ambiente democrático.
O que vemos recentemente, no entanto, é que uma prática que historicamente foi usada para contestar elites, padrões e normas estabelecidas tem sido cada vez mais apropriada para defender publicamente posições reacionárias e de ataque a grupos minoritários. Não é raro que esse uso do humor apareça fortemente relacionado ao uso de informações falsas ou distorcidas.
Como defende o pesquisador Viktor Chagas (2020), “O ´era apenas uma brincadeira’ tornou-se uma resposta recorrente para questionamentos sobre os limites das ações e falas de autoridades, a respeito de opiniões antidemocráticas direcionadas a grupos minoritários ou indivíduos específicos”. O autor defende que, primeiro, humor e política andam juntos, não fazendo sentido tentar separar as duas coisas. Segundo, essa justificativa de que algum discurso ou argumento é apenas uma piada ou brincadeira tem sido usada “como uma tentativa de inverter o posicionamento dos sujeitos na controvérsia, transformando o ofensor em vítima de má interpretação” (Chagas, 2020). Neste sentido, Chagas aponta que há uma tentativa de caracterizar a brincadeira como inofensiva, excluindo sua leitura como uma forma de agressão.
Portanto, a discussão sobre qual é o limite do uso do humor e a partir de quando ele pode se tornar um problema não é nada simples. Vamos explicar aqui alguns pontos que têm sido muito discutidos por pesquisadores em relação a esse tema.
Fake news com uma pitada de humor: a mistura perfeita
Bom, primeiro de tudo, que relação pode ser feita entre humor, piadas, sátiras e as fake news? Essas duas coisas podem se confundir, mas nem sempre andam juntas. Existe desinformação que passa longe do humor, como aquelas que tentam imitar os formatos jornalísticos, por exemplo. E claro que existe também muito humor que não tem nada de falso. Mas existem dois pontos em que essas questões se tocam.
Uma revisão de literatura publicada em 2020 investigou quais os principais motivos apontados em estudos para que as pessoas espalhem fake news. Primeiro, eles chegam à conclusão de que os fatores sociais são os mais relevantes para fazer com que as pessoas espalhem fake news. Entre esses elementos sociais está o uso do humor e da sátira. Segundo os autores, “a conformidade e influência dos pares, a comparação social e os fakes de humor e sátira têm grande influência na decisão de compartilhar fake news” (Celliers & Hattingh, 2020). Ou seja, a mistura entre fake news e humor acaba por servir como um atrativo para o seu espalhamento na rede.
O achado dessa pesquisa vai no mesmo sentido de outros estudos, que têm revelado que o nível de engajamento com conteúdo falso tende a ser maior do que com o verdadeiro. Ou seja, não apenas eles tendem a ser mais compartilhados, mas também a registrarem mais interações de forma geral (curtidas, comentários etc).
Humor gera cinismo?
A questão é que não apenas o humor pode ajudar fake news a se espalharem mais rápido e a ter mais engajamento, mas ele também pode ter consequências democráticas muito perversas. Em estudo publicado em 2014, o pesquisador israelense Meital Balmas trabalha com uma ideia de fake news muito próxima da sátira política. Para ele, “o gênero das fake news destaca majoritariamente inconsistências na retórica política e satiriza as normas que regem as mídias tradicionais” (Balmas, 2014).
Sem entrar na discussão sobre este conceito de fake news bastante controverso, o fato é que ele vai pesquisar como o uso dessa sátira política afeta os sentimentos políticos dos cidadãos em relação a candidatos. Usando dados das eleições israelenses de 2006, ele identifica evidências de que o contato com esse conteúdo satírico acaba gerando sentimentos de ineficácia, alienação e cinismo.
Ou seja, segundo essa pesquisa, quando as pessoas consomem muito conteúdo de sátira política, elas tendem a ter sentimentos mais cínicos em relação a políticos. Esses sentimentos podem se desdobrar em comportamentos, como perder a vontade de votar, a paciência de participar em discussões políticas ou de ler notícias confiáveis, por exemplo.
Os preconceitos escondidos atrás do humor
Os grupos minorizados, que tipicamente são mais afetados pela desinformação, acabam sendo temas de discursos preconceituosos disfarçados de humor. Em um estudo feito com estudantes de comédia, especificamente dedicados a stand-up comedy, um pesquisador revelou que “o racismo na stand stand-up comedy pode ser público e ostensivo, mas tornado palatável porque o cômico normalmente não é considerado como racista”. (Pérez, 2013)
Ou seja, para ele, o uso do humor permitiria aos artistas que eles parecessem autênticos e, ao mesmo tempo, reforçassem estereótipos raciais. Esse trabalho fala de um ambiente off-line, aquele do stand-up comedy, mas uma observação semelhante foi feita sobre os memes racistas que circulam na rede. Segundo Yoon (2016), a maioria dos memes de internet sobre racismo ajudam a perpetuar a insensibilidade com a questão racial, zoando as pessoas negras e negando o racismo estrutural. Mais uma vez, o humor aparece associado à defesa de posições retrógradas e pouco democráticas.
