Texto originalmente publicado no Poynter: https://www.poynter.org/business-work/2022/an-unholy-coalition-torpedoes-social-media-reform-legislation-in-brazil/
O presidente brasileiro Jair Bolsonaro, o Google e o Facebook são aliados acidentais que lutam na mesma trincheira para derrotar a regulamentação das big techs no Brasil. Bolsonaro manobrou seus aliados no mês passado e conseguiu colocar freios na lei que estabeleceria requisitos de moderação e transparência para as plataformas de internet e pagamento de conteúdo jornalístico.
Não há muita esperança entre os legisladores de que eles possam votar o PL 2630 ou PL das Fake News antes das eleições presidenciais de 2 de outubro. Dessa forma, Bolsonaro irá provavelmente entrar na campanha presidencial de 2022 sem qualquer risco de restrições no Telegram, no WhatsApp e nas plataformas de redes sociais que utiliza para divulgar a versão brasileira de “Stop the Steal”.
A decisão de adiar o debate sobre o projeto de lei foi uma enorme vitória para os agressivos esforços de lobby do Google e do Facebook contra o pagamento de conteúdo de notícias e os requisitos de transparência para a segmentação de anúncios e moderação de conteúdo. Durante três dias, o Google apresentou em sua página inicial brasileira, logo abaixo da caixa de busca, links como: “Saiba como o PL 2360 pode forçar o Google a financiar notícias falsas.” 97% de todas as buscas na web no Brasil são feitas no Google, de acordo com o Statista.
A plataforma também publicou anúncios de página inteira nos principais jornais diários brasileiros dizendo que a lei levaria à desinformação. Pressionou as pessoas a pressionarem seus legisladores sobre as mídias sociais. No Instagram, os anúncios colocados pelo Google diziam: “Veja como isso pode prejudicá-lo – um projeto de lei pode tornar mais difícil encontrar notícias relevantes”. O PL 2630 terá impacto na sua internet”.
“Eles abusaram do seu domínio do mercado e espalharam desinformação para evitar a regulamentação”, disse-me o deputado Orlando Silva, relator do projeto de lei.
O Google também enviou e-mails aos proprietários de pequenas empresas dizendo: “Olá, anunciante. A lei 2630 pode prejudicar pequenas e grandes empresas e diminuir a sua capacidade de promover produtos e serviços on-line. … Se a lei for aprovada na sua forma atual, milhares de pequenas e médias empresas no Brasil enfrentarão dificuldades para aumentar suas vendas com a ajuda da publicidade online”. O e-mail também tinha um link – “veja como o PL 2630 pode impactar o seu negócio”.
O Facebook veiculou anúncios de página inteira nos principais veículos de comunicação, dizendo: “O projeto de lei contra notícias falsas deve combater notícias falsas. Não deve lutar contra o restaurante no seu bairro.” Antes disso, Google, Facebook, Twitter e Mercado Livre, um site de comércio eletrônico, publicaram uma carta pública dizendo que o projeto “é uma ameaça potencial contra uma internet livre, democrática e aberta”.
“O lobby das plataformas de Internet tem sido extremamente desonesto. Eles estão produzindo desinformação sobre a legislação para convencer legisladores e usuários de que seria o fim da internet como a conhecemos”, disse Bia Barbosa, representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil e membro da Coalizão Direitos na Rede, que inclui várias organizações da sociedade civil que defendem a privacidade, a regulamentação e a transparência.
“Duvido que as plataformas de Internet utilizem estas sórdidas táticas de lobby nos países da União Europeia”, acrescentou ela. “No Brasil, eles pensam que podem simplesmente praticar desinformação para se livrarem da regulamentação.”
Google e Facebook alegam que querem ter mais debate sobre a legislação e estão discutindo aspectos da lei que consideram problemáticos. “Queremos trazer à luz aspectos da legislação que não estavam sendo discutidos e poderiam ter consequências indesejadas não só para as plataformas, mas para todos os usuários da internet”, disse Marcelo Lacerda, diretor de assuntos governamentais e políticas públicas do Google no Brasil.
O grupo Meta disse através de um porta-voz no Brasil: “Estamos dispostos a fazer parceria com o Congresso para trabalhar na legislação para combater a desinformação. No entanto, nossas análises técnicas indicaram que o PL 2630 precisa ser melhorado em alguns aspectos que podem ter consequências indesejadas”.
Governo alinhado com os interesses das big techs
O presidente brasileiro e seus aliados estão muitas vezes em desacordo com as big techs, especialmente quando as plataformas recorrem à moderação de conteúdo para combater a desinformação. O YouTube e o Facebook removeram ou rotularam vários vídeos de Bolsonaro contendo informações falsas sobre a Covid-19 ou alegações infundadas de fraude eleitoral. O WhatsApp não cedeu às pressões de Bolsonaro para lançar uma funcionalidade “comunidades”, que permitiria grupos com milhares de membros, antes das eleições brasileiras. (Estes enormes grupos encriptados teriam permitido à Bolsonaro turbinar a sua estratégia de comunicação no WhatsApp, app que o ajudou a vencer em 2018).
