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jan 14, 2022 | destaques, notícias, panorama2022

Não é sobre as regras do jogo, mas sobre o comportamento dos árbitros: Judiciário e plataformas digitais

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“A chave para compreender a tríade eleições/desinformação/2022 não está na discussão das regras do jogo, mas do comportamento do árbitro. Estou falando do Judiciário e das plataformas. Vale a pena pensar nesses atores e observá-los de perto porque eles também têm que ter muito cuidado para não desestabilizar ainda mais. São esforços siameses para a gente chegar no começo de 2023 ainda montados em cima do cavalo, ainda com algum tipo de esperança de continuidade do regime democrático”, aposta Francisco Brito Cruz, doutor e mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e um dos diretores do InternetLab, Centro de Pesquisa em Direito e Tecnologia.

Nós conversamos com Brito Cruz e com Mariana Valente, também diretora do InternetLab, mestre e doutora pela USP, para a série #panorama2022. Entre diagnósticos aprofundados sobre o problema da desinformação e alternativas nunca antes experimentadas, os pesquisadores dão uma aula para quem deseja mergulhar no assunto.

Valente pondera, por exemplo, que as novas tecnologias são globais, mas países têm diferentes formas de organizar sua imprensa e instituições democráticas, o que impacta diretamente no ecossistema da desinformação. “Se a gente não consegue entender essas duas forças agindo e se relacionando de forma diferente nos diferentes países, a gente teria um ecossistema de desinformação igual, considerando que a gente conseguiria atribuir somente à tecnologia os problemas de desinformação”.

João Brant: Numa publicação do InternetLab de 2020, o historiador Carlos Fico trazia a leitura de que a desinformação não deveria ser tomada de forma alarmista, e que havia o desafio da sociedade se acostumar com uma nova realidade e aprender a lidar com ela. Em que medida vocês concordam com isso? Qual o tamanho do problema da desinformação hoje olhando para o cenário da esfera de conversação digital?

Mariana Valente: Eu acho que localizar a desinformação num contexto histórico mais amplo e deixar evidente que não se trata de um problema novo não é diminuir a importância dela na esfera pública hoje. Não é simples medir qual é o impacto, tem mais de desinformação hoje do que tinha no passado, isso quantitativamente é muito difícil de se fazer. A forma de viajar da desinformação mudou e isso tem impactos específicos. A desinformação antes era dificilmente desmentida, porque você não tinha muitos canais de participação nas informações, a forma como a informação circulava era muito mais concentrada.

Há simplificação do problema da desinformação. Algumas narrativas vão colocar, por exemplo, a eleição de um determinado candidato, de um Trump, de um Bolsonaro, nas costas do fenômeno da desinformação, sem considerar que a desinformação é um dos fenômenos, de forma a empobrecer as análises.

Então eu acho que tem um valor em ser crítico de uma determinada centralidade que se dá à desinformação hoje. E há um determinado pânico em torno disso, que dificulta estratégias de agenda positiva. A gente discute muito menos diversidade de fontes de informação, confiabilidade de fontes de informação, acesso ao conhecimento, do que o problema em si da desinformação.

Francisco Brito Cruz: Complementando o que disse a Mariana, eu acho que tem uma coisa que me incomoda que é a afirmação de que a coisa sempre existiu. Porque é claro que teve algo que sempre existiu, a desconfiança em relação à fonte jornalística, o erro, o boato, a propaganda, isso sempre existiu, mas isso quer dizer muito pouco sobre o fenômeno. Esse fenômeno que a gente está discutindo é totalmente derivado da transformação estrutural da esfera pública. Significa que conversar sobre moderação de conteúdo é conversar sobre desinformação porque conversar sobre moderação de conteúdo significa debater a legitimidade dos padrões curatoriais ou editoriais que esses mecanismos [das plataformas digitais] têm para lidar com a informação e para gerar disseminação, para condicionar a disseminação e produção de informação, que é a base das pessoas tomarem escolhas sobre suas próprias vidas e escolhas da política.

No limite a gente está discutindo como agregar legitimidade para esse arranjo industrial de tomadas de decisão sobre conteúdos, que está na base da crise informacional existente.  A falta de legitimidade, a desordem que esse arranjo está criando, o problema de diferença de padrões de equidade nessas decisões, o ultraje que determinados grupos ficam com determinadas decisões e a crítica, os backlashs, as ressacas dessas críticas feitas a essa indústria da moderação de conteúdo, tudo isso faz parte do problema.

João Brant: Você falou de uma transformação estrutural. Como você descreveria em linhas simples essa transformação?

