A Organização dos Estados Americanos (OEA) lançou nesta quarta-feira (10), em Fortaleza, a Lei Modelo Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Digital contra as Mulheres por Razões de Gênero, que sugere obrigações para Estados, responsabilidades para intermediários da Internet e princípios de governança voltados à construção de ambientes digitais seguros para mulheres e meninas.
Apresentado durante a X Conferência de Estados Parte do Mecanismo de Seguimento da Convenção de Belém do Pará (MESECVI), o instrumento surge em um contexto de digitalização acelerada da vida pública e privada, que ampliou o alcance, a frequência e a gravidade das violências cometidas contra mulheres e meninas nos espaços online.
Ameaças, assédio, vigilância, roubo de identidade, discursos de ódio, deepfakes, conteúdos íntimos divulgados sem consentimento, extorsão e campanhas de desinformação voltadas a gênero estão entre as principais manifestações desse cenário.
O conteúdo da proposta, alinhado à Convenção de Belém do Pará (1994) e a outros padrões internacionais de direitos humanos, oferece diretrizes para governos, legislativos, sistemas de justiça, plataformas digitais, sociedade civil, agências de cooperação e organizações de mulheres. O objetivo é orientar reformas legais, fortalecer capacidades institucionais e promover respostas integradas e multissetoriais ao avanço da violência digital na América Latina.
Para Mónica Maureira, vice-presidenta do Comitê de Peritas do MESECVI, a Lei Modelo representa um avanço na forma como os Estados compreendem e respondem à violência digital de gênero. Ela destaca que o instrumento “reconhece essa violência não apenas como um problema técnico, mas como uma violação de direitos humanos”.
Segundo Maureira, além de orientar processos de sanção e investigação, a proposta também oferece diretrizes claras para prevenção. “Os Estados têm obrigações específicas para evitar os diferentes impactos que a violência digital causa na vida de mulheres, meninas e adolescentes”, afirma.
Os pilares da lei modelo
Reunindo 45 páginas, cinco capítulos e 68 artigos, disponíveis em espanhol e inglês, a Lei Modelo Interamericana detalha definições, responsabilidades estatais, regras para intermediários da internet, diretrizes para processos judiciais e disposições gerais. Entre os objetivos centrais, o texto estabelece, por exemplo, a prevenção, proteção e erradicação da violência digital contra mulheres e meninas.
A violência digital contra mulheres e meninas é definida no Artigo 2 da lei como:
“Qualquer ação, conduta ou omissão contra as mulheres, baseada em gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual, psicológico, político ou econômico, incluindo o patrimonial, em qualquer âmbito de sua vida, que seja cometida, instigada, mediada ou agravada, em parte ou em sua totalidade, pelo uso de tecnologias digitais”.
Para o documento, a violência digital é compreendida como uma prática que transita constantemente entre o online e o offline, podendo ocorrer tanto em espaços privados, quanto em ambientes públicos ou coletivos.
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Reconhece ainda que o direito de mulheres e meninas a viverem livres desse tipo de violência envolve elementos como vida, integridade pessoal, autonomia, participação pública e privacidade, sustentados por princípios como igualdade e não discriminação, proteção integral, governança digital, interseccionalidade, segurança com enfoque de direitos humanos e não revitimização.
Entre as inovações do modelo, está a definição de obrigações específicas para plataformas digitais e intermediários da internet, que passam a ter responsabilidades claras de transparência, preservação de provas, cooperação com autoridades e remoção ágil de conteúdos violentos ou não consentidos.
“O texto também aborda o fechamento da brecha digital de gênero e exige formação de operadores de justiça, além de articular ações entre diferentes instituições para garantir o acesso efetivo à justiça, livre de estigmas e barreiras. Também são previstas reparações simbólicas, educativas e tecnológicas, junto com medidas para fortalecer a alfabetização digital e a prevenção”, afirma Mónica Maureira.
Os desafios da IA para a proteção de mulheres
A Lei Modelo dedica uma parte importante de suas definições aos riscos tecnológicos associados ao uso de inteligência artificial, reconhecendo que algoritmos e ferramentas automatizadas podem reproduzir, amplificar e até lucrar com violências de gênero.
