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jan 5, 2022 | Destaques, Notícias

Jornalismo na mira dos ataques e caminhos para retomar seu valor

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O jornalismo tem sido frequentemente apontado como tábua de salvação no mar de desinformação em que vivemos. Veículos de confiança com procedimentos sérios de apuração podem funcionar como um antídoto para a desinformação. Essa equação, no entanto, não é tão simples quanto parece. Camila Mont’Alverne, pesquisadora de pós-doutorado no Reuters Institute for the Study of Journalism, na Universidade de Oxford, explica que a confiança no jornalismo pode variar entre diferentes veículos e também entre posicionamentos políticos diversos dos cidadãos. Para ela, uma estratégia de combate à desinformação que passe pelo jornalismo tem que envolver não apenas conteúdo de qualidade e checagem de fatos, mas também uma explicação sobre porque o processo jornalístico pode produzir informações mais confiáveis do que aquelas das quais não sabemos – ou mal conhecemos – a fonte. A seguir, confira a entrevista concedida por Camila Mont´Alverne a Nina Santos, coordenadora acadêmica do *desinformante. 

 

Nina: Camila, você participou de alguns estudos nesse ano de 2021 sobre como essa confiança no jornalismo tem diminuído no mundo todo, então queria começar falando um pouco do cenário global. Você acha que isso é uma tendência que deve continuar em 2022?

Camila: Uma coisa que tem ficado mais clara para mim à medida que eu tenho estudado mais isso é que é necessário qualificar o tipo de confiança que a gente está falando. Primeiro, quando a gente olha, por exemplo, para os próprios dados desse ano,  globalmente tem um aumento de confiança, mas quando a gente olha especificamente por países, o cenário é um pouco menos homogêneo. Enquanto alguns países, que normalmente recebem muita atenção, como Estados Unidos, Reino Unido, outros países da Europa Ocidental, têm uma tendência de queda na confiança, isso não necessariamente se verifica ao nível global quando a gente especifica o país para o qual estamos olhando. Eu acho que essa é uma primeira coisa para estar atento em relação a isso.

Um segundo ponto é qualificar se é o tipo de confiança na mídia ou no jornalismo que a gente está falando. O nosso último relatório do Reuters Institute, que olha justamente para os dados de confiança do Brasil, Índia, Estados Unidos e Reino Unido, mostra que tem uma diferença razoavelmente significativa quando você olha para a confiança perguntada de forma geral – ou seja, perguntando se as pessoas em geral acham que elas podem confiar nas informações que elas recebem do país delas – e quando isso é segmentado por marca. Então quando a gente olha para o nível de confiança de forma geral, sem segmentar por marca, a gente não está entre os níveis de confiança mais baixos. Na realidade, a gente já está entre os países com um nível de confiança, em geral, mais alto. Isso muda bastante quando se segmenta por marca. Então quando se pergunta especificamente sobre o nível de confiança na Globo ou sobre o nível de confiança no SBT, a gente vai ter mais diferenças nas respostas. 

Eu acho que o maior sentimento não é de hostilidade em relação às organizações noticiosas ou ao jornalismo de forma geral, mas muitas pessoas conseguem fazer uma distinção entre as diferentes fontes que elas acessam e isso gera também uma desigualdade no nível de confiança que elas vão ter. 

Nina: No caso brasileiro especificamente, você vê uma relação entre essa hostilidade em relação aos meios de comunicação e os ataques que jornalistas têm sofrido também nos ambientes digitais? Essa história de criticar os meios de comunicação era algo que já se via há muito tempo, mas esses ataques pessoais a determinadas figuras bastante reputadas no meio jornalístico me parecem algo novo. Você vê uma relação entre os dois?

Camila: Sem dúvida. Já tem alguns estudos, não me lembro se é do caso brasileiro, em que os líderes políticos gastam muito tempo colocando a imprensa e o jornalismo como um dos inimigos. Isso tende a estar conectado com uma maior descrença ou com um sentimento mais hostil em relação ao campo jornalístico.

