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Pontos de vista

acervo pessoal

jan 3, 2022 | pontos de vista

Não olhe para Trump e Bolsonaro

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O filme “Não olhe pra cima” por não falar diretamente sobre fake news e sobre a extrema direita é mais contundente ao mostrar, justamente, que a desinformação está ligada ao atual funcionamento do capitalismo digital, indo além de tais problemas

 

Toda sátira tem um efeito catártico, ela nos ajuda a expulsar aquilo que, para nós, não deveria fazer parte do corpo social. Nesse sentido, o afeto principal da sátira não é o riso, mas a ira. O filme “Não olhe pra cima” é uma sátira e, como tal, não possui pretensões estéticas e éticas muito elevadas, tampouco melancólicas. Vi muita gente pedindo ao filme “toques” de Godard e de Woody Allen para que ele pudesse ser aclamado, mas o filme na verdade foca no que desejaríamos que fosse defenestrado.

A partir deste aspecto é que não surpreende a comparação da personagem de Meryl Streep, a presidenta dos EUA, Janie Orlean com Trump e Bolsonaro. A comparação obviamente é direcionada ao que desejaríamos ver fora do corpo social. Contudo, nesse ponto, é que, talvez, o filme traga sua maior contribuição crítica: não se restringem a trumps, bolsonaros e a fake news nossos problemas com o negacionismo e com a desinformação. Certamente eles não são atores desprezíveis, mas o filme aponta em outra direção.

Na cena em que a Ph.D Kate Dibiasky e o professor Randall Mindy apresentam à presidenta o quadro de que um comenta gigantesco irá colidir com a Terra em seis meses, devastando toda a vida no planeta, em um detalhe de câmera vemos, em um porta-retratos, Orlean abraçada com Bill Clinton. Gostaria de sugerir que – e aqui é simplesmente uma interpretação –se não se trata de indicar que é Hillary Clinton que estamos vendo satirizada na personagem, ao menos o filme indica que nos bastidores de um gabinete democrata as coisas não estariam totalmente diferentes do negacionismo de Trump. Entretanto, claramente, o que a foto com Bill Clinton indica é que não estamos falando de um presidente republicano, como Donald Trump.

Aliás, a atenção nervosa e ansiosa que a câmera dá aos detalhes de cada um dos personagens ao longo do filme mostra uma de suas propostas estéticas mais interessantes: trabalhar em primeiro plano os estereótipos e, na ansiedade dos detalhes, os pequenos objetos que fazem os estereótipos ambulantes possuírem subjetividade e se humanizarem. Ao imitar vários tipos de gêneros de filmagem hollywoodiana (atentem para as variações no ritmo de filmagem e nos efeitos de câmera), o filme também mostra que, no sistema de (des)informação atual, é performatizando no meio de estereótipos e clichês que as pessoas conseguem se humanizar.

Outro aspecto que chama a atenção é o de que numa sátira normalmente o que aparece explicitado são os efeitos, os sintomas visíveis da doença, do mal a ser expurgado. O efeito catártico não está só na constatação crescente da urgência de eliminar os sintomas, mas em sentir que há uma causa de fundo, espraiando-se e se expressando por toda parte, e que tal causa é, ao final, a origem de todo o problema. Isto para dizer que o negacionismo não é o principal tema do filme. Se ele aparece em cada minuto do filme é apenas como a face mais visível do problema, algo que se torna quase banal: um asteroide está a caminho da Terra e quando ele já está visível na atmosfera só resta dizer “não olhe pra cima”. É uma metáfora do negacionismo, certamente. Algo como a charge da cartunista Laerte, sobre a grande ficha que um dia irá cair. Entretanto, diria que o assunto do filme não é aquilo que cabe em seu trailer, mas o que só se aproxima no momento da colisão: um sistema econômico e comunicacional de desinformação generalizado.

Nas críticas que li, muito tem se falado da extrema direita fascista, mas cabe dizer que ela não aparece no filme. Isto é um dos seus grandes logros: não precisar falar nem de extrema direita, nem de seus sistemas massivos de disparos de fake news, para falar de desinformação. O aspecto central que nos permite identificar a extrema direita trumpista e bolsonarista é o discurso de ódio, o populismo fundamentalista que se sustenta na ideia de que para que seja possível existir um “Nós” (homens héteros, brancos, cisgêneros, brasileiros) é preciso eliminar um “eles” (todos os corpos reais que incomodam). Se o fascismo está presente no filme, é do mesmo modo em que ele estava nas análises de Theodor Adorno sobre a personalidade autoritária na sociedade estadunidense, como fundo latente. É sempre bom lembrar que o que abriu caminho para a extrema direita bolsonarista foi o golpe de 2016 baseado em um sistema de desinformação jurídico, parlamentar e midiática normalizado. O fascismo antecede seus monstros.

