As narrativas mitológicas historicamente apresentam um valioso caráter pedagógico, firmando lições balizadoras do comportamento humano a partir de virtudes almejadas e de defeitos reprováveis. Pertencente ao imaginário grego, o conto de Sísifo aborda o fardo imposto ao astuto regente de Corinto por repetidamente enganar os(as) deuses(as) — a ponto de, inclusive, escapar da morte, ao ludibriar as figuras de Zeus, Tânatos, Hades e Perséfone.
Como punição, ele foi condenado a empurrar uma gigantesca pedra, montanha acima, por toda a eternidade. Destarte, à cada aproximação de seu topo, via-se acometido pelo cansaço, o que acarretava a rolagem da rocha ao ponto de partida, num sancionamento cíclico perante o qual inexistiam evasivas.
Ainda que apartados por milênios e quilômetros de distância, os debates em torno da regulação da inteligência artificial no Brasil parecem refletir tal fatídico desfecho. Concebido como o futuro marco legal da matéria, sob a forma de substitutivo aos Projetos de Lei nº 5.051/2019, 21/2020 e 872/2021, o Projeto de Lei nº 2.338/2023 teve a sua votação adiada pela Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial (CTIA), vinculada ao Senado Federal, pela quinta vez, no dia 13 de novembro de 2024.
A postergação o transporta a um estado de limbo, replicando-se a estratégia utilizada diante do Projeto de Lei nº 2.630/2020 (PL das Fake News): campanhas de desinformação em massa nas redes sociais aliadas à intensa pressão das big techs nos bastidores parlamentares. Sondagens realizadas pela agência de checagem de notícias Aos Fatos apontam que a retomada das discussões do PL nº 2.338/2023 será marcada pela apresentação de um novo relatório final, mais alinhado “aos interesses da indústria e do setor de tecnologia”.
Ambas as propostas parecem fadadas a destinos incertos, em que avanços significativos nos processos legislativos são constantemente derrubados, configurando o retorno à base de seus vertiginosos montes. O diferencial em relação ao mito em comento reside na causa do retrocesso — antes relacionada à fadiga de Sísifo, esta passa a se associar aos pujantes interesses mercadológicos, confortavelmente posicionados no cume a ser escalado.
Em meio às diversas versões do PL nº 2.338/2023, que já conta com 148 emendas, o modelo apresentado pelo Senador Marcos Pontes orbitava em atmosfera alienígena ao sistema jurídico nacional, pois carecia das condições mínimas para a sobrevivência dos direitos dos usuários dos sistemas de inteligência artificial, embora se afigurasse bastante convidativo à fisiologia das big techs.
Some-se a isso a questionável requisição de convites para audiências públicas alusivas ao citado projeto de lei, efetuada pelo congressista em junho de 2024, na qual omitiu as ligações de seus destinatários e das instituições a que se vinculam a grandes empresas da área, como Meta, IBM, Microsoft, Amazon e Google, e forneceu qualificações incorretas e/ou desatualizadas desses profissionais.
Diante de tal conjuntura, a ascensão ao ápice em questão constitui uma árdua tarefa, cuja importância não deve ser ignorada. Na corrida desenvolvimentista da inteligência artificial, liderada com sobras por Estados Unidos e China, o fomento à inovação se revela indispensável ao êxito econômico desejado pelos demais competidores. Ao contrário do que vem sendo veiculado por grupos de interesse avessos à regulação, a edição de uma legislação acerca da IA não trará obstáculos automáticos ao progresso pretendido.
Caso delineados com equilíbrio, os seus preceitos fornecerão a segurança jurídica vital para atrair investimentos e alavancar o Brasil na disputa global em curso. A confecção do Artificial Intelligence Act (AI Act) reflete esse raciocínio, à medida que busca resguardar o continente europeu — que, no presente momento, não abriga grandes players do segmento — das investidas sino-americanas, como bem apontou o professor Alexandre Pimentel durante fala no evento “Conexão REC’n’Play – Impacto do uso da IA no universo jurídico” realizado no Recife em abril.