Eu acho que no Brasil isso é muito claro e uma das coisas que me parece deixar isso claro é o quanto os nossos dados mostram que existe uma relação entre o grau de confiança e o apoio aos agentes políticos. No caso brasileiro, quem apoia o Bolsonaro tende a ter níveis de confiança nas notícias mais baixos, isso também acontece entre quem apoia o Trump nos Estados Unidos. Esse tipo de sentimento hostil, ou de desconfiança, encontra um campo muito mais fértil quando você tem todo dia as principais autoridades do país atacando jornalistas tanto pessoalmente como organizações noticiosas também. Eu acho que o que é particular no caso brasileiro é que isso não é tão novo. Por muito tempo, quem estava à frente de ataques e de contestações em relação ao jornalismo era a esquerda. E a gente pode e deve fazer a distinção, porque não era no mesmo nível, mas o discurso sobre hostilidade em relação ao jornalismo, e questionamento a respeito das notícias, do conteúdo delas, em muitos casos porque você não gosta do que elas estão dizendo, já existia antes. Então a gente tem um cenário no Brasil que talvez seja um pouco distinto em relação a isso, porque a gente tem dois campos que têm uma relação de hostilidade em relação ao jornalismo.

Nina: Você falou que os agentes políticos têm um papel bastante relevante nessa relação com os meios de comunicação. E aí em 2022 a gente tem uma eleição que se anuncia bastante tensa, polarizada. Como você vê que isso pode influenciar no papel do jornalismo? Porque, ao mesmo tempo, tem essa tensão política, mas as eleições sempre são momentos em que as pessoas prestam mais atenção nos meios de comunicação, tentam se informar mais e estar a par do que está acontecendo, acompanhar mais de perto o dia a dia dos políticos. Então como você acha que fica a confiança no jornalismo?

Camila: Acho que a pandemia, principalmente os primeiros meses, mostram que em situação de crise existe uma certa corrida para o jornalismo, em alguns casos, para o jornalismo tradicional. Claro que isso tem uma outra configuração quando a gente pensa no acesso às mídias sociais e na importância delas para como os brasileiros se informam. Então eu não acho que seja uma situação na qual a gente tem uma crise, a gente tem uma eleição. As pessoas não vão necessariamente se voltar para o jornalismo, as pesquisas recentes sobre isso mostram um aumento de interesse. Eu tenho dúvida se isso se traduz para o cenário eleitoral da mesma forma porque um cenário de ameaça à vida, como o da pandemia, me parece ainda mais grave e talvez incentive ainda mais que as pessoas se voltem para fontes que elas consideram seguras.

É inegável o quanto a cobertura eleitoral ainda é um elemento fundamental das campanhas, principalmente para cidadãos indecisos. Só que a questão é que a gente achar que o jornalismo é importante não necessariamente vai produzir maior confiança ou fazer com que as pessoas consumam uma informação que passou por todos aqueles processos de produção jornalística, quando elas têm acesso a outras informações muito diversas, de fontes diferentes, e que em muitos casos estão até mais acessíveis a elas, porque chegam no WhatsApp ou chegam nos feeds de mídia social.

Acho que vai ter um cenário desafiador para o jornalismo, primeiro porque vai ser com certeza alvo de ataque, segundo porque deve ser uma campanha muito acirrada, na qual vai ter uma dificuldade de se aproximar dos fatos e relatar de forma precisa o que está acontecendo. Eu não gosto dessa palavra, mas uma série de outras narrativas vão estar em disputa durante essa eleição, como normalmente acontece, mas talvez em nível ainda mais acirrado. E o jornalismo tem que pensar também nas próprias estratégias de conseguir atingir uma população que nem sempre acha que a informação que ele oferece tem algo necessariamente melhor do que a que ela consegue compartilhada no WhatsApp, ou enviada motivada politicamente de acordo com o lado que ela apoia. 

