#Panorama2023
Esta entrevista faz parte da série #Panorama2023, entrevistas para entender o contexto da desinformação pós eleições, impactos na sociedade e futuros possíveis para combater o problema
O ódio que anda permeando nossas relações sociais, fruto do extremismo político, tem origem, entre outros afetos, no medo. Os afetos andam juntos. Num momento de tantas incertezas e desconstruções, o medo se organiza para o entendimento social. E quando ele “convoca mais gente”, se transforma em ódio. Quem explica um tanto do que assistimos na política desde, pelo menos, 2016, é Christian Dunker, psicanalista, e professor Titular do Instituto de Psicologia da USP.
Esta passagem do medo ao ódio é um clássico dos regimes totalitários, segundo Dunker, porque à medida que mais pessoas se juntam ao medo, todos vão ficando mais corajosos e raivosos, com força suficiente para reagir.
Entre outras abordagens que ajudam a iluminar nosso contemporâneo, Dunker fala sobre esferas públicas criadas a partir do digital e a confluência público e privado, o convencimento que move a repostagem de fake news, entre outros assuntos.
Leia a entrevista da série #Panorama2023 abaixo.
RODOLFO VIANNA – Muitas das fake news, da desinformação, trabalham com o medo, teorias conspiratórias ou ataques a costumes, que criam o que muitas pessoas já estão falando desse “pânico moral”. Dentro desse cenário, numa visão mais ampla, como a gente pode entender o medo nessa disputa política?
CHRISTIAN DUNKER – Olha, acho que temos dois ângulos: o primeiro é entender a gênese do afeto de medo. O que a gente pode dizer que é um afeto ruim, que causa uma prontidão para a ação, que causa uma elevação da inclinação para interpretar o mundo, mas, por outro lado, o medo se organiza em torno de um objeto. E ter um objeto do qual a gente tem medo é muito melhor do que experimentar a mesma coisa sem esse objeto, ou seja, angústia ou desamparo.
Então, numa sociedade em que a incerteza cresceu, a opacidade dos processos cresceu, em que a indeterminação cresceu, inclusive com o golpe, o que a gente tem? Angústia de que onde é que isso vai parar, incerteza e dificuldade de ler aquilo que o Durkheim chamava de “anomia”, os tratos sociais, as regras sociais. Então o medo tem uma função restaurativa, ele tira você desse lugar e o coloca orientado para outro.
A segunda perspectiva em relação ao medo é que, como já dizia Darwin e os estudiosos dos afetos, a emoção vem aos pares – alegria e tristeza, nojo e surpresa, medo e ódio. Ou seja, isso é clássico na filosofia dos totalitarismos, a passagem do medo para o ódio é mais ou menos automática, porque à medida que eu vou tendo mais pessoas tendo medo junto comigo, o que vai acontecer? Eu vou ficando mais corajoso.
À medida em que eu vou aumentando a minha convicção em torno do medo, eu vou ficando mais grandioso no meu ego. Na medida em que o medo vai orientando minha vida, chega um ponto em que ele diz: “agora eu tenho força o suficiente para agir o meu medo”, como eu faço isso? Eu vou passar a ter ódio daquele de quem antes eu tinha medo. Então é essa decisão que o ataque e fuga, como disse lá o famoso psicólogo. Eu vou primeiro fugir, interpretar a situação e na primeira ocasião voltar construindo uma cultura do ódio, construindo uma cultura da agressivização das relações sociais, que é o que o Bolsonaro conseguiu nesses quatro anos.
RODOLFO VIANNA – Muito se fala do discurso de ódio crescente, essa polarização que está estimulando o ódio. Então o ódio é consequência do medo?
CHRISTIAN DUNKER – Não só isso. Ele é incrementado em várias camadas, há uma função do ódio, quando usado em pequenas proporções, que é uma função de separar você, de deixar para trás, por exemplo, um romance, alguém que te fez mal… o ódio é muito importante para a gente poder também se reposicionar.
Nessa medida, a gente vai então incluir aí uma quantidade expressiva de pessoas onde o ódio vem do amor, que é outra gramática, né? Quer dizer, amei o PT, tinha altas expectativas com o Lula, eu tinha um romance, mas aí ele fez uma coisa que foi corrupto… então quando eu inverto o amor em ódio, é outra gênese, não vem do medo.
E a gente teria ainda uma outra função do ódio que a gente pode chamar de função crítica. É a função do ódio ligada à culpa: “ah, fiz uma coisa errada, não estou me virando muito bem com isso, estou me percebendo assim, machista, racista, classista, eu estou me percebendo num mundo cada vez que estou fazendo que me deixa com culpa, como eu vou reagir?”, ou eu vou reparar aquilo que eu fiz, vou agir sobre o mundo tentando transformá-lo, lidar com essa culpa reparativamente, ou eu vou dizer assim: “não, espera aí, não sou eu o culpado, o culpado é o outro e por isso eu o odeio”, afinal a culpa é do PT, todo mundo sabe. E o PT? Você tem aí uma outra gramática impulsionando essa cultura do ódio.
