Mesmo não constando da versão do PL 2630 retirada da pauta de votação na última terça-feira, dia 2, a criação de um órgão regulador responsável por fiscalizar o cumprimento das normas por parte das plataformas digitais é uma demanda de muitas organizações da sociedade civil. Em documento assinado por cem entidades, há o consenso de que tal órgão deve ter composição multissetorial (sociedade civil, empresas e estado), autonomia e independência em relação ao governo.
Prevista na versão anterior do projeto, a criação de uma entidade autônoma responsável por fiscalizar o cumprimento das regras sofreu forte oposição dos contrários ao projeto, alegando que tal entidade teria grandes poderes e atuaria como um “Ministério da Verdade”, na expressão utilizada na narrativa dos grupos opositores ao PL. Frente à pressão, o relator Orlando Silva (PCdoB-SP) retirou a criação do órgão no texto apresentado esta semana.
Órgãos semelhantes, entretanto, existem em países que buscam avançar na regulação das plataformas digitais. O Digital Service Act (leia aqui em português), ou Lei de Serviços Digitais, aprovado recentemente na União Europeia, tem uma estrutura de execução em dois níveis. As plataformas de grande porte e buscadores de grande porte serão supervisionados pela Comissão Europeia. Isto destina-se a assegurar uma forte aplicação da lei sobre as plataformas de maior porte, mesmo que não haja vontade política ou recursos suficientes em cada Estado Membro.
Então, todos os outros serviços serão supervisionados pelos reguladores nomeados em nível nacional. Cada Estado Membro criará um Coordenador de Serviços Digitais (DSC) que será a principal entidade responsável pela supervisão da regulação no país. Os Estados Membros podem designar vários reguladores para supervisionar diferentes aspectos da regulação, mas precisam de um DSC. Cada país terá até fevereiro de 2024 para indicar seus órgãos supervisores, como indica a lei.
É necessário um órgão regulador?
“O projeto de lei cria diversas obrigações e diversos mecanismos de transparência que precisam ser supervisionados por alguém, por alguma instância”, pondera Iná Jost, advogada e coordenadora da área de liberdade de expressão do InternetLab. Assim como a Saúde é supervisionada pela Anvisa, os Transportes são supervisionados pela ANTT, as Telecomunicações são supervisionadas pela Anatel, lembra a pesquisadora, “a gente acredita que o ambiente online possa ser supervisionado por um órgão regulador”.
Viviane Tavares, da coordenação-executiva do Intervozes, também defende a criação de um órgão especializado e focado nessa atuação. “É importante ressaltar que ainda será necessário estabelecer os conteúdos que as plataformas poderão moderar por conta própria a partir do que determina o ‘dever de cuidado’ e aqueles cuja remoção dependerá de ordens judiciais, a partir do que determina o artigo 19 do Marco Civil da Internet” afirma a pesquisadora, que acrescenta: “se, por um lado, criticamos a inação das big techs, não podemos correr o risco de dar super-poderes a elas, por isso a importância de um órgão regulador independente tanto em relação ao governo quanto às empresas”.
O desenho e as atribuições desse órgão ainda precisam ser definidos. Em documento publicado pela Sala de Combate à Desinformação (SAD), assinado por cem organizações da sociedade civil, lê-se que “órgão regulador não deve incidir em conteúdo individual, mas nos sistemas de funcionamento e nos modelos de responsabilização das plataformas digitais”, assim como “deve fiscalizar os deveres, de modo a zelar pelo cumprimento das obrigações e analisar impactos dos termos de uso e políticas das plataformas em cooperação com órgãos e autoridades competentes, sociedade civil, imprensa e cidadãos-usuários”.
O documento reafirma a necessidade de autonomia do órgão e de uma composição multissetorial, isto é, composto por membros da sociedade civil, das empresas de tecnologia e do estado.
“O desenho desse órgão regulador é o que está em aberto, e a gente tem que ter muito cuidado nesse desenho porque, obviamente, a gente não pode incorrer num desenho de um órgão que traga algum mecanismo de controle de conteúdo que poderia correr por uma veia mais autoritária, num controle indesejado e até mesmo antidemocrático do discurso”, alerta Iná Jost.
O órgão regulador seria a Anatel?
Ganhou força a possibilidade da (Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) assumir a função desse órgão regulador do ambiente digital. “Nossa visão é que precisa haver um órgão regulador e o que eu tenho colocado publicamente é que na administração pública brasileira, atualmente, a Anatel é o órgão mais apto para assumir essa responsabilidade e garantir que a lei que vier a ser aprovada em decorrência do PL das Fake News seja efetivamente cumprida por essas empresas”, disse Carlos Baigorri, presidente da Agência.
Para assumir as novas atribuições, a Anatel, segundo Baigorri, não precisaria de ampliação do quadro de servidores previsto em lei, bastaria a recomposição do quadro. “A gente precisaria, claro, de algum tipo de capacitação, mas já estamos nos preparando para isso”.
Também em entrevista, o relator do PL 2630 ponderou esta possibilidade. Orlando Silva afirmou que “(A Anatel é) a hipótese mais forte, que tem menos resistência na Câmara, porque já se conhece a Anatel, já se sabe a dinâmica, o funcionamento. Não gera nenhum tipo de desconfiança”, porém acrescentou que o “adequado seria criar um órgão próprio, especializado, porque a dinâmica é muito peculiar “. Mas a contaminação dessa proposta é tamanha que hoje é necessário uma solução mediada”.
Viviane Tavares e Iná Jost, entretanto, não acreditam que caberia à Anatel desempenhar essa função reguladora do ambiente digital. “A pressão para que a Anatel assuma esse papel parece estar crescendo e recebendo o endosso de alguns parlamentares. No entanto, achamos que pelo histórico da Anatel e suas atribuições ela não seria a opção mais correta”, afirma a coordenadora-executiva do Intervozes.
Já para a coordenadora da área de liberdade de expressão do InternetLab, Iná Jost, a Anatel já possui muitas atribuições e de escopos diferentes, o que poderia comprometer seu papel como agência reguladora do ambiente digital, e acrescentou que é importante “lembrar que a gente está falando sobre liberdade de expressão, sobre violência de gênero, sobre direito das crianças e adolescentes… são muitas bolsas de direitos que são afetadas por essa atividade regulatória das plataformas, e uma preocupação máxima com a preservação do discurso, da expressão na sua mais pura forma. O que a gente está tentando é encontrar um equilíbrio, e a Anatel não tem ‘expertise’ para exercer esse equilíbrio”.