Nina: Acho que você tocou em um ponto que eu acho bem interessante, que é justamente a relação entre jornalismo feito pelas mídias mais tradicionais e o conteúdo produzido pelo que podemos chamar vagamente de mídias alternativas. A gente tem visto, nos últimos tempos também, um surgimento de mídias que tentam se passar por jornalísticas, tentam se apropriar seja do formato, da linguagem, e divulgar informações inverídicas, desinformação ou fake news de forma mais específica. Eu queria te ouvir sobre como você vê esse fenômeno. Porque temos falado do lado negativo que é disseminar desinformação, óbvio, mas também as mídias alternativas têm um papel de diversificar o cenário da comunicação. 

Camila: Sem dúvida tem um papel de diversificar e a gente nem imaginou que poderia diversificar tanto a ponto de se tornar um problema, né? Eu acho que se enfatiza em excesso o caráter decisivo das mídias sociais para uma eleição e os impactos negativos que elas têm, especialmente, quando você olha não só para mídia social, mas pra esse ecossistema de diferentes fontes de informação que podem ou não seguir os preceitos jornalísticos. E eu acho que se discute muito os impactos negativos disso, muitas vezes sem evidência empírica de que esses impactos sejam tão decisivos assim, e a gente de fato perde um pouco das possibilidades que a internet e as ferramentas digitais trazem.

Tem uma coisa importante que é a possibilidade de contemplar públicos que não eram contemplados, ou que o jornalismo tradicional não retratou direito, a gente pode pensar em várias minorias nesse sentido. Eu tendo a concordar que o oferecimento de todos esses diferentes pontos de vista e essas diferentes tentativas de organizações noticiosas, elas têm seu lado problemático, que a gente discute muito, mas elas têm possibilidades interessantes também.

O caminho é sem volta, a gente está numa consequente maior diversificação e maior descentralização das principais fontes. Não quer dizer que as outras fontes que a gente sempre viu como fontes importantes e referências importantes deixam de ser importantes, que elas deixam de ter uma certa centralidade no modelo midiático. A gente está trabalhando num levantamento tentando entender quem são os principais influenciadores jornalísticos no Facebook. E embora tenha bastante fonte que a gente não chamaria de tradicional, tem também bastante espaço para veículos tradicionais que têm uma certa bagagem, marcas estabelecidas nos mercados. 

Nina: Queria ouvir um pouco sobre essa questão dos princípios ou das características que passam a guiar a escolha das pessoas por determinadas fontes. Então lá no começo, na primeira pergunta, você estava falando que a gente precisava pensar a questão da confiança nos veículos também. E se a gente cruza isso com a questão da escolha política por determinadas fontes de informação, como fica? Você acha que isso, por um lado, pode ser benéfico para a democracia ou por outro lado pode gerar uma fragmentação, porque as pessoas deixam de ter um conhecimento comum, básico, sobre o mundo que elas partilham, digamos assim?

Camila: Eu tenho mais dúvidas do que resposta sobre isso. Porque por um lado, os dados do último relatório deixam muito claro que existe uma relação entre nível de confiança nas fontes e o líder político que você apoia. Por outro lado, e aí já olhando para o Brasil, a gente não vê essa diferença toda quando a gente olha para o tipo de partido que as pessoas se identificam. Claro, tem um pouco de diferença em relação aos partidários do PT, mas quando a gente olha para as pessoas que se dizem pertencer ao chamado partido do Bolsonaro, a gente não vê essa diferenciação toda em relação à marca e à organização noticiosa específica que aquelas pessoas confiam.

A gente vê diferença no nível de confiança geral delas, então quem é partidário do Bolsonaro de fato tende a ter níveis de confiança mais baixos, mas não necessariamente significa que ele confia mais na Record do que em outras marcas. A única marca na qual existe uma diferença quando se olha para partidarismo, nesse sentido de olhar micro para a organização noticiosa diretamente, é a Globo. Mostra um pouco das dificuldades que acabam acontecendo quando a gente tem um cenário no qual a motivação política guia o tipo de notícia que você prefere consumir. É muito curioso uma marca que se pretende ser uma marca que atende a todos os segmentos, a não ser uma marca partidarizada, que ela seja vista dessa forma dependendo do partido político ou dependendo do líder político que as pessoas apoiam.