Francisco Brito Cruz: Mudança na dieta de mídia, da difusão para mídia digital, o que significa a emergência de um paradigma de muitos para muitos e não de um para muitos; uma brusca queda na barreira de entrada de as pessoas produzirem e,eventualmente, viralizarem conteúdos, sem depender de decisões editoriais pré-digitais. O tipo de decisão a que elas estão submetidas para viralizar o conteúdo é de outro tipo.  Essa transição não está compatibilizada com o que se construiu em termos de um jornalismo profissional, produção de notícia, funcionamento de empresa jornalística, que era mais ou menos o jeito que a esfera pública funcionava até então. Então essas coisas continuaram existindo, mas elas estão inseridas numa competição de atenção gigantesca nesses espaços e condicionadas a essa nova dieta, que não tem sinal de arrefecimento, só de aprofundamento e aceleração.

João Brant: No debate sobre desinformação há visões que partem de uma leitura de que essa transformação, além de correlacionada, tem uma relação de causalidade com o que está acontecendo, em termos da exploração forte do ambiente para a propaganda política. Outras análises reforçam um outro sentido, em que um determinado momento político e social provoca ou se utiliza de quaisquer meios que sejam, dentro de um projeto político, para promover a desinformação. Vocês se alinham a alguma dessas perspectivas?

Mariana Valente: Eu explicaria por meio da ideia de mutual shaping, afetação mútua. Nem ignorar o impacto dessas tecnologias no sistema informacional, na esfera pública, nem atribuir exclusivamente a elas o que está ocorrendo, em termos de uma propagação muito grande de desinformação. A gente não tem uma forma de explicar por que a desinformação é mais intensa em alguns países e em outros não. As novas tecnologias são globais, mas os diferentes países têm diferentes formas de organizar sua imprensa. Como se organizam os grupos políticos tem um impacto nisso. A estabilidade de uma democracia tem impacto nisso, a força das instituições em conseguir coibir alguns tipos de comportamento tem impacto nisso. Eu acho que se a gente não consegue entender essas duas forças agindo e se relacionando de forma diferente nos diferentes países, a gente teria um ecossistema de desinformação igual nos diferentes países, considerando que a gente conseguiria atribuir à tecnologia os problemas de desinformação que a gente está tendo. Agora, também achar que [a tecnologia] não tem um papel  preponderante é também ignorar a especificidade desse momento, no sentido que o Chico estava falando, de como mudou a forma como as pessoas se informam, se comunicam, produzem informação consumível.

João Brant: Essa dimensão tecnológica vem da prevalência da economia da atenção, que reorganiza todas as bases normativas da esfera pública. Você deixa de ter critérios da modernidade e passa a ter como critério a tração por afinidade e um uso intenso de dados, uma realimentação permanente dos dados. ´Eu preciso saber mais, em mais detalhes, vertical e horizontalmente, sobre os meus usuários´. Olhando para essa parte do fenômeno, eu perguntaria: tem ponto de retorno? Olhando de forma realista, por que não dá para voltar o filme, é possível mitigar significativamente esses efeitos? Dá para trazer de volta alguns parâmetros da modernidade, da confiabilidade da informação, da diversidade e do pluralismo, aqueles que guiavam o jornalismo profissional como organizadores do debate público? Ou a gente precisa considerar que há uma entropia e precisamos partir dela?

Francisco Brito Cruz: Para mim, o livro do professor Eugênio Bucci mata uma charada sobre a economia da atenção que acho que vale a pena ser mencionada. A gente fala muito de mercado publicitário, sobre essa coisa de coleta de dados. O Eugênio entende esses espaços enquanto espaços de manufatura do imaginário. O Facebook, o Youtube, o Instagram vendem a capacidade de trabalhar pelo olhar a criação de um imaginário de marcas na publicidade, com muito mais ajuste fino. E isso não é só coletar a atenção das pessoas, é uma coisa a mais. Essas empresas são muito mais complexas do que coletar dados e deixar as pessoas presas lá, consumindo e gastando tempo ali.

Essas pessoas trabalham para construir valor dentro dessas plataformas e isso é um ativo atrativo, no sentido capitalista da coisa. Acho que aí não tem muita volta. Agora, isso quer dizer que essas estruturas de tomada de decisão sobre a produção e a disseminação de informação não estão mais em disputa? Acho que não, elas estão em disputa. Meu ponto é que essa característica dessas ferramentas, de serem ferramentas ligadas à indústria da publicidade, isso não está em disputa. E isso é verdade no Brasil, isso é verdade nos Estados Unidos, isso é verdade na China, isso é verdade na Europa. Todas essas plataformas, de redes sociais, especialmente, ou de aplicação de internet de graça, tal, elas estão ligadas num circuito comercial, mesmo se for num país que não tem os mesmos parâmetros do ponto de vista liberal que temos aqui.

