A ideia é apenas fazer referência no decorrer das fake News (FN) aos danos algorítmicos no cerne comportamental da informação dentro da dimensão-chave política, muitas vezes já automatizada, que tanto prejudicam o bom andamento da democracia.
Nas eleições presidenciais que ocorreram no Brasil, conforme indicam estudos de pesquisa da Avaaz, 98% dos eleitores do presidente eleito Jair Bolsonaro foram expostos a uma ou mais mensagens falsas durante a campanha, sendo que 89% acreditaram que os fatos eram verdade, relatam Eduardo Magrani e Paulo Rodrigo de Miranda (2021), na MIT Technology Review. Dentre as principais FN espalhadas entre os eleitores, “destacaram-se: a fraude nas urnas eletrônicas; a implementação de um suposto ‘kit gay’ nas escolas por Fernando Haddad (candidato da oposição); e que o agressor de Bolsonaro (Adélio Bispo de Oliveira) era filiado ao PT [Partido dos Trabalhadores]”.
A fadiga da expressão FN estava apenas no começo da distopia digital e ainda hoje – esse “hoje” serve para qualquer dia, tamanha é a desconfiança nas informações, como por exemplo, no interregno da pandemia, convivendo com negacionismo e teorias anticiência (não apenas da saúde), como também do ambiente, com o ápice das queimadas refutadas ou na ciberesfera eleitoreira manipulada, não demonstra cessação, mesmo porque as FN são um tanto quanto previsíveis.
“Cinco dos sete juízes do TSE afirmaram que houve uso ilícito de envios em massa de WhatsApp em 2018 para beneficiar a campanha de Bolsonaro. E fixaram precedente para o ano que vem – quem fizer isso, terá a chapa cassada”, posta Patrícia Campos Mello, em outubro de 2021, na sua conta do Twitter, e com dificuldade ou não de se poder provar a prática ilegal, de terem escolhido passar pano e apenas ameaçar com prisão quem repetir disparos em massa nas eleições de 2022, ela tuíta sobre a chapa Bolsonaro-Mourão: “foi absolvida porque, segundo os ministros, não havia como dimensionar a gravidade do ilícito e a influência dos disparos na eleição”. Para a reeleição do atual presidente, o Telegram – criado na Rússia, em 2013 – virou o mensageiro instantâneo preferido, já que não possui restrições. Dados do início de 2022 contam mais de 1 milhão de seguidores do presidente no app. Aliás, os bolsonaristas – para driblar banimentos – estão também em massa nas redes Parler, Gettr e Gab. Ou seja, não sairemos, infelizmente, dessa barafunda. Aguardemos mais bombardeio.
Em primeira instância, as FN foram determinantes em 2016, quando das eleições norte-americanas com sobrecarga de desinformação. Tais eleições são tidas como manipuladas por ações de marketing político ou a serviço de interesses particulares. Apesar do estratagema de campanha para persuadir os britânicos nas negociações do plebiscito do Brexit, para a saída do Reino Unido do bloco europeu, o ressoo maior das FN foi provocado por Trump (Prado, 2019a, p. 166).
Nessa época, houve a popularização do termo “fake news”, tornado politicoide graças a Trump, que, após ganhar as eleições, passou a usá-lo para rebater, atacar e insultar o jornalismo mainstream (The New York Times, The Washington Post, The Wall Street Journal etc.), com o qual não concordava, de maneira a querer deslegitimizar a imprensa como instituição. No Brasil, eleitores do atual presidente também “desdenham a cobertura crítica do governo, descartando-a como jornalismo tendencioso”, reporta o relatório da Reuters (2020).
Alavancagens de conteúdo extremista
Clive Thompson (2020), da revista Wired, relembra quando, “na estufa da temporada eleitoral de 2016 nos Estados Unidos, os observadores argumentaram que as recomendações do YouTube direcionavam os eleitores para um conteúdo cada vez mais extremo”. O repórter também relata que “pensadores da conspiração e agitadores de direita publicaram falsos rumores sobre o colapso mental iminente de Hillary Clinton e envolvimento em uma quadrilha de pedófilos de pizzaria inexistente”, então assistiram, continua “com alegria, enquanto seus vídeos decolavam na coluna Up Next do YouTube”. Guillaume Chaslot, ex-engenheiro do Google, “codificou um programa web scraper para ver, entre outras coisas, se o algoritmo do YouTube tinha uma inclinação política”. Chaslot então descobriu que: “As recomendações favoreciam fortemente Trump, bem como o material antiClinton. O sistema de tempo de exibição, em sua opinião, estava otimizando para quem estivesse mais disposto a contar mentiras fantásticas”.
Em entrevista a Nelson de Sá do jornal Folha de S. Paulo, Ricardo Campos, considerado “uma das principais vozes no debate sobre o projeto de lei das fake news”, afirmou que “Eleições americanas de 2016 e outros eventos globais deixaram clara a posição central das plataformas [digitais] como a nova infraestrutura da comunicação, com nítido impacto na democracia”. As plataformas, diz, “criam espaços públicos a partir de relações privadas, e nesse sentido são decisivas para a formação da opinião pública dentro das democracias”.
