O caso do brutal assassinato do congolês Moïse Kabagambe, ocorrido em fevereiro de 2022 e que chocou o Brasil, chamou mais uma vez atenção para um dos maiores e mais longevos problemas da sociedade brasileira: o racismo. Episódios violentos contra pessoas negras acontecem todos os dias nos mais diversos cantos do Brasil, mas apenas de tempos em tempos eles ganham o noticiário e a atenção pública. Mais especificamente na internet, o racismo tem assumido configurações cada vez mais diversas.
O digital, com suas características e nuances, (re)configura os mais diversos fenômenos sociais. O assassinato de Moïse, nosso objeto de atenção aqui, nos diz não apenas sobre como o fenômeno do racismo foi apropriado no ambiente online, mas também mostra como o digital fomenta, reinventa e traz novos elementos a problemas e questões sociais que permeiam a contemporaneidade. Os discursos preconceituosos e de ódio e a desinformação não se sobrepõem completamente, mas, com frequência, andam juntos. Eles podem servir para reforçar um ao outro. No caso Moïse, por exemplo, diversos aspectos envolvendo o ocorrido foram alvos de notícias falsas e informações imprecisas: a motivação do assassinato, os envolvidos, declarações de testemunhas, dentre outros. Isso, em grande medida, fomenta mais violência e torna o ambiente informativo desequilibrado. É justamente neste ambiente disperso que a desinformação ganha corpo.
A centralidade do digital na vida cotidiana trouxe novos desafios para se quebrar a lógica dos sistemas de discriminação e perpetuação de práticas racistas. Diante desse contexto, alguns elementos da repercussão do caso Moïse nas mídias sociais, incluindo atos de desinformação e discurso de ódio, nos ajudam a pensar como esse debate tem chegado até a sociedade.
Se o racismo estrutural marca a experiência social brasileira em tantos aspectos, compreendê-lo na atualidade exige atenção direcionada aos ambientes digitais. Esse é um dos objetivos do Aláfia Lab, laboratório de pesquisa independente e multidisciplinar de política digital que ambiciona produzir pesquisas inovadoras, compartilhar conhecimento e gerar impacto social. Construímos esse espaço porque entendemos e acreditamos que as tecnologias digitais de comunicação e informação, suas diferentes plataformas e ferramentas são repletas de oportunidades e possibilidades, e por isso podem ser usadas em prol da sociedade, dos direitos humanos, da educação midiática e democrática, da diminuição das desigualdades informativas e do combate a toda forma de preconceito.
Esse olhar guia as ações do Aláfia Lab, que lançou neste mês de abril o estudo Racismo Invisibilizado, um passo importante para ampliar a capacidade de monitoramento de casos, aumentar a compreensão do repertório racista e organizar o conhecimento a respeito das dimensões em que esse racismo se perpetua nos ambientes digitais. Ao analisar a repercussão do assassinato de Moïse nas redes sociais, identificamos uma realidade dura: as pessoas se comovem pela violência do caso e demandam por justiça, mas as menções à questão da raça, do racismo, do ser negro na sociedade brasileira hoje não chegam a 10% nas redes analisadas. Além disso, o assassinato só ganha grande visibilidade pública quando são organizadas manifestações de rua de indignação pelo ocorrido, o que acontece mais de 10 dias depois do ocorrido.
O combate ao discurso de ódio nas redes, sobretudo aquele focado nas questões raciais, é tema de interesse central do Aláfia Lab. Por isso, lançamos em 2022 o Observatório do Racismo nas Redes, um projeto que visa ampliar a capacidade de monitoramento e combate a conteúdo racista publicado em redes sociais. A ideia é atuar na construção de métodos e técnicas capazes de organizar o conhecimento em torno das variadas formas de racismo em ambientes digitais. Em outras palavras, é um modo de abordar suas dimensões mais marcantes, não apenas a ofensa em si, mas em como essa ofensa pode se estruturar politicamente, socialmente e culturalmente.