Mas em relação à regulação, os interesses de Bolsonaro e big techs estão perfeitamente alinhados. Os bolonaristas estão até mesmo aproveitando o investimento das plataformas para derrotar o projeto de lei.
Há duas semanas, Bolsonaro compartilhou uma carta pública do presidente do Google Brasil, Fábio Coelho, em um grupo de WhatsApp. A carta atacou a lei das “notícias falsas”. Em sua mensagem ao grupo – que inclui seus aliados próximos, amigos pessoais e membros do gabinete – Bolsonaro disse que o projeto de lei traria “censura e revogaria a liberdade de expressão” no Brasil. A mensagem foi publicada pela primeira vez na revista Crusoe.
O consultor Guilherme Ravache, colunista do UOL, e mentor do Meta Journalism Project, publicou um artigo com o título: “Projeto de notícias falsas pode dar à Globo mais de 230 milhões de reais por ano” que foi amplamente divulgada online. A Globo, o maior conglomerado de mídia do Brasil, é a principal defensora da cláusula de compensação de conteúdo jornalístico. É também a nêmesis de Bolsonaro.
“Um dos aspectos mais controversos da lei é forçar o Google e o Facebook a pagar pelo conteúdo jornalístico (no Brasil). Isso, por si só, não é um problema. Ambas as plataformas de internet já investem milhões de dólares em jornalismo e dizem que não se opõem ao pagamento”, afirma o artigo. Segundo Ravache, principalmente grandes conglomerados de mídia como a Globo se beneficiariam do projeto no Brasil – e ele disse que muitos pequenos pontos de venda ficaram de fora no código de pagamento de conteúdo da Austrália, por exemplo, que foi a inspiração para a legislação brasileira.
Perguntado onde conseguiu a cifra de R$ 230 milhões para o pagamento das notícias da Globo, Ravache apontou para um artigo da Columbia Journalism Review que dizia que as empresas de tecnologia concordaram em pagar a Rupert Murdoch’s News Corp. Austrália $70 milhões de AUD (cerca de U$50 ) como parte de um acordo maior que inclui publicidade e outros negócios. O autor informou que converteu o valor em reais, considerando o tamanho da Globo e o tamanho da população brasileira.
O senador Flávio Bolsonaro, um dos filhos do presidente Bolsonaro, pegou essa “estimativa” e a compartilhou no Facebook.
“A lei da Fake News vai trazer censura à internet e esconder informações governamentais. As estimativas apontam que a Globo vai ganhar R$ 230 milhões por ano por causa da conta”, escreveu ele. “Você sabe o que vai acontecer com você, companheiro cristão, se o projeto for aprovado e você discordar das opiniões da mídia? Você pode ir para a cadeia por suposto ‘discurso de ódio'”.
A Globo também tem feito lobby agressivo, defendendo a legislação em seus programas de TV, jornais e mídia online. O projeto de lei tem inclusive disposições que beneficiariam diretamente o conglomerado, como garantias específicas para que os pontos de venda do mesmo grupo de mídia negociem coletivamente com as plataformas e restrições à publicidade que afetariam diretamente as plataformas tecnológicas. Apesar da pressão, os legisladores não incluíram a possibilidade de um imposto sobre as big techs e um fundo de mídia, o que poderia beneficiar as empresas menores de mídia.
A Globo é um alvo frequente da ira de Bolsonaro. O presidente brasileiro ataca constantemente o conglomerado de mídia, que ele chama de “notícias falsas”, e ameaça não renovar sua licença se for reeleito. Além disso, a licença do governo para a Globo expira em abril de 2023. No Brasil, os canais de TV em rede pertencem ao governo, que os licencia às empresas de mídia por meio de licitações. As licenças são temporárias e precisam ser renovadas.
Os meios de comunicação independentes temerosos de perder o seu financiamento também se opuseram à lei. A Ajor, a associação de jornalismo digital, publicou uma carta apontando a falta de transparência nos negócios fechados entre os veículos de comunicação e as plataformas na Austrália. Ela também menciona a recusa das empresas de tecnologia em negociar com algumas pequenas empresas de mídia.
O código australiano de negociação da mídia, promulgado em fevereiro do ano passado, é a inspiração para a legislação brasileira que foi assassinada por Bolsonaro e as big techs.
Pagamento por conteúdo jornalístico
A lei australiana permite que os meios de comunicação social negociem com o Google e o Facebook o pagamento pelo uso do conteúdo das notícias. Na Austrália, as organizações noticiosas conseguiram negociar acordos no valor de mais de 200 milhões de dólares (aproximadamente 150 milhões de dólares americanos) desde que o código entrou em vigor. O governo estima que o Google fechou 20 negócios e a Meta fechou 14.
Ainda na semana passada, a Reuters informou que o Google concordou com a compensação de conteúdo para 300 editoras europeias. O Canadá e o Reino Unido estão discutindo códigos de pagamento de notícias semelhantes aos da Austrália. No Brasil, “todos estão fazendo lobby agressivamente; não há anjos neste jogo”, disse Ravache, que defende um fundo de mídia independente para financiar o jornalismo.