Dentro dessa disputa, o que dá para se fazer? Muita coisa. A gente experimentou muito pouco, não sabe o quão longe dá para ir, é um oceano em que a gente só pôs o pé. E pode ser que lá embaixo esteja um bicho para pegar a gente, pode ser que seja muito pior do que a gente imagina, considerando as propostas regulatórias. Por isso muita gente tem pedido muita calma.

João Brant: O que dá para fazer pensando em saídas, em melhora?

Francisco Brito Cruz: É experimentalismo institucional regulatório. Mas lembrando: experimentalismo institucional dá errado, experiências dão errado, e aí na hora que der errado a gente tem que estar preparado para também admitir que deu errado. Eu acho que todo mundo está tateando, ninguém aprovou uma lei definitiva sobre esse assunto, por exemplo.

João Brant: O que te vem à cabeça quando você fala dessas possibilidades que a gente não testou ainda?

Francisco Brito Cruz: Vou tentar fazer uma resposta de organização, mas que talvez seja um jeito de fugir da sua pergunta. Primeira coisa: eu não discutiria concorrência nesse mesmo pote. O que não significa que concorrência e antitruste não sejam importantíssimos, mas é porque eu acho que às vezes as pessoas têm a pretensão de que tirando o poder de determinadas plataformas elas vão resolver esse problema da desinformação. E eu não acho que esses dois problemas, o superpoder das plataformas e a desinformação, sejam o mesmo problema. São problemas diferentes, então acho que vale a pena a gente separar e discutir separado. Pode ser ao mesmo tempo, mas não junto.

A segunda coisa é: acho que dentro do debate da desinformação cabe a gente compartimentalizar algumas áreas de experimentação. Então você tem o problema do jornalismo, da remuneração do jornalismo e da sustentabilidade do jornalismo, isso é uma área em si. Aí você tem o problema da moderação de conteúdo, que envolve questões do varejo e do atacado. O varejo é o devido processo, garantias procedimentais do usuário, informação para o usuário especificamente em relação àquela decisão etc. O atacado é transparência em relação a tudo. Esse grupo de coisas é para garantir a legitimidade das decisões de moderação de conteúdo e curadoria das plataformas, porque sem essa legitimidade a crise informacional aumenta.

Em seguida tem a discussão sobre o Estado.  Sabemos que as lideranças políticas são muito importantes para esse processo de propaganda e desinformação. Então o que vai se fazer em relação à conduta dessas pessoas, a tutela dessas pessoas, não é papel só das empresas de internet, é papel do Estado. É o povo que paga o salário dessas pessoas decidindo o comportamento adequado delas na internet, no que diz respeito a determinadas condutas que podem piorar ou melhorar a disseminação de desinformação.

Eu colocaria como quarto ponto a discussão sobre responsabilização e investigação. Isso envolve, por exemplo, a pressão que existe para coletar mais dados das pessoas, controlar o comportamento delas na internet, combater situações de anonimato. Não dá para fugir desse debate.

Por fim, para fazer cinco, acho que tem a discussão sobre desenho e arquitetura das plataformas. Esse é, na minha opinião, o oceano fundo, que a gente não tem noção onde está o fundo. Isso significa engessar padrões de arquitetura, que a gente presume que sejam bons para o futuro sem ter muita garantia. Dizer que uma plataforma pode ou não funcionar assim. É papel da regulação fazer isso?

Tem ainda uma caixinha com a história de criar cláusulas genéricas para obrigar plataformas a remover conteúdo nocivo, entre muitas aspas. Talvez esteja dentro da caixinha da responsabilidade, mas talvez valha desmembrar. É uma discussão fundamental, mas eu boto pouca fé de que com o Judiciário no Brasil que a gente tem hoje, de que isso seja um caminho muito profícuo. Tem um problema aí de cultura de liberdade de expressão ou de direito de liberdade de expressão, que não está resolvido. É quase como se isso fosse a ‘comorbidade’ desse debate. A gente tem que resolver um problema de desinformação, que está totalmente ligado à liberdade de expressão, tendo um país que não conseguiu desenvolver propriamente essa cultura e esse direito.

Eu organizaria assim e tentaria ter uma agenda para cada caixinha, um pensamento específico para cada uma. E na hora de olhar tudo junto, ver se faz sentido. Servir-se do cardápio, escolher os acompanhamentos e ver se o prato dá para comer, para dizer se está muito ruim e não combina nada com nada.

