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Pontos de vista

acervo pessoal

set 26, 2022 | pontos de vista

Não há saída para o abismo brasileiro sem passar pelo diálogo

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Engana-se quem pensa que nossa relação com a informação é racional. Se fosse o caso, a solução para combater as fake news seria simples: bastaria ensinar a todos como identificar as notícias falsas (ou desmenti-las) e o problema da desinformação estaria resolvido. Só que os fatos não nos fazem mudar de ideia. Estamos longe disso. Nossa relação com a informação é emocional e o ser humano, quando está tomado por emoções, não faz boas avaliações. Nosso senso crítico fica falho, e, nessa, somos mais facilmente enganados.

Arrisco dizer que a habilidade mais importante para não cair nas armadilhas dos agentes da desinformação hoje em dia seja a de exercitar o ceticismo emocional. Isto é, saber observar a qualidade de sentimentos que um conteúdo desperta na gente e desconfiar daqueles que provocam reações fortes e levam a um compartilhamento irrefletido dele.

Para quem estuda desinformação, não chegou a causar surpresa a descoberta de que o grau de polarização do indivíduo é o principal fator psicológico por trás do compartilhamento de notícias falsas. A pesquisa Partisan Polarization Is the Primary Psychological Motivation behind Political Fake News Sharing on Twitter (Polarização partidária é a principal motivação psicológica por trás das fake news políticas compartilhadas no Twitter, em tradução livre), publicada pela American Political Science Review, em agosto do ano passado, raspou dados de mais de 2,4 milhões de tuítes de 2.300 americanos e revelou que o compartilhamento de notícias falsas tem menos a ver com grau de escolaridade e mais com convicções político-partidárias e a busca constante dos usuários para difamar e atacar seus oponentes. Os indivíduos que afirmaram odiar seus oponentes políticos foram os mais propensos a compartilhar notícias políticas falsas e conteúdo seletivo útil para atacar rivais políticos.

O problema é que os agentes da desinformação sabem disso e nos manipulam por meio de nossos sentimentos e tendência inata para polarizar. E essa estratégia de dividir a sociedade, sem dúvida alguma, está funcionando. Em 2022, as mortes por intolerância política no Brasil já superaram a das últimas quatro eleições. Apenas entre janeiro e julho, disputas políticas deixaram ao menos 26 mortos.

Impossível passar incólume pela polarização, e, consequentemente, pela desinformação nos dias de hoje. Não foram poucas as pessoas que, por divergências políticas, acabaram se afastando de familiares ou amigos queridos. Relações de muito afeto e vínculos fortes com passado foram desfeitos, muitas vezes para privilegiar novos grupos virtuais em redes sociais. A desinformação e os discursos de ódio vão se infiltrando nessas relações, tal qual erva daninha.

Infelizmente temos a tendência de evitar conversas difíceis. Preferimos fugir do diálogo — ou partir para briga — e nos afastar daqueles que votam em um candidato que consideramos asqueroso. Esquecemos que diferenças políticas ou de qualquer outra ordem são saudáveis. Ou que adversário político não precisa ser um inimigo. Quem mais sai ganhando com esse afastamento é o político que dissemina o ódio. É isso que ele ou ela quer. A divisão, a dissídia, as rupturas.

Cabe lembrar que nesse outro grupo político adversário há pessoas que amamos, com quem nutrimos relações de carinho e que merecem ser preservadas por tudo que representam em nossas vidas. Nesses casos, superar o desconforto de enfrentar o conflito e apostar no diálogo sempre vai valer a pena. Conflito não é sinônimo de briga. Ele é um mecanismo de retorno positivo, pois sinaliza que algo não está bom para um (ou ambos) os lados e permite uma reacomodação da situação que funcione para todos.

É importante dizer que, quando falo em polarização, não estou sugerindo que exista uma simetria entre os pólos. E quando falo em diálogo, não estou tratando de ser tolerante com crimes. Racismo é crime. Homofobia é crime. Atentar contra a democracia é crime. Existe, entretanto, uma heterogeneidade muito grande nesses dois pólos. E é preciso criar pontes entre eles.

Para isso, é preciso se preparar para ter conversas produtivas. Primeiro, entender que o diálogo não é monólogo e nem tentativa de convencimento. O verdadeiro diálogo te leva rumo ao desconhecido, não do ponto A para o B. Precisamos estar abertos para essa troca e construção conjunta. Ironias e generalizações são gatilhos que frequentemente tiram as conversas dos trilhos. Praticar a escuta ativa, buscando entender os medos e esperanças que levam uma pessoa a pensar do jeito que pensa é de grande valia.

Afinal, são muitas as experiências pessoais, crenças e valores que levam a um voto. Não só a desinformação. A desinformação é um sintoma dessa divisão profunda que corrói a sociedade. E investir no diálogo pode tratar o sintoma e a causa.

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Clara Becker

É jornalista e cofundadora do Redes Cordiais. Formada em Comunicação Social pela PUC-RJ e em Letras pela UFRJ. Passou pelas revistas Piauí e Veja Brasília e, nos últimos anos, especializou-se em combate à desinformação atuando na Lupa, a primeira agência de fact checking brasileira. É cofundadora do Redes Cordiais e co-autora dos livros The Football Crónicas, editado pela Ragpicker Press e Los Malos da Universidad Diego Portales. Atualmente vive na Tanzânia.

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