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maio 27, 2025 | Destaques, Pontos de Vista

“Trompete de desinformação”: a estratégia eleitoral do Chega em Portugal

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A recente eleição legislativa em Portugal evidenciou o avanço da extrema-direita no país, rompendo com a imagem de resistência que o contexto político português havia mantido em relação à