Mariana Valente: Eu tenho algumas coisas para acrescentar. A primeira é que eu acho que apesar de o debate de concorrência ter que ser feito separadamente de outras estratégias regulatórias, eu não acho que esses debates estão completamente separados. Se a gente está falando de mutual shaping, de olhar para as coisas com um olhar um pouco mais complexo, é inevitável pensar no quanto o WhatsApp é pervasivo no Brasil, né? Em toda a estrutura de zero rating e de como as pessoas utilizam essas ferramentas.

Ao mesmo tempo, a gente tem que tomar cuidado de não afirmar que é por causa disso que teve determinado resultado, de um jeito simples. O debate de concorrência não é só um debate de fusões e aquisições, é esse debate um pouco mais sofisticado que vem sendo feito cada vez mais pelo mundo, de entender como que se dão os novos monopólios e como que você os enfrenta. Monopólios envolvendo principalmente dados e infraestrutura.

Francisco Brito Cruz: Concordo com essa leitura da Mari, acho que ela corrige um pouco meu ponto acima sobre concorrência.

Mariana Valente: Na linha do que disse o Chico, não existe bala de prata. Estamos vendo múltiplas soluções regulatórias que estão surgindo em muitos países e que acho que é por aí mesmo. A gente começou discutindo o Projeto de Lei 2630 como PL das fake news, como se fosse resolver, achar uma solução para as fake news. Mas a gente vê que o problema da desinformação está ligado a uma série de outros problemas e que provavelmente você não tem uma solução só para a desinformação, porque você está lidando com um ecossistema.

Eu adicionaria o papel de agentes públicos. Tem ficado muito evidente que quando tem um episódio, por exemplo, do presidente ou alguns outros atores inflamando um determinado discurso, aquilo ganha uma intensidade muito grande. Olhar para isso é essencial por causa de todas essas questões de liberdade de expressão e de alguns desses atores terem imunidade.

Mas eu queria acrescentar o quanto a gente não tem falado de agendas positivas no sentido de incrementos na diversidade das fontes de informação, fortalecimento de algumas fontes, e isso eu falo muito de um lugar com alguma dor, porque eu venho de um campo de discussão de acesso ao conhecimento, acesso à educação, e eu sinto que esses debates não estão sendo conectados, a gente não tem conseguido falar da importância de políticas, de agendas, do que é povoar uma internet de informações confiáveis, de informações diversas… o que são políticas para isso, qual é o papel do Estado nessa políticas? E eu acho que isso tem que estar no cardápio, é muito ruim que não esteja.

João Brant: Eu queria falar de 2022, olhar para um ano pós-pandemia, ou ainda com efeitos da pandemia, e um ano de eleição no Brasil. O que vocês esperam para 2022? A gente vai chegar em dezembro de 2022, se vocês pudessem fazer um pouquinho de futurologia, o que vocês acham que a gente vai estar discutindo, assim, como balanço?

Francisco Brito Cruz: 2022 promete ser um ano muito desafiador. É um ano em que a gente vai ter a primeira eleição presidencial depois da eleição mais atípica que a gente já teve na história do Brasil – em que a internet teve um papel central na eleição do candidato a presidente, que não teve recurso de TV, não teve aliança em estado ou todos os tipos de fatores que agregam para uma musculatura padrão na ciência política. A internet estava na espinha dorsal da campanha e será que tem volta isso? Eu acho que não. E nessa situação de tensão institucional, de crise desse campo que ganhou a eleição com o pacto constitucional de 1988 e faz propaganda contra esse pacto,  o tempo inteiro atenta contra as bases desse pacto, porque gostaria de fazer outro pacto. E acha que isso é uma guerra mesmo e nessa guerra vale muita coisa.

Então em dezembro de 2022 eu acho que vai estar só muito mais quente do que agora, mas nada disso vai estar resolvido.  A única coisa que pode estar resolvida é quem vai ganhar na urna, mas isso é muito pouco no sentido de estabilidade institucional e no sentido de acalmar ou sedimentar essas discussões sobre o papel da tecnologia. Porque quem ganhar terá tido uma campanha muito digital.

Aí a pergunta é: o que fazer? Todas as mudanças legislativas regulatórias são incrementais nesse momento.  Já passou o prazo para a legislação eleitoral, não vai aprovar o PL das fake news a tempo de valer para a eleição porque mesmo que se aprovasse ainda teria meses de judicialização e esses meses ultrapassariam o processo eleitoral. A resolução do TSE vai ser pouca coisa porque não tem muito espaço institucional.