Voltando ao filme, proponho que é na miríade dos meios de desinformação captados parcialmente em cada cena, fala e gesto que o filme encontra seu maior êxito: mostrar que há uma lógica geral da desinformação que antecede Trump e Bolsonaro e que, provavelmente, permanecerá vigente após expurgarmos-lhes do corpo social. Essa lógica aparece em vários lugares do filme, enumeremos alguns.

Os cientistas são tratados e respeitados de acordo com seu “treinamento midiático” e com preconceitos sociais bem arraigados: a cientista Kate é tida por louca ou bipolar por conta de seu senso de realidade, já o cientista Mindy,  medicalizado e disponível para ter seguidores e “haters”, é o dr. Sexy, o cientista desejado. As políticas públicas e os cargos de alto escalão, como a da diretora da NASA, uma anestesiologista, são realizados e utilizados de acordo com as vontades políticas dos governantes – o cometa se torna um subterfúgio útil para a presidenta enfrentar sua rejeição pública de momento. Ela aliás, publiciza seus hábitos (como fumar) de acordo com as pesquisas eleitorais. Um general de três estrelas do pentágono ganha uns trocos cobrando os cientistas por quitutes gratuitos da Casa Branca. Uma cultura da positividade generalizada, no qual qualquer aparecimento de negatividade – como o de Dibiasky – deve ser blindado, como o fazem com extrema destreza os âncoras do jornal Daily Rip – sua máxima é: “deixemos as notícias mais leves”. Cultura esta que é também sustentada por memes e vídeos tiktokeiros de galinhas carregando cachorrinhos e pelos celulares da empresa BASH (uma mistura de Google e Apple no filme, cujo CEO tem pretensões espaciais a la Jeff Bezos e Elon Musk) que sabem mais sobre o que você precisa do que você mesmo – e que compram pra você os hits do momento que você ainda nem ouviu, mas do qual suas redes sociais estão falando.

As dinâmicas de relevância das redes sociais que pautam a vida em geral: a influencer e campaigner Riley Bina perdoando a traição e reatando com o namorado é o pico de interesse para as redes sociais e para os meios de comunicação; a notícia do cometa possui menor relevância, engajando apenas pelos memes que a explosão de Kate Dibiasky proporciona – aos quais Mindy questiona “isto é permitido na internet?”.  O caos social gerado pela verdade sobre o que está sendo feito diante da destruição iminente do planeta e que só parece ter como resposta possível: façamos um abaixo-assinado ou uma manifestação com cartazes. A cultura sensacionalista que faz com que os agentes do FBI montem verdadeiros cenários televisivos para deter os cientistas para interrogatório – prática para as quais a Lava-Jato desenvolveu novos requintes sensacionalistas. O ápice do filme surge exatamente após o aviso do Dr. Oglethorpe de que “A ciência diz a verdade”. A missão de destruir o cometa é abortada porque ele pode “trazer para a Terra” o montante de 140 trilhões de dólares em minerais fundamentais para a confecção de celulares; uma nova missão será realizada com a pirotecnia de drones intergalácticos, nanotecnologia explosiva, vencedores de prêmio Nobel e a conhecida promessa de que, desta vez, o cume insano da exploração capitalista irá servir para erradicar, definitivamente, a pobreza e a desigualdade.

Esse cenário todo nos é tão familiar que ele não nos parece ser o assunto do filme; o “cometa Bolsonaro” está tão próximo que nos esquecemos de olhar para todo o contexto que tornou sua colisão inevitável. O cometa vai passar, mas esse cenário de desinformação parece estar a anos luz de distância de nossa capacidade de intervenção. Quem sobrevive no final, como o filme bem mostra, não é quem vai em busca de outro planeta que seja novamente habitável pela espécie humana, mas quem fica e continua a postar suas mensagens nos escombros da desinformação.

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Lucas Vilalta

Coordenador da área de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog. É mestre e doutorando em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autor dos livros “Bolsonaro, la bestia pop”; “Simondon: uma introdução em devir”, entre outros, além de ensaios e artigos sobre filosofia da informação e novas tecnologias digitais, filosofia macumbeira, literatura e crítica literária, história e filosofia da música, e direitos humanos.

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