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Gustavo Souza

dez 10, 2025 | Destaques, Notícias

Inventar futuros: a potência tecnológica da marcha de mulheres negras

Gustavo Souza
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Dez anos depois da mobilização histórica de 2015, Brasília voltou a pulsar com a força política das mulheres negras. Na manhã de 25 de novembro, mais de 300 mil pessoas  ocuparam a Esplanada dos Ministérios para a Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, um movimento que combinou memória, resistência e invenção de futuros. Vindas de todos os estados e de mais de 40 países, elas atravessaram a capital para reafirmar que a luta por vida digna, justiça racial e democracia continua sendo escrita, sobretudo, pelas mãos e vozes das mulheres negras.

Neste ano, a Marcha incorporou um elemento inédito: a criação de um comitê nacional dedicado à agenda de tecnologia. Formado por cerca de 40 mulheres de diferentes trajetórias: da sociedade civil, da academia, do governo e também do setor privado, esse espaço marca um avanço em relação ao que já aparecia na declaração oficial da Marcha de 2015.

Naquele momento, as mulheres negras reivindicavam o fortalecimento das mídias populares e comunitárias, a presença e representatividade de mulheres negras nos meios de comunicação e a interrupção de repasses públicos a veículos que perpetuam racismo, sexismo, lesbofobia e transfobia. Também exigiam acesso universal à internet rápida, barata e disponível independentemente da condição socioeconômica ou do território, além do fim dos monopólios e oligopólios midiáticos e da defesa da pluralidade de conteúdo no país.

“As mulheres negras já diziam, naquela época, que a disputa tecnológica era parte da luta por bem viver, mas ainda não havia estrutura para sustentar essa agenda”, afirma Sil Bahia, codiretora-executiva do Olabi e integrante do comitê. Segundo ela, instituir o comitê em 2025 significa assumir publicamente que a tecnologia é um campo estratégico da luta política das mulheres negras. “É dizer ao país que não estamos apenas reagindo aos impactos da tecnologia: estamos projetando futuros, propondo caminhos e tensionando os rumos da inovação.”

Mulheres negras como fazedoras de tecnologia

O comitê de tecnologia parte de uma premissa que sustenta a atuação do grupo: reivindicar mulheres negras como criadoras de tecnologias. Não se trata apenas de proteger mulheres negras no ambiente digital, mas de afirmar que elas têm produzido, formulado e transformado tecnologias há muito tempo, mesmo quando isso não foi nomeado como tal.

Mais de 300 mil pessoas tomaram Brasília para a Marcha das Mulheres Negras no dia 25 de novembro. Foto: autoria de Letícia Reis | @revoa.lab @reiseovento

Para Sil Bahia, a Marcha tornou esse ponto inegociável: 

“Quando a Marcha colocou as tecnologias digitais no centro, ela fez mais do que apontar riscos: ela reafirmou que mulheres negras são e sempre foram criadoras de tecnologia”.

Ela explica ainda que os obstáculos atuais não estão na capacidade dessas mulheres, mas nas estruturas que ainda definem “quem cria, quem decide e quem lucra com a tecnologia no Brasil”. Ao disputar esse campo, diz Sil, a Marcha reivindica as mulheres negras como agentes que pensam e constroem o futuro.

Essa  perspectiva também ecoa na fala de Thiane Neves, doutora em Comunicação e também integrante do comitê. Ela explica que o documento oficial apresentado na Marcha reivindica que a tecnologia seja tratada como um território político, orientado pela vida e pelo bem viver. “Queremos resgatar a memória da produção de tecnologia por pessoas negras para mostrar que não somos apenas consumidoras, mas sobretudo criadoras”, afirma. 

➡️ Os motes da marcha:  o que é bem-viver e reparação? 

Para o movimento de mulheres negras, “bem-viver” é um projeto civilizatório inspirado em matrizes africanas, indígenas e diaspóricas, que coloca a vida digna, a justiça, a equidade, a relação harmoniosa com a natureza e o cuidado coletivo no centro da organização social.

Já a “reparação” é entendida como um conjunto de medidas simbólicas, políticas e materiais, conduzidas com protagonismo das mulheres negras, destinado a enfrentar a dívida histórica da escravidão e da colonização e corrigir as desigualdades que seguem estruturando o presente.

Para Thiane, esse resgate é um gesto educativo, histórico e de autoestima, e também base para influenciar políticas públicas, marcos regulatórios e normas trabalhistas que garantam “justiça e equidade de raça e gênero no setor de tecnologia”.

O comitê também se compromete a fortalecer ciclos formativos e ampliar o entendimento público sobre como a internet opera e por que importa disputar esse campo. “É fundamental que as comunidades negras sejam ouvidas de forma ativa para que seus interesses estejam contemplados nas políticas públicas”, diz Thiane.

Tecnologia como fronteira de disputa democrática

As diretrizes divulgadas pelo Comitê Nacional de Tecnologia da Marcha das Mulheres Negras mostram que a disputa por democracia também acontece nos ambientes digitais. No documento, o comitê denuncia que estruturas tecnológicas, de plataformas a sistemas algorítmicos, têm reproduzido e, em muitos casos, ampliado violências já conhecidas offline, afetando de forma direta e desproporcional as mulheres negras.

Entre os pontos destacados estão a violência digital, o racismo algorítmico, práticas de vigilância que atingem populações racializadas e a desinformação que corrói direitos básicos e fragiliza processos democráticos.

