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Pontos de vista

mar 24, 2025 | Destaques, Pontos de Vista

Um alerta ao mundo: o papel das plataformas de redes sociais na campanha de desinformação de Bolsonaro visando as instituições democráticas do Brasil

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Este artigo foi publicado originalmente no Tech Policy Press.

Nos últimos meses, as empresas de redes sociais — principalmente a Meta e a X — relaxaram significativamente sua postura em relação ao combate à desinformação e à informação enganosa. Por exemplo, em janeiro, o fundador e CEO da Meta, Mark Zuckerberg, prometeu que a empresa retornaria às suas “raízes em torno da liberdade de expressão”, reduzindo equipes de checagem de fatos, diminuindo os limites de seus filtros automatizados e ajustando sua política de discurso de ódio para torná-la mais permissiva.

Essas mudanças parecem especialmente incongruentes no Brasil, onde o ex-presidente do país é acusado de orquestrar uma tentativa de golpe para anular os resultados das eleições de 2022. Em 18 de fevereiro, a Procuradoria-Geral da República do Brasil formalmente indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus aliados, alegando que eles participaram de conspirações para anular a votação, dissolver tribunais e até mesmo assassinar o presidente eleito. As evidências apresentadas detalham um esforço coordenado que envolveu a manipulação de recursos estatais e a incitação à violência contra instituições democráticas. A investigação também revela como figuras políticas, influenciadores e redes de mídia usaram plataformas das Big Tech para espalhar desinformação por meio de narrativas coordenadas que sugeriam falsamente fraude eleitoral.

Embora este caso seja específico ao Brasil, ele serve como um alerta sobre as consequências mais amplas das decisões das plataformas. À medida que essas empresas afrouxam suas políticas, estreitam laços com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, criam alianças com partidos de direita ao redor do mundo para resistir à regulamentação e enquadram sua postura sobre liberdade de expressão como uma batalha contra a “censura”, elas correm o risco de amplificar campanhas de desinformação, ameaçar sistemas eleitorais, desafiar instituições e minar a democracia e a soberania.

Os relatórios da investigação brasileira demonstram como operações de desinformação se aproveitam de narrativas conspiratórias, contando com uma coordenação em larga escala de usuários autênticos para disseminar dados hipotéticos, evidências insuficientes, informações falsas e narrativas enganosas por meio de um sistema multimídia. Esse tipo de campanha consegue escapar dos sistemas de moderação de conteúdo, tanto manuais quanto algorítmicos, que têm dificuldade em interpretar nuances comunicativas. A natureza das campanhas de desinformação de Bolsonaro vai além do que os sistemas e algoritmos existentes conseguem detectar e, certamente, além do que as plataformas considerariam uma violação. A propagação dessas narrativas falsas depende de grupos em aplicativos de mensagens como WhatsApp e Telegram, transmissões ao vivo oficiais do presidente no YouTube, postagens de políticos, influenciadores de direita e da mídia tradicional de extrema-direita. Por meio de seus canais oficiais no YouTube, esses veículos de mídia concederam espaço para que políticos desse espectro ideológico disseminassem teorias da conspiração.

Muito antes de Trump, as Big Tech já estavam abrindo caminho para o retrocesso democrático sob o pretexto da defesa da liberdade de expressão. Enquanto as plataformas fazem lobby contra regulamentações ao se aliarem a partidos de extrema-direita, elas também realizaram mudanças internas significativas que impactam as eleições. Em 2022, Elon Musk desmantelou políticas e equipes de moderação de conteúdo no Twitter (agora X). Em 2023, o YouTube parou de remover conteúdos relacionados a alegações falsas de fraude eleitoral globalmente, justificando que “conteúdos controversos ou baseados em suposições refutadas são fundamentais para uma sociedade democrática funcional — especialmente em meio às eleições” (as medidas de integridade eleitoral do YouTube permaneceram em vigor desde o segundo turno das eleições presidenciais de 2022). Finalmente, em 2025, Mark Zuckerberg também aderiu ao mesmo discurso da liberdade de expressão.

Embora as plataformas há muito tempo defendam a liberdade de expressão em seus termos — uma batalha que, no fim das contas, beneficia seus próprios interesses comerciais — nos últimos anos, sob grande pressão pública, elas implementaram medidas para mitigar ameaças à integridade eleitoral. Por exemplo, a Meta e o YouTube possuem regras contra comportamento inautêntico coordenado, táticas de interferência no voto e conteúdos que promovem danos ou discurso de ódio — políticas que podem ser aplicadas durante as eleições. Certamente, essas políticas são necessárias, mas estão longe de ser suficientes. E fundamentalmente, isso não significa que as plataformas tenham realmente protegido a integridade cívica.

A experiência brasileira demonstra que a desinformação vai além do direito de questionar a integridade do sistema eleitoral — o que, claro, é importante defender. Ela mostra que os problemas não se limitam apenas a comportamento inautêntico coordenado ou manipulação algorítmica em uma única plataforma. Em vez disso, as campanhas modernas de desinformação operam em múltiplas plataformas e formatos de mídia e estão profundamente interligadas ao cenário político mais amplo — algo que essas empresas consistentemente falham em compreender. Essa falha, no entanto, não se deve à ingenuidade. Pelo contrário, reflete uma escolha estratégica deliberada, impulsionada por interesses financeiros e políticos que impactam diretamente a democracia e a soberania.

Enquanto as plataformas “lutam para restaurar a liberdade de expressão”, nós, no Brasil, estamos bem conscientes das ameaças que elas representam para a nossa democracia. As descobertas da Procuradoria-Geral da República do Brasil não deveriam ser uma surpresa. Durante anos, os brasileiros confiaram no sistema eletrônico de votação. No entanto, após a ascensão de Bolsonaro ao poder em 2018, as narrativas conspiratórias se tornaram mais proeminentes nas plataformas de mídia social. Em novembro de 2022, 56% dos brasileiros não confiavam nas urnas eletrônicas. Teorias da conspiração coordenadas e impulsionadas pela mídia tornaram-se a ferramenta de sucesso para atores políticos no Brasil, usadas para resistir à mudança de governo, minar instituições democráticas, legitimar narrativas falsas e criar dissonância cognitiva generalizada.

O Supremo Tribunal Federal do Brasil ainda precisa decidir os próximos passos desse julgamento. Enquanto isso, os anúncios de política de Zuckerberg no início deste ano certamente terão efeitos em toda a indústria e ao redor do mundo. Assim como no Brasil nos preparamos para mais uma eleição presidencial em 2026, sabemos que não estamos sozinhos. As ameaças à democracia e à soberania são uma realidade global, e as evidências trazidas à tona por essa investigação devem servir como um alerta.

Por anos, legisladores, reguladores, grupos da sociedade civil, pesquisadores, jornalistas e até mesmo funcionários das próprias empresas de tecnologia — que, em um ato de resistência, desafiaram as exigências de seus empregadores — têm desempenhado um papel fundamental ao pressionar as plataformas para que tomem medidas contra a desinformação e as teorias da conspiração que ameaçam nosso sistema eleitoral. Desta vez, o desafio é ainda maior — precisamos encontrar caminhos criativos para alianças internacionais que possam proteger a democracia em nível global.

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Andressa Michelotti

Doutoranda do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisadora do Margem — Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça (UFMG) e membro do Governing the Digital Society na Universidade de Utrecht, Holanda.