Marcelo Rech, presidente da Associação Brasileira de Jornais, descarta as críticas de que o projeto de lei beneficiaria principalmente a Globo. A associação faz parte de uma coalizão que inclui grandes empresas de mídia, inclusive a Globo.
O Google e o Facebook dizem que são os principais apoiantes do jornalismo.
“Entendemos firmemente a importância do jornalismo de qualidade na luta contra a desinformação; por isso precisamos de mais debate sobre a lei”, diz Lacerda, diretor de assuntos governamentais e políticas públicas do Google no Brasil. “No Brasil, o Google tem inúmeras iniciativas para apoiar o ecossistema jornalístico. Os meios de comunicação têm dois bilhões de cliques mensais através da busca de notícias do Google gratuitamente. De 2019 a 2021, o Google pagou mais de R$ 1 bilhão para as 10 maiores organizações de mídia do Brasil através de nossas plataformas de publicidade no Google. Tudo isso tem que ser levado em conta”.
Um porta-voz da Meta disse: “Os meios de comunicação podem aumentar a sua audiência, procurar mais assinantes e expandir as suas receitas publicitárias quando têm uma presença nas redes sociais. Os meios de comunicação social decidem se e quando publicam no Facebook e Instagram”.
Imunidade parlamentar
Pesquisadores e jornalistas brasileiros criticaram o que eles consideram falhas graves no projeto. Para convencer os políticos a apoiá-lo, os legisladores incluíram na lei uma cláusula de imunidade que impossibilitaria as plataformas de internet de moderar o conteúdo postado por deputados e senadores, os dois tipos de legisladores que compõem o Congresso. A cláusula é vista como uma “vacina Trump”, pois tornaria mais difícil para as plataformas de internet proibir políticos durante a campanha eleitoral deste ano, mesmo que eles violem os padrões de integridade eleitoral da mídia social.
Os critérios que estabelecem quem seria considerado um meio de comunicação social e, portanto, quem teria direito a receber pagamento das plataformas de Internet por conteúdos noticiosos são, de fato, vagos – e poderiam permitir que os sites de junk news e bloggers extremistas e YouTubers obtenham financiamento.
“Não há dados em nenhum lugar do mundo que provem que a existência da lei leva à redução da desinformação. Além disso, o PL 2630 erra ao dedicar apenas um parágrafo à educação, protegendo os políticos no cargo e criando ajuda financeira que parece ser exclusiva para os principais meios de comunicação”, disse Cristina Tardáguila, fundadora da Lupa, o principal serviço de checagem de fatos no Brasil.
Mas alguns aspectos da lei são vistos pelos pesquisadores da desinformação como atrasados. A lei obrigaria as plataformas de redes sociais a revelar detalhes sobre as suas equipes de moderação de conteúdo – quantas pessoas contratam, qual é a sua língua mãe e nacionalidade e quanto investem em inteligência artificial em português. A partir de agora, tudo isso é um segredo. Os críticos têm apontado que, em países que não falam inglês, há muitas vezes um número insuficiente de moderadores que falam a língua local.
A legislação tem requisitos de transparência para medidas contra desinformação. As plataformas de Internet teriam de divulgar não só o número de posts com desinformação removidos ou rotulados, mas também o alcance das publicações enganosas antes de serem tomadas as medidas.
Estabeleceria também que os internautas teriam direito a ver um histórico de anúncios e conteúdos promovidos, com informações sobre os critérios de segmentação utilizados. As plataformas se opõem a esses requisitos de transparência, dizendo que tornariam as plataformas vulneráveis aos maus atores e violariam a privacidade e os segredos comerciais.
Num país que se tornou um símbolo do abuso e desinformação desenfreada do WhatsApp, a lei brasileira proíbe o envio automático de mensagens em massa e impede o envio de mensagens a várias pessoas, o que alimenta a desinformação viral. Esta é uma das principais razões pelas quais Bolsonaro se opõe a ela. Ele disse que as tentativas de regular o Telegram são “covardes”.
“Sabemos que a lei tem cláusulas problemáticas, mas não devemos matar a lei. Devemos negociar para melhorá-la”, disse Bia Barbosa, representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil.
O Brasil está caminhando para novas eleições presidenciais em outubro sem nenhuma legislação que exija das plataformas de internet medidas de transparência e políticas claras de moderação. As empresas de tecnologia estão fazendo pouco para evitar que uma insurreição brasileira aconteça em uma democracia muito menos estável do que a norte-americana.
“Arriscamo-nos a ter um processo eleitoral semelhante às eleições presidenciais de 2018. Dependeremos apenas da autorregulação das plataformas, o que é obviamente insuficiente”. Vimos a magnitude da desinformação e da violência política em 2018″, disse Barbosa.
Patrícia Campos Mello é repórter da Folha de S. Paulo e pesquisadora associada da Columbia University com um projeto sobre desinformação eleitoral