Para Thiane Neves, os mecanismos que reproduzem o racismo no digital operam em diferentes camadas, da comunicação à infraestrutura. Ela afirma que “as políticas de direito à comunicação ainda são frágeis e, muitas vezes, reforçam estereótipos racistas” e observa que a infraestrutura tecnológica chega de maneira desigual ao país e é marcada por altos custos de conexão e dispositivos. “Ter um bom aparelho e uma conexão estável continua sendo um privilégio. Isso exclui milhões e impacta diretamente a circulação de informações”, diz.

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O que as mulheres negras exigem para um futuro digital justo

As reivindicações do Comitê Nacional de Tecnologia da Marcha das Mulheres Negras deixam claro que a luta por democracia passa, necessariamente, pela transformação das estruturas tecnológicas que moldam a vida social. O comitê defende políticas públicas que incorporem raça e gênero desde o início, e que reconheçam a tecnologia como um campo político onde se disputa poder, justiça e dignidade. A declaração do comitê afirma que não basta ampliar acesso:

  • É preciso garantir condições materiais, autonomia e participação efetiva nos espaços em que decisões tecnológicas são tomadas.
  • Justiça tecnológica no trabalho, com acesso real a empregos no setor, condições justas e o enfrentamento ao racismo estrutural em empresas, universidades e serviços públicos
  • O documento também defende que a tecnologia esteja a serviço da vida e não do controle;
  • reivindica acesso significativo, livre e seguro à informação para comunidades negras, indígenas e quilombolas; 
  • afirma que as tecnologias que impactam territórios e ecossistemas devem ser debatidas com protagonismo das comunidades afetadas.
  • O comitê também se compromete a ocupar espaços de governança digital e a lutar pela soberania digital baseada em software livre, proteção de dados, descolonização do conhecimento e produção tecnológica orientada ao bem comum.

Para Larissa Santiago, cofundadora do Blogueiras Negras e Secretária Executiva do CNPIR/MIR, as reivindicações não são apenas diagnósticos, mas propostas concretas. 

“Marchar, como metodologia política, é uma forma de afirmar para o Brasil e para o mundo que as mulheres negras têm propostas consistentes para todas essas agendas, inclusive para a tecnologia. Temos saídas e caminhos para discutir autonomia, soberania, combate à violência, produção de conteúdo, bem viver e estratégias discursivas e narrativas” – Larissa Santiago

Outra frente essencial, segundo Sil Bahia, é assegurar a presença efetiva de mulheres negras nos espaços onde decisões são tomadas: conselhos, comitês, instâncias regulatórias, laboratórios de pesquisa e até startups. “Se queremos uma inovação realmente inclusiva e comprometida com justiça racial, precisamos olhar para a tecnologia como parte do projeto democrático do país, não como um produto neutro do mercado”, conclui.

O legado que permanece e o futuro projetado

Se a Marcha reuniu milhares na Esplanada, seu impacto real se estende além do 25 de novembro. Para o Comitê Nacional de Tecnologia, o encontro em Brasília marcou o início de uma atuação que pretende disputar, de forma contínua, os rumos da inovação no país. A própria grandeza da mobilização, afirma Larissa Santiago, revela a potência desse caminho. “A presença massiva das mulheres negras mostra, de forma concreta, o quanto estamos comprometidas com as pautas que nos atravessam”, diz.

Larissa vê o legado da Marcha como um processo vivo. “As mulheres negras seguirão incidindo nas pautas, demandas e horizontes que consideram centrais, propondo outro mundo possível”, afirma. Para ela, é um legado de transformação e afirmação: “Mesmo diante de violências, do racismo, do sexismo e do feminicídio, continuamos criando e recriando mundos. Essa chama permanece acesa e seguirá guiando os próximos anos.”

Integrantes do Comitê Nacional de Tecnologia da Marcha. Foto: Roberto Rodrigues/NIC.br

Parte desse futuro passa por reconhecer que a tecnologia será uma arena estratégica, especialmente em contextos de disputa democrática. Sil Bahia reforça que o comitê está atento ao cenário eleitoral de 2026. “Sabemos que tecnologia é parte da engrenagem da democracia, para o bem e para o mal”, afirma.

Segundo ela, a atuação no próximo ciclo deve envolver produção de conhecimento, proteção de mulheres negras e protagonismo na disputa narrativa. 

“Queremos que o debate sobre tecnologia e democracia não seja tratado apenas como segurança digital, mas como justiça racial e projeto de país” – Sil Bahia

Os compromissos do comitê desenham esse futuro possível: denunciar o racismo e o sexismo que atravessam as tecnologias; iluminar as trajetórias de mulheres negras no campo; cultivar uma educação digital crítica e antirracista; e disputar políticas públicas que garantam justiça.

Ao mesmo tempo, o grupo se move para tecer alianças, cuidar das comunidades, criar tecnologias voltadas ao bem viver e à reparação, despertar meninas e mulheres negras para as Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática e manter viva a memória das tecnologias africanas e diaspóricas.

Ao assumir esse compromisso de longo prazo, o Comitê Nacional de Tecnologia da Marcha das Mulheres Negras transforma o que poderia ser apenas um ato político em um projeto contínuo de disputa, imaginação e construção de futuro. Um futuro no qual mulheres negras não só acessam tecnologia, mas definem seus rumos.

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