RODOLFO VIANNA – Professor, como o nosso foco é a desinformação e fake news, eu gostaria de saber se o senhor acredita que muitas das pessoas que compartilham essas desinformações ou as fake news, se elas são convencidas daquilo ou também elas usam daquilo como um álibi? Elas mesmas desconfiam daquela informação ou daquele dado, mas independente disso acabam compartilhando a mensagem. É por convencimento? Como o senhor avalia esse tipo de comportamento?
CHRISTIAN DUNKER – Isso remete a uma pergunta clássica na história da filosofia, quer dizer, que é o convencimento, né? Tem um convencimento que é assim: hoje eu me demito, subjetivamente, porque eu reconheço a autoridade do outro, então eu estou convencido porque eu acredito no outro, não porque eu fiz um trabalho interno, da razão, que me faz acolher aquelas proposições como minhas. Então, a ideia de convicção é bífida na origem, a gente tem dois tipos pelo menos. E me parece que no caso de fake news, a gente tem um processo em que o convencimento é feito a partir da repostagem, né? Ou seja, eu tenho uma dúvida, eu não estou entendendo, será que é ou não? Não sei. Eu vou sanear a minha dúvida passando à frente aquela notícia”… Por quê? Porque aí eu experimento os efeitos daquilo que eu disse sobre os outros e eu vejo se, bom, deu eco ou não deu eco. Mas, veja, aí eu não estou propriamente pensando, aquilo não é uma mensagem que exprime o que eu estou entendendo sobre o mundo, eu estou fazendo um teste… quer dizer, qual é a repercussão do negócio? Onde tiver mais repercussão, eu vou. Ou eventualmente onde tiver menos repercussão eu vou, depende da posição subjetiva. Agora, tem um outro processo envolvendo a convicção que diz respeito a isso que você chamou assim de álibi, que é: “olha, eu tenho certas ideias das quais eu tenho um excesso de certeza, não tenho dúvida, né? Eu não posso inclusive ficar em dúvida. Como é que eu faço para lidar com esse excesso de certeza? Que eu vivo como? Indignação, eu vivo como exclusão da minha palavra, eu vivo como ninguém me escuta, me dá razão?”. É o tio do churrasco que fala e ninguém dá bola, mas ele sofre com aquilo, né? Ele sofre com aquela convicção que às vezes começou como uma coisa reativa, ele falou uma bobagem, o outro falou uma coisa que ele não concorda, ele levanta uma oitava, daqui a pouco está com duas oitavas, de repente todo mundo sabe que ele pensa assim e daí já que todo mundo pensa que ele pensa assim, ele pensa assim mesmo, daí ele se vê preso numa espécie de princípios que o definem identitariamente e daí, para expressar esse excesso, para vingar-se dessa posição, vamos dizer assim, de pouco reconhecimento, na ocasião em que isso se torna majoritário ele embarca, né? Ou seja, quando eu posso me juntar… que é a solução que em geral os que sofrem bullying fazem, uma hora eles se juntam nos “abulinados”, nos que apanharam, e agora a gente vai para cima dos outros dizendo: “olha, essas nossas convicções não são só nossas, elas são certezas que eu preciso realmente impor a você, porque eu estou fazendo um bem para você, porque isso vai te salvar, porque isso faz…”, é uma posição um pouco, assim, de certos missionários, de certas seitas extremamente perigosas do ponto de vista intersubjetivo, porque o que você está montando é uma espécie de posição perversa, né? Não que essa satisfação seja em si perversa, ela não é, não é, mas ela te põe num lugar que diz o seguinte: eu sei o que é melhor para você, eu sei como você vai gozar mais, eu sei o que você no fundo quer ou precisa. A gente escuta ao mesmo tempo a voz da “mãe” dizendo: “leva o casaco”, mas de outro lado é a voz dos mais totalitários, dos líderes realmente fanáticos, dos líderes que levam, vamos dizer assim, às últimas consequências o potencial de violência e destrutividade social: “Eu interpreto, encarno o espírito do povo alemão”, eu sou “a última folhagem do Império Japonês”, quer dizer, isso é o pior, né?
RODOLFO VIANNA – Professor, o senhor dizendo isso me fez lembrar que, na Europa, particularmente, muitos movimentos de extrema-direita se utilizam da figura dos Cruzados como símbolo. Então talvez seja um pouco isso que o senhor mencionou, você se sente “imbuído de uma missão”?