O receio de se estabelecer um corpo normativo em descompasso às céleres mudanças deve ser sopesado, mas a inação pode se mostrar ainda mais lesiva. Durante uma recente reunião interna, a OpenAI, maior expoente mundial no campo de inteligências artificiais generativas, revelou o mapeamento para se alcançar o estágio da superinteligência, que, teoricamente, transcenderia o somatório das aptidões intelectuais da humanidade.
Prestes a superar o seu patamar inicial, em que a IA interage em linguagem natural com algumas limitações, a empresa anunciou os quatro níveis subsequentes de classificação que culminariam em tal status, compostos por sistemas: a) raciocinadores (reasoners), capazes de solucionar problemas intricados, de maneira similar a um indivíduo com formação de doutorado; b) agentes (agents), aptos a gerenciar atividades simultâneas, com eficiência, por dias a fio; c) inovadores (innovators), munidos de originalidade e do potencial para performar descobertas científicas; e d) convertidos em organizações (organizations), hábeis para dirigir atribuições de elevada complexidade, como as de uma empresa, por completo.
Com os saltos evolutivos dessa tecnologia paulatinamente reclamando menos tempo, torna-se pertinente questionar se o irrestrito avanço em direção às suas versões mais sofisticadas, sem as correspondentes salvaguardas protetivas a usuários e terceiros impactados, é aconselhável. A despeito da cizânia envolta ao termo, é inegável que a concepção de uma superinteligência deixa as obras de ficção científica e passa a habitar o imaginário popular, já bombardeado por aplicações automatizadas nos espaços de trabalho, lazer e convívio familiar.
O alarde distópico a respeito de máquinas subjugadoras da humanidade, típico de tais produções, deve ser rechaçado. Todavia, do ponto de vista normativo, convém um senso de urgência perante as galopantes mudanças ocasionadas pela inteligência artificial. Com isso, não se está a defender a açodada aprovação do PL nº 2.338/2023, cuja atual redação carece de melhorias e esclarecimentos, a serem idealmente alcançados durante a mais recente prorrogação do funcionamento da Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial (CTIA), aprovada em 13 de novembro de 2024, por 30 dias — a quinta dilação da atuação do colegiado desde a sua formação.
Na lacuna de uma legislação norteadora, uma pletora de modelos de IA é desenvolvida nas mais diversas áreas, consolidando um importante lastro tecnológico a ser considerado. Em simultâneo, regulamentações setoriais emergem com balizamentos específicos, a exemplo da Resolução nº 332/2020/CNJ, que disciplina o uso da inteligência artificial no Poder Judiciário e constitui o foco de uma recente minuta de atualização diante do avanço das ferramentas generativas, e da Recomendação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para o uso de IA generativa na prática jurídica, ensejando preocupações acerca da multitude de parâmetros a serem observados pelos seus destinatários.
Assim, o que se busca é a consolidação de um diploma legal que nivele os ditames de proteção e de fomento à inovação, gerando um ambiente de estabilidade para que soluções de IA floresçam no país. Sob o presente cenário de dominação pelas big techs — que diuturnamente se contrapõem a esse movimento — e de proliferação de campanhas de desinformação, convém destacar os ensinamentos contidos na releitura do mito de Sísifo promovida por Albert Camus.
Diante do absurdo envolto à irracionalidade da existência humana, o pensador franco-argelino propõe a revolta: uma irresignação perante a insensatez do mundo, que nos move em frente, a despeito do ingrato destino que nos é reservado. Tal como Sísifo, incessante na execução de sua interminável tarefa, devemos persistir na tortuosa jornada em prol da regulação equilibrada das novas tecnologias, notadamente da inteligência artificial.
Apenas a partir da resistência ordenada perante os adiamentos da votação do PL nº 2.338/2023, seguidamente arquitetados pelas forças do mercado, poderemos vislumbrar o topo de tal montanha.
Quem sabe, um dia, ele poderá ser alcançado…