Memes: Onde vivem? O que comem? De onde vêm? A que servem?
Toda essa onda de apropriação do humor por posições reacionárias pode ser vista muito claramente na questão dos memes. Em um texto de 2020, Chagas lembra o seguinte tweet de Eduardo Bolsonaro, publicado no dia 19 de dezembro de 2019:
“Será que sou um criminoso por esse humor político? Nunca imaginei que fosse falar isso, mas: seja resistência, faça memes!”
O pesquisador relata que o que se segue ao texto é uma fotomontagem com a imagem da deputada Joice Hasselmann em dois momentos, fazendo escárnio de seu ganho de peso. (Viktor Chagas, 2020).
Não poderíamos terminar esse texto sem falar dos memes porque eles têm sido um formato de humor político que tem dominado as redes. Não são poucos os autores que se dedicam a retraçar a história desse formato e a entender as consequências do seu uso (Vicktor Chagas, Freire, Rios, & Magalhães, 2019; Milner, 2016; Mina, 2019; Shifman, 2014).
Os memes não nasceram com a internet, mas foi com ela que eles atingiram níveis estrondosos de impacto. O formato parte da longa tradição humana de misturar, remixar, reapropriar e compartilhar (Mina, 2019) e o encontro disso com a cultura participativa da web 2.0 acaba dando uma nova dimensão ao fenômeno (Shifman, 2014).
Pois bem, a questão é que esse formato fácil, acessível, e reapropriável tem efeitos políticos muito concretos. Por um lado, ele cria uma série de novas possibilidades de atuação para movimentos sociais (Mina, 2019) e, por outro, podem também podem ser veículos que facilitam a disseminação da desinformação. Como destaca Milner (2016), “devido a suas dimensões populares, as lógicas meméticas podem facilitar a difusão tanto de informação como de desinformação. Os participantes criam e transformam conteúdo com precisão e credibilidade inconsistentes, e os gatekeepers da rede circulam esses conteúdos indiscriminadamente.”
Fim ao humor?
Bom, então é isso, mais de mil palavras pra dizer que nosso último bastião de resistência cotidiana só serve para o mal? Mas claro que não!
O humor sempre foi e continua sendo uma forma poderosa de resistência, de contestação e provocação de mudanças. E ele ganha ainda mais força com a velocidade e intensidade da comunicação digital. Justamente por isso é que precisamos estar atentos às formas como essa estratégia está sendo usada. O objetivo desse texto é levantar alguns elementos que nos permitam olhar criticamente para o uso do humor e, sobretudo, de como ele pode ser usado para disseminar diversas formas de desinformação. Mas não, pelos orixás, não vamos parar de rir!
Referências bibliográficas:
- Balmas, M. (2014). When Fake News Becomes Real: Combined Exposure to Multiple News Sources and Political Attitudes of Inefficacy, Alienation, and Cynicism. Communication Research, 41(3), 430–454. https://doi.org/10.1177/0093650212453600
- Celliers, M., & Hattingh, M. (2020). A Systematic Review on Fake News Themes Reported in Literature. Lecture Notes in Computer Science. https://doi.org/10.1007/978-3-030-45002-1_19
- Chagas, Vicktor, Freire, F., Rios, D., & Magalhães, D. (2019). Political memes and the politics of memes: a methodological proposal for content analysis of online political memes. First Monday, 24(2).
- Chagas, Viktor. (2020). DOLCE FARMEME: a retórica da brincadeira política. In Compós 2020 (pp. 1–21).
- Milner, R. M. (2016). The world made meme. Cambridge: The MIT Press.
- Mina, A. X. (2019). Memes To Movements. Penguin Random House LLC (Publisher Services). Retrieved from http://www.beacon.org/Memes-to-Movements-P1410.aspx
- Pérez, R. (2013). Learning to make racism funny in the “color-blind” era: Stand-up comedy students, performance strategies, and the (re)production of racist jokes in public. Discourse and Society, 24(4), 478–503. https://doi.org/10.1177/0957926513482066
- Shifman, L. (2014). Memes on digital culture. Cambridge: The MIT Press.
- Yoon, I. (2016). Why is it not Just a Joke? Analysis of Internet Memes Associated with Racism and Hidden Ideology of Colorblindness. Journal of Cultural Research in Art Education, 33, 92–122. Retrieved from http://www.jcrae.org/journal/index.php/jcrae/article/view/60