Esse tipo de coisa dá um sinal, que não é dos melhores do ponto de vista democrático, que mesmo marcas que tentam se colocar como marcas catch all, que atendem ao público em geral, são vistas como partidarizadas em alguma medida e isso influencia em como as pessoas se sentem a respeito delas. 

Nina: Uma coisa que tem aparecido um pouco, quando você aproxima muito a questão da identidade política das escolhas midiáticas, é o argumento de que: “ah, as mídias tradicionais também disseminam desinformação”. Você acha que isso é uma discussão válida? Ou é fruto de uma leitura muito partidarizada do que seria a desinformação? Aquele famoso: “toda informação que eu não concordo para mim é desinformação”.

Camila: Tem um pouco dos dois. Primeiro olhando para a questão partidarizada, eu tendo a achar que em boa parte se trata muito mais de argumento politicamente motivado, ou de argumento para tentar deslegitimar uma informação que eu não gosto, do que exatamente algo calcado numa falha de apuração. Mas eu acho também que, em alguns casos, o jornalismo de fato comete erros, não apura da forma que a informação poderia ter sido apurada, às vezes é levado ao erro por confiar demais em alguma fonte específica, que tem muitos interesses e que esses interesses acabam sendo levados à frente pela matéria.

Acho que o debate sobre isso é bem-vindo, só que me parece, principalmente em campos mais amplos, que isso é apropriado mais como bandeira política, como forma de atacar o jornalismo ou um jornalista específico, do que exatamente baseado em interesse de ver um jornalismo que seja melhor, que retrate melhor o que acontece na sociedade.

Nina: Para terminar, qual você acha que é o papel do jornalismo no combate à desinformação? No Desinformante a gente tenta fazer um esforço que vai em duas linhas: descrever o cenário, o que a gente já tem de elementos, de evidências, que estão envolvidas na questão da desinformação, e, por outro lado, buscar soluções,  caminhos que podem trazer soluções para esse problema, que ganhou uma dimensão tão grande. E uma das soluções, um dos caminhos que a gente aponta é justamente o fortalecimento do jornalismo. Você vê isso como uma possível solução e em que sentido, como o jornalismo pode ajudar a combater esse ambiente desinformativo ou a construir um ambiente informativo mais democrático?

Camila: Acho que sim, o jornalismo tem a contribuir, eu tenho dúvida se é função do jornalismo ou se essa deveria ser a principal função que o jornalismo deveria assumir a partir de agora. Mas eu acho que tem uma parte do combate à desinformação que é  relacionada com a missão básica do jornalismo, que é a de oferecer informações que sejam minimamente precisas, atualizadas, sobre questões importantes e de interesse público. O jornalismo tem tentado fazer isso por meio de agências de checagem de fatos, algumas estratégias que já estão se tornando as estratégias tradicionais de combate à desinformação. 

Ao mesmo tempo, acho que tem uma parte desse debate que é um pouco de estratégia de relações públicas, no sentido que as pessoas consigam entender qual é a diferença do jornalismo. Que informações são oferecidas pelo jornalismo quando comparadas às informações que elas podem receber no WhatsApp ou no Facebook e que elas não sabem como foram produzidas? Tem um elemento aí que é de convencimento a respeito do que o jornalismo oferece que outras fontes de informações não podem oferecer. Isso passa pelo conteúdo, passa por desmentir boato e desinformação, mas passa também por estratégias de estar mais próximo dos leitores, de conseguir demonstrar para uma audiência o que aquelas informações oferecem que eles não conseguem receber em nenhum outro lugar. É uma estratégia complexa.  Precisa de um passo além da checagem de fatos, de desmentir boatos, que também são muito importantes, mas não me parecem suficientes. 

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