CHRISTIAN DUNKER – Isso, uma missão que é o que a gente diz assim: é aquela situação em que os inimigos dão sentido para a sua vida. Você não sabe direito para onde vai, não sabe direito o que você quer, você está desvalido, você está marginalizado, você está fora do jogo, bom, vamos para as Cruzadas, vamos odiar alguém e aí a gente resolve isso.
RODOLFO VIANNA – É possível a gente restabelecer, se é que um dia ela existiu, a razão no debate público, na esfera pública, ainda pegando um pouco a ideia “habermasiana” de esfera pública? Enfim, há espaço para a razão no debate público ou nunca houve?
CHRISTIAN DUNKER – Olha, nesse ponto eu sou “hegeliano”, né? A razão é um processo histórico também, ela se mostra em figuras que são contraditórias, ela não é um monolito estático, com um entendimento que, bom, desde sempre se estabeleceu dessa maneira. Então esses engasgos, esses retrocessos, são próprios das transformações, aliás, o Habermas falou sobre isso, dessas transformações do espaço público. Agora, um ponto em que eu não vou concordar é quando você fala em esfera pública, eu acho que o que nós estamos mudando, e a gente precisaria ter uma atenção mais fina, é a ideia que se tratam de esferas, bolhas, como diz o Sloterdijk, bolhas, como dizem: “precisamos sair das bolhas”.
Não se trata mais de um espaço em forma de bolha, que mimetiza a mônada, que cada um é uma espécie de saco ou de esfera, onde você tem a sua microesfera de vida privada e a macroesfera é a vida pública. Não é assim, porque você pega vida digital, você está às vezes na mesma frase, no espaço privado, e você é ejetado no espaço público. E entre uma coisa e outra a gente tem um processo, que acho que a teoria social não pensou muito bem, que é não só o público-privado, mas o íntimo e o estranho, que é o ponto de torção entre essas coisas. O público e o privado dependem se do outro lado eu tenho um estrangeiro, alguém que não é como eu, outro gênero, outra raça, ou é alguém que é como eu, “daí é como eu, tudo bem, eu passo de uma esfera para outra”. Você tem aí uma torção que a gente chama de assim de banda de Moebius e a estrutura, quando você tem duas torções em sentido contrário, você cola as duas, você obtém uma coisa chamada “garrafa de Klein”. Então, o espaço público, antes chamado espaço público enquanto esfera, ele agora precisa ser pensado como uma “garrafa de Klein” , em que você passa, conforme a demanda, do íntimo para o estranho, do estranho para o íntimo, do público para o privado, do privado para o público. E que as passagens são muito rápidas. A gente não está acostumado e elas são imprevistas, não é mais assim: “eu estou fazendo a minha função pública, eu estou no espaço público, sou um professor, médico, policial, presidente, fazendo minha parte no nosso belo quadro social, porque eu estou lá no meu lugar”, não, não é mais assim, porque eu posso estar aqui no churrasco, fiz uma declaração infeliz, alguém captou, mandou para lá, agora não depende mais de quem você é, do ponto de vista de ocupação de funções públicas, depende do discurso, da cena do discurso, de como isso produz efeitos e às vezes imprevisíveis, né? Inclusive com um novo tipo de sofrimento, de solidão, porque você a qualquer momento pode ser acossado. O espaço público também pode ser intromissão, ele pode entrar na sua casa, ele pode ser violento, ele pode te parar e te dar uma batida na rua. Bom, o que é o público e o que é privado numa operação como essa, né? O quanto aquele major da PM está querendo se vingar pessoalmente praticando racismo? Não sei, nem a câmera vai resolver isso.
RODOLFO VIANNA – A gente poderia tentar trabalhar essa chave com aquilo que Goffman dizia das faces positivas e negativas, que é um pouco: a face negativa sempre incomoda, é mais o íntimo, o particular, o privado, a face positiva é a externa… talvez hoje as faces estejam misturadas, digamos assim?