Para se ter uma ideia de como as plataformas operam a desinformação, em trolagem política, observa-se, o caso de Sophie Zhang, reportado pela BBC News por Jane Wakefield (2020), que trouxe à tona como a torrente de perfis falsos no Facebook tem prejudicado eleições em todo o mundo. A cientista de dados disse que no período em que trabalhou no Facebook [nos últimos três anos], tomou decisões, sem supervisão, que “afetaram presidentes” de países ao redor do mundo e confessa: “Agi contra tantos políticos proeminentes globalmente que perdi a conta”. Além disso, cita diferentes exemplos de manipulação política ou tentativa de manipulação que acompanhou durante seu trabalho. Aqui, a parafernália das infraestruturas da desinformação utilizadas, inclusive os dublês digitais:
10,5 milhões de falsas reações e falsos seguidores foram removidos de perfis de políticos de destaque no Brasil e nos Estados Unidos nas eleições de 2018 (respectivamente, presidencial e legislativa). O Facebook, diz ela, demorou nove meses para agir com base em informações de que robôs (bots) estavam sendo usados para impulsionar o presidente de Honduras, Juan Orlando Hernandez. No Azerbaijão, o partido do governo usou milhares de robôs para perseguir a oposição. Um pesquisador da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) informou ao Facebook ter encontrado atividades oriundas da Rússia sobre uma grande figura política americana, as quais teriam sido removidas por Zhang. Contas falsas de robôs foram descobertas na Bolívia e no Equador, mas o problema não foi priorizado pelo Facebook devido à carga de trabalho. Zhang diz que descobriu e removeu 672 mil contas falsas que atuavam contra ministros da Saúde em todo o mundo durante a pandemia. Na Índia, Zhang diz que trabalhou para excluir uma sofisticada rede com mais de mil usuários que trabalhavam para influenciar uma eleição local em Nova Déli (Wakefield, 2020).
O relato detalhado sobre a deterioração da informação feito por Zhang “levanta grandes preocupações sobre a enorme responsabilidade concedida aos moderadores do Facebook, cujas decisões podem afetar eventos democráticos, resultados políticos e a vida das pessoas em todo o mundo”, relata a repórter da BBC News especializada em desinformação Marianna Spring (Wakefield, 2020). Por aqui, o senador Alessandro Vieira expõe no Art. 6º do PL nº 2.630/20, conhecida como Lei das Fake News:
Com o objetivo de proteger a liberdade de expressão, o acesso à informação e fomentar o livre fluxo de ideias na Internet, as redes sociais e os serviços de mensageria privada, no âmbito e nos limites técnicos de seu serviço, devem adotar medidas para: I – vedar o funcionamento de contas inautênticas (Vieira, 2020).
A dificuldade é o controle.
Há ainda o fator de como aguçam a polarização política da mensagem, movida à raiva, que acaba por amplificar ainda mais a divisão ideológica e a desinformação, muitas vezes, de forma proposital. No Brasil, o gabinete do ódio é o exemplo comezinho. Grupos têm o ambiente do ciberespaço para entrar em choque de interesses e aproveitam as FN para o ataque provocador, na tentativa de rechaçar o outro lado como um inimigo mortal em alto potencial viral. Enquanto estivermos com a sociedade polarizada, será difícil frear esses encaixotamentos. Os desdobramentos mostram manifestações de alta intensidade emergindo, como os grupos de extrema-direita.
Em relação à vida cívica, com as distorções das eleições pela desinformação, no uso de artifícios para descredibilizar a concorrência, trazemos Helbing et al. (2017), a alertar sobre o problema, quando dizem que “faltam transparência adequada e controle democrático: a erosão do sistema por dentro”. Os teóricos defendem que os algoritmos de pesquisa e os sistemas de recomendação podem ser influenciados e as empresas conseguem fazer lances em certas combinações de palavras para obter resultados mais favoráveis. “Os governos provavelmente são capazes de influenciar os resultados também”. Apesar de sabermos que o eleitor acredita no que quiser, “durante as eleições, eles podem estimular eleitores indecisos a apoiá-los – uma manipulação que seria difícil de detectar. Portanto, quem quer que controle esta tecnologia pode ganhar eleições – empurrando-se para o poder”. Tira-se proveito eleitoral quem está antenado com esse tipo de tática de campanha.
Por isso, é necessário redobrar esforços para fazer circular a noção de verdade e, assim, abafar a chance das discrepâncias que castigam as redes. Isso se faz imperativo principalmente em momentos cruciais para a política (eleições, manifestações, campanhas etc.). Contudo, reforço que a intenção é unicamente atinar sobre os meandros do direcionamento sagaz de quem produz FN em uma sociedade do conhecimento dataficada. Aliás, a resposta para “quem” comanda essa irresponsável desorganização informacional com o ecossistema de direcionamento de informações forjadas é a chave para o combate efetivo.
*Este artigo é um trecho do livro “Fake News e Inteligência Artificial – O Poder dos Algoritmos na Guerra da Desinformação”, de Magaly Prado, 424 p., editora Almedina, 2022.