“Precisa de um atestado médico e quer fazer isso sem sair de casa? É muito rápido e fácil”, sugere uma mulher de cabelos loiros num anúncio que está sendo veiculado no Facebook. A propaganda em questão é de uma empresa alemã que oferece aos brasileiros a emissão de atestados por 29 reais sem a necessidade de consulta médica, apenas preenchendo um formulário online. Outra peça patrocinada também foi veiculada nas páginas de resultados do Google Brasil.
O serviço que parece dar facilidade à vida do trabalhador, porém, chamou a atenção do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), que alertou sobre a irregularidade do anúncio e a falseabilidade do atestado, já que para esse documento valer no país é preciso, entre outras normas, ser assinado por um médico inscrito em um Conselho Regional de Medicina (CRM).
“Isso significa que, além de serem oferecidos atestados médicos sem consulta médica, as publicações ‘traduzem informações falsas’, e contrariam a legislação brasileira”, afirmou Angelo Vattimo, presidente do Cremesp. O conselho paulista entrou com uma ação judicial, no último dia 10, para retirar do ar o site da empresa.
O caso da venda de atestado médico levanta uma questão que parece estar mais comum nos últimos meses: a presença de anúncios nas plataformas digitais que oferecem serviços e produtos irregulares, ilegais e até mesmo falsos, com produtos e serviços que nunca são entregues. Os chamados “golpes do Ads” já somam prejuízos bilionários, ludibriando cada vez mais usuários no Brasil e no mundo.
De acordo com a Federal Trade Comission, entre janeiro de 2021 e junho de 2023, os norte-americanos perderam cerca de 2,7 bilhões de dólares em golpes veiculados em anúncios nas plataformas digitais. Outra pesquisa, desta vez desenvolvida pela empresa de cibersegurança Lookout, mostrou que, nos Estados Unidos, 34% das pessoas dizem encontrar diariamente propagandas do tipo nas redes sociais. O Facebook é o local onde as pessoas mais encontram as propagandas (62%), seguido pelo TikTok (60%), WhatsApp (57%) e Instagram (56%).
Já no Brasil, os golpes dos anúncios são um dos temas monitorados pelo centro de pesquisa NetLab da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que, no ano passado, publicou relatórios e estudos mostrando, por exemplo, como o programa governamental “Voa Brasil” – que oferece descontos em passagens aéreas – estava sendo usando para enganar e roubar dados sensíveis de usuários por meio de conteúdos impulsionados nas plataformas da Meta.
Carlos Eduardo Barros, coordenador de projetos do NetLab, explica que, apesar do fenômeno não ser novo, no ano passado houve um aumento expressivo no número de golpes que foram veiculados por meio dos anúncios das plataformas digitais. “Vários pesquisadores pelo mundo apontam que talvez estejamos vivendo uma epidemia de fraudes”, disse Barros.
Anunciantes buscam similar credibilidade para aplicar golpes em vulneráveis
Fraudes financeiras, tratamento de saúde com medicamentos falsos e uso indevido de programas do governo são alguns diversos tipos de anúncios falsos que são compartilhados diariamente nas redes sociais. Nesta semana, o Aos Fatos mostrou como um suposto programa de renegociação de dívidas em nome do Serasa estava sendo impulsionado nas redes sociais para, no fim, obter os dados dos usuários e pedir um pagamento via Pix no valor de R$ 117,90.
Como afirma Carlos Eduardo, essas peças tentam simular uma credibilidade para conquistar a confiança do público que está em situação de vulnerabilidade. Para isso, são utilizadas, por exemplo, imagens de pessoas famosas, de autoridades governamentais e marcas conhecidas, inclusive da imprensa, para passar a ideia de que a informação divulgada é verídica.
As deepfakes estão sendo cada vez mais presentes neste cenário. Recentemente, figuras como Anitta e Neymar foram recriadas por Inteligência Artificial para divulgar prêmios falsos em dinheiro. Mas, apesar dessa evolução tecnológica, como diz o pesquisador do NetLab, até mesmo montagens simples são “suficientes para convencer certo público que está procurando um tratamento de saúde ou uma solução financeira”.
Esses anúncios geralmente encaminham o usuário para sites externos às plataformas. São nesses lugares, então, que os golpes são finalizados. “A pessoa pode ter seus dados roubados sem nem saber, pode ser convencida a fazer um depósito de um dinheiro que ela nunca mais vai ver, achando que vai pagar por um produto que nunca chega”, alerta Carlos Eduardo.
Regulação pressiona plataformas a serem mais transparentes
Apesar de veicularem os anúncios golpistas, algumas plataformas já buscam conter esse tipo de ação. Em 2022, por exemplo, o Google afirmou ter removido mais de 5 bilhões de anúncios fraudulentos. A questão, ainda segundo Carlos Eduardo, é que elas não dão conta do volume diário que é publicado em seus sistemas com os investimentos atuais.
“O volume é muito grande e essas empresas não estão dispostas a investir nem um pouco a mais, se não for estritamente obrigatório, para melhorar a qualidade do serviço. Historicamente, a gente observa que esses esforços só são feitos quando temos algum escândalo ou quando é aprovada alguma legislação”, explicou o pesquisador do NetLab.
Além disso, sem uma regulação nacional específica, as plataformas decidem a forma como vão lidar com essas questões. “É necessário que plataformas criem novos protocolos para poder garantir dados sobre quem veicula anúncios nelas. Por exemplo, checar as identidades das pessoas, para caso alguém cometa um crime, elas possam identificar esses criminosos e ceder os dados à justiça de forma mais rápida”.
Porém, enquanto a discussão sobre regulação caminha no Brasil, ações judiciais movidas por parte dos cidadãos já correm na justiça brasileira, com decisões favoráveis às plataformas. No dia 11 de janeiro, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que o Facebook não é responsável pelos golpes dentro da sua rede. O autor da ação, um homem que sofreu um golpe na compra de um veículo, argumentou que a rede deveria prevenir os consumidores sobre perfis falsos e publicações que podem causar prejuízos. No entanto, o TJSP entendeu que faltou a “adoção de cautelas mínimas” antes do pagamento.
Meta mantêm anúncios de atestados falsos
Por meio da biblioteca de anúncios da Meta, é possível identificar três anúncios ativos da empresa alemã de atestados falsos – inclusive o vídeo citado no início da matéria – desde o dia 9 de novembro de 2023. Além disso, até a manhã desta quarta-feira (17), quando o *desinformante contactou o Google, era possível achar um anúncio da mesma empresa na página de resultados de busca da big tech para as palavras-chave “atestado 24h” e “atestado online”.
Ao *desinformante, uma porta-voz da Meta afirmou que “atividades que tenham como objetivo enganar, fraudar ou explorar terceiros não são permitidas em nossas plataformas e estamos sempre aprimorando a nossa tecnologia para combater atividades suspeitas. Também recomendamos que as pessoas denunciem quaisquer conteúdos que acreditem ir contra os Padrões da Comunidade do Facebook, das Diretrizes da Comunidade do Instagram e os Padrões de Publicidade da Meta através dos próprios aplicativos”.
O Google não se manifestou até o fechamento desta matéria.