CHRISTIAN DUNKER – É, o Goffman foi um autor meio esquecido injustamente, concordo contigo. Ele tem aquele livrinho sobre a representação do eu na vida cotidiana, descritivamente muito bom. Mas eu acho que ele envelheceu, porque as novas políticas acabaram fazendo uma crítica voluntária ou involuntária dessa nossa confiança na representação, que era o conceito chave para ele. “Nós somos como atores no palco, no mundo, e o palco, o auditório, quem é o nosso auditório… recuperando um pouco as coisas que o Perelman foi fazer lá na Retórica também. Mas isso deixou de lado um outro aspecto da experiência identitária e subjetiva, que é a expressão. Então muito do que acontece em fake news, por exemplo, decorre de uma gramática expressiva. Quando eu publico uma bobagem, tolice, que eu mesmo acho que é uma coisa, assim, sem sentido, ou talvez sem sentido, eu não estou preocupado tanto assim em como eu vou ser representado e como eu estou me representando, mas o efeito de expressão: isso causa impacto? Isso causa surpresa? Isso causa constrangimento? Isso causa cancelamento? Ou seja, são coisas que a gente critica, porque elas criam uma forma poder, uma forma autoridade, que ela pode passar por cima sim da forma institucional. Então, há uma competição, há uma contradição entre o poder na sua forma representativa e na sua forma expressiva. Aí você vai dizer: tem um lado da forma expressiva que é super interessante, emancipatório, lugar de fala. Tem um outro lado que é o lado regressivo, que autoriza a pessoalização do poder. Então é porque “sou eu e a minha família”, é porque “eu gosto”, no fundo tanto faz políticas públicas, história, ocupação, tanto faz. Uma vez que eu consegui o poder aqui dentro da instituição, eu verticalmente o aplico expressivamente sobre os outros. É o fato de o Governo Bolsonaro ser um governo altamente declaratório, não tão eficaz, felizmente, nas suas declarações, mas é de ponta a ponta expressivo, daí que o que termina desse governo é o silêncio. O que é o silêncio? É a falta de expressividade. Não está fazendo nada? Não, deve estar assinando os papéis de sempre, mas lá na alcova do poder, não aqui na expressividade pública do curralzinho.
RODOLFO VIANNA – Professor, a última pergunta para a gente encerrar a nossa conversa: pensando um pouquinho no futuro, o senhor se considera otimista dentro desse cenário? Peço também para o senhor incluir na reflexão essas novas formas, o ambiente virtual que a gente está cada vez mais imerso, na nossa sociabilidade permeada pelo digital. O senhor tem uma visão otimista ou “tanto faz”, digamos assim, não importa “como encarar” e sim o “como vai ser”?
CHRISTIAN DUNKER – Eu acho que essa pergunta é boa para começar a conversa, não para terminar, porque eu me considero um otimista sem esperança. Um trágico. Como diria Lacan, a ética do canalha, o último sofista são os psicanalistas na Pólis, né? (risos) Então eu acho que eu tenho um otimismo de que… de fato, o otimismo da razão. De fato, a barbárie vai ser reposicionada, relida, interpretada como um movimento necessário para a gente chegar aonde a gente chegou, uma ampliação possível e desejada democracia.
Mas também acho que a gente precisa reduzir expectativas sobre o que é o poder e a política. A ideia de que “nós vamos fazer um super salto para frente, já dizia Mao”, isso é o berço para a produção do desamparo e melancolização do poder. Então, a esperança baixa é no sentido da espera, não do “esperançar” do Paulo Freire. Esperança baixa significa, assim, atenção ao seu complexo de suborno, você adora que alguém passe na sua frente e diz “venha comigo que eu te ofereço isso e aquilo”… não entra nessa, porque esse é o esperançoso, ele está esperando alguém passar e subornar o seu desejo. Não é tão fácil assim, né? É complicado, tem que ser um desejo um pouco mais firme. E a gente volta para as fake news: passa um vento digital e leva todo mundo. Quanto ao que fazer, a pergunta de Lênin, vamos lembrar, eu acho que esse é momento da autocrítica. Agora a esquerda precisa fazer, ler sobre o que foi feito sobre sua própria autocrítica durante esse tempo. O que deu errado, o que foi o lulopetismo. Agora encerrou um projeto e começou outro. Em que ponto a gente concorreu para produzir Bolsonaro? Em que ponto a gente não concorreu? Ou seja, crítica a frio, crítica que não é defesa porque você está no “corner”, pode ser que a gente volte… Mas me parece que é fundamental agora ler quem fez, quem está fazendo. Até para recompor um pouco esse conjunto de monólogos, um pouco cada qual gritando de um lado, e que acaba produzindo baixa capacidade articulatória. As alianças são puramente instrumentais? Adesões para uma eleição, mas, de novo, agora nós estamos do outro lado, vamos por que não tem nada melhor do outro lado? Vamos porque eu acho que essa é a minha turma?
RODOLFO VIANNA – Professor, muito obrigado. Pelo que o senhor disse, então, os últimos anos não foram fáceis, mas tampouco serão fáceis os próximos…
CHRISTIAN DUNKER – É, fácil não será, a razão sempre vai devagar e fala baixo, como dizia o Freud, mas eu acho que serão quatro anos melhores sim que os últimos. Bom, um certo pior já passou. Agora vamos esperar o próximo.