Quando se fala em Inteligência Artificial e mercado de trabalho muito se discute sobre a possibilidade dessas tecnologias substituírem humanos nas atividades do cotidiano profissional. Mas, a popularização desses sistemas automatizados também levanta questões sobre as condições de trabalho das pessoas que estão por trás disso tudo.
Para que sistemas automatizados poderosos, como o ChatGPT, criem poemas e dêem sugestões aos usuários mundo afora, há uma grande quantidade de trabalhadores ajudando a treinar a infraestrutura, analisando dados, avaliando a qualidade das respostas dadas ou conferindo se as tecnologias estão conseguindo identificar informações adequadas.
Jonas Valente, pesquisador do projeto Fairwork no Oxford Internet Institute, explica que essas tarefas fracionadas e repetitivas são chamadas de “microtrabalho” e são essenciais para o funcionamento das IAs. “Não tem como você desenvolver um sistema de IA que funciona bem sem ter muito trabalho humano, avaliando, treinando, revisando aquele modelo”, comenta o pesquisador.
Mas, se por um lado esses trabalhadores são fundamentais para o bom funcionamento dos sistemas, por outro, enfrentam situações precárias que contrastam com as quantias milionárias investidas nas empresas líderes do mercado internacional de IA. Algo semelhante ao que ocorre com os moderadores de conteúdos das plataformas digitais de redes sociais.
De acordo com a pesquisa Fairwork Cloudwork Ratings 2023, que teve a coordenação de Jonas e que avaliou as condições de trabalho em 15 plataformas – sendo 5 de microtrabalho – em diversos países, as empresas que fornecem serviços terceirizados para corporações de IA, como Google e Microsoft, tiveram as notas mais baixas.
“O nosso relatório mostrou que as plataformas estão muito longe de garantir parâmetros básicos de trabalho decente”, comentou Jonas. O estudo entrevistou cerca de 250 profissionais de 94 países e descobriu que eles ganham, em média, US$ 2,15 por hora trabalhada.
Outro ponto levantado pelo pesquisador é a relação Norte e Sul Global, já que, embora as más condições do microtrabalho seja um fenômeno global, há uma preponderância de empresas de países desenvolvidos contratando trabalhadores do Sul Global. Essas relações, segundo ele, são influenciadas pela falta de legislações protetivas, diferenças de câmbio e maior disponibilidade de força de trabalho.
Notícias sobre as condições precárias desses profissionais já chegam na imprensa internacional. Em janeiro deste ano, a Time noticiou que a OpenAI, empresa desenvolvedora do ChatGPT, estava usando mão de obra queniana, pagando menos de 2 dólares por hora, para moderar conteúdo tóxico na ferramenta. Em julho, trabalhadores que treinam o Bard, chatbot do Google, afirmaram trabalhar sob condições precárias semelhantes.
No Brasil, microtrabalho tem maioria feminina
De cada cinco micro trabalhadores que alimentam sistemas de IA no Brasil, três são mulheres. Esse foi um dos resultados trazidos pelo relatório “O microtrabalho no Brasil” realizado pelo Laboratório de Trabalho, Saúde e Processos de Subjetivação da Universidade Estadual de Minas Gerais (LaTraPs-UEMG) em parceria com o grupo de pesquisa internacional Digital Platform Labor (DiPLab).
O estudo teve o objetivo de mapear o mercado do microtrabalho no país, que já conta com mais de 50 empresas em atividade. Ainda segundo a pesquisa, um em cada três trabalhadores do setor não possuem outra fonte de renda além das plataformas e 70% têm de 18 a 35 anos, residindo principalmente nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Os profissionais de microtarefas ganham uma renda mensal de R$582,71 – menos da metade de um salário mínimo formal em vigor – e trabalham, em média, cerca de 15 horas e 30 minutos por semana, sendo que 31,9% chegam a trabalhar 7 dias por semana. Para se ter ideia da desvalorização desta força de trabalho, um engenheiro de software chega a ganhar R$18 mil, segundo dados fornecidos pelo Glassdoor.
“Ainda parece pouco conhecido no Brasil o fato de que a cadeia produtiva da Inteligência Artificial depende de uma multidão de trabalhadores precários, que trabalham em suas casas executando micro trabalhos sub-remunerados, que humanos fazem de forma mais eficiente que máquinas”, trouxe o estudo.
A pesquisa aplicou um questionário com a participação de 477 trabalhadores e realizou entrevistas aprofundadas com 15 profissionais, sendo 10 mulheres e 5 homens.
Regulação de trabalhadores de plataformas deve incluir microtrabalho
Jonas Valente diz que algumas empresas já começam a adotar mudanças para melhorar as condições de trabalho, baseadas nas orientações fornecidas pela própria Firework, mas esperar a boa vontade dessas corporações não é suficiente para resolver o problema.
Por isso, o pesquisador defende a importância do debate sobre regulação de trabalhadores em plataformas, que tem atualmente os entregadores e motoristas como expressões mais visíveis do fenômeno. “Há pouca atenção para os trabalhadores de plataformas on-line e isso deve entrar na agenda urgentemente em todos os países”, afirma.
Pressões para criar um uma Convenção internacional sobre os direitos dos trabalhadores em plataformas na Organização Internacional do Trabalho, da Organização das Nações Unidas (ONU), também estão acontecendo no cenário internacional.