O texto descreve o prejuízo algorítmico como os erros sistemáticos de sistemas de IA que resultam em discriminações, seja por falhas no desenho, seja por previsões que colocam mulheres em posições injustas ou desfavoráveis. Essa abordagem parte do entendimento de que a violência digital não se limita aos atos individuais, mas inclui também estruturas tecnológicas que reforçam desigualdades.
Entre as manifestações de violência, a Lei Modelo lista:
- A criação e difusão de conteúdos íntimos falsificados ou manipulados com IA sem consentimento;
- O desenvolvimento ou uso de algoritmos que favoreçam a circulação de material violento, misógino ou discriminatório;
- A monetização dessas práticas, considerada uma forma de exploração da violência.
- Caso o sistema de justiça utilize ferramentas automatizadas, deve haver revisão humana obrigatória para prevenir decisões enviesadas que ameacem os direitos das mulheres.
“Deepfakes e deepnudes nos colocam em um terreno especialmente perigoso”, explica Fernanda K. Martins, antropóloga e diretora de estratégia e incidência da Fundación Multitudes. Ela explica que essas tecnologias “produzem material violento inexistente, colocam mulheres em situações fictícias e impossíveis de refutar, e criam um mercado lucrativo baseado na degradação de suas imagens”.
Para Fernanda, que também é doutora em Ciências Sociais, é importante reconhecer que “não estamos diante de brincadeiras tecnológicas”, mas de mecanismos sofisticados de destruição reputacional que afetam diretamente a presença e a segurança das mulheres na vida pública. “Por isso, a Lei Modelo é tão importante: ela coloca o debate tecnológico no centro da prevenção da violência de gênero”, apontou.
Garantias para candidatas
A Lei Modelo reconhece que a violência digital baseada em gênero tem impacto direto sobre a disputa política: não é um fenômeno lateral, mas um fator capaz de distorcer a competição eleitoral e restringir a presença de mulheres na vida pública. Esse entendimento dialoga com a avaliação de Fernanda K. Martins, para quem “as plataformas digitais hoje são parte constitutiva do espaço cívico”.
A antropóloga ressalta que, em contextos de alta polarização, a violência online contra mulheres políticas deixa de ser um ataque isolado e passa a operar como “uma estratégia organizada de retirada de direitos”, que pode levar candidatas a abandonarem o debate público por falta de segurança. “Quando uma mulher decide deixar uma plataforma, isso revela um problema de democracia, não de fragilidade individual”, afirma.

Para enfrentar esse cenário, a Lei Modelo determina que órgãos eleitorais e de justiça adotem medidas estruturadas de prevenção, como formação interna nos partidos, campanhas de sensibilização, observatórios de monitoramento e análises de risco, dispositivos essenciais em períodos em que ataques coordenados e campanhas de desinformação se intensificam.
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Além da prevenção, o documento exige a criação de protocolos de denúncia ágeis, com instituições claramente responsáveis por receber, processar e garantir medidas protetivas. O objetivo é reduzir barreiras e impedir que mulheres sejam silenciadas por perseguição digital, ataques de ódio ou manipulações destinadas a afetar sua credibilidade.
Para Martins, esse conjunto é indispensável. “Essas ações evitam que a violência digital funcione como um filtro informal de quem pode ou não participar da vida pública”, explica. Ela reforça que a misoginia política opera hoje de forma coordenada e que “sem proteção adequada, continuaremos expulsando mulheres justamente dos espaços onde sua presença é mais necessária.”
Processo amplo e participativo
A Lei Modelo é resultado de um processo regional amplo e colaborativo, conduzido pelo Comitê de Peritas (CEVI) que decidiu pela sua elaboração em 2022. Ao longo de mais de dois anos, o texto foi construído a partir de vinte consultas presenciais e virtuais em oito países, envolvendo cerca de mil organizações e especialistas dos campos de direitos digitais, justiça, igualdade de gênero, academia e sociedade civil.
Para Márcia Lopes, ministra das Mulheres, o caráter regional e participativo da proposta reforça o potencial de transformação da Lei Modelo. “Espero que, a partir dessa lei, os países olhem para sua realidade, seus indicadores e modo de vida de sua população para aprimorar e atualizar as normas legais”, afirma.
Segundo ela, o objetivo é que o instrumento estimule debates e impulsione políticas públicas efetivas, promovendo “novos valores e éticas nas sociedades, com as mulheres protagonistas do processo”.