E aí qual é a chave? Não é a discussão das regras do jogo, é uma discussão de comportamento do árbitro, comportamento de quem aplica. E quando eu digo comportamento de quem aplica eu estou falando do Judiciário e estou falando das plataformas. Vale a pena pensar nesses atores e observá-los de perto, porque eles também têm que ter muito cuidado para não desestabilizar ainda mais. E, lógico, tem a tarefa de construir estruturas que façam frente a determinadas campanhas de desinformação, de propaganda antidemocrática contra a urna etc. São esforços siameses, vamos dizer assim, para a gente chegar no começo de 2023 ainda montados em cima do cavalo, ainda com algum tipo de esperança de continuidade do regime democrático.

Não tem tarefa mais importante do que a outra, as duas coisas são importantes. Só destaco por último que esse olhar para o árbitro e sobre a importância de ele não ser desestabilizador me preocupa muito, porque está todo mundo muito acirrado e conflagrado no Brasil, todos os lados. E isso é muito ruim para tomar decisões boas, que perdurem no tempo e que sejam respeitadas, que possuam legitimidade. Há muito espaço para casuísmo, muito espaço para pressão e oportunismo, e isso pode piorar determinados cenários. Se uma plataforma toma uma decisão oportunista, prejudicando um candidato ou se um juiz toma decisão oportunista, na maior das boas intenções, essas coisas geram consequências que a gente não consegue imaginar.

Mariana Valente: Tem um ponto que tem estado na minha cabeça nos últimos meses, depois de ver essas últimas revelações do Facebook Papers. Uma das coisas que as organizações que estão atuando com isso – desde a sociedade civil até o TSE – precisam fazer é garantir que essa eleição seja prioridade para essas empresas. Quando a gente fala de comportamento coordenado, por exemplo, e não de um conteúdo específico, a gente está falando de problemas que dependem de informações dadas pelas plataformas, de informações que só elas têm. A gente até consegue fazer alguma pesquisa, identificar alguma coisa, mas as maiores desativações, por exemplo, de redes de comportamento coordenado, vieram das plataformas, de pesquisas feitas pelas plataformas. E eu acho que exigir essa priorização por meio de diálogo e cooperação vai ter que vir mão a mão com qualquer estratégia de regulação. Não estou falando que a única estratégia é cooperação, acho que a gente está falando de um cenário de necessidade mesmo, de regulação também. Mas se essa cooperação não acontecer e as plataformas não priorizarem as eleições no Brasil em 2022, não derem atenção para isso, nosso problema vai ser muito maior.

João Brant: Vocês têm feito um trabalho consistente sobre violência política. O que é possível esperar sobre o tema em 2022?

Mariana Valente: Eu sinto que esses debates não estão sendo suficientemente feitos de forma coordenada por nós. Às vezes parece que a gente não consegue ligar as coisas, trata como caixas separadas. Por que eu estou falando isso? A gente fez uma pesquisa esse ano sobre a desinformação generificada e a gente viu como essas coisas andam ligadas. Quando você olha todas as pesquisas que mostram por que uma pessoa passa uma informação adiante, você vê como que aquilo bate com as crenças que ela já tem preestabelecidas. Os estereótipos envolvendo gênero, envolvendo raça, são crenças preestabelecidas muito fortes e são muito fáceis de mobilizar.

Quando você pensa em por que que uma foto da ‘Marielle’ sentada no colo de um traficante espalhou rapidamente quando ela morreu – quando evidentemente não era a Marielle – é um bom exemplo para a gente pensar em como concepções sobre uma mulher negra, que vem da favela, fazem com que as pessoas acreditem mais facilmente numa informação. Isso só para a gente pensar como esses assuntos estão conectados.

Mas, para além disso, a violência política está ligada a fenômenos de desinformação. E quando a gente está falando de cenário de eleições há diversificação de quadros e a emergência de novas lideranças políticas. Todos esses dados que têm saído sobre violência política têm mostrado uma conexão que não estava tão evidente antes – uma conexão entre democracia e essas práticas. Uma das recomendações que a gente colocou no Monitora – nossa pesquisa sobre violência política nas eleições de 2020 – foi para que as empresas de redes sociais coloquem discurso de ódio, assédio, todas essas práticas dentro dessas forças-tarefas. Hoje isso não é feito, essas coisas são tratadas separadamente. E elas são tratadas separadamente porque essas conexões não são postas. A gente tem muito para caminhar em compreender essas conexões, onde elas existem, onde elas não existem, e como pensar essas políticas – desde as políticas das plataformas até regulação do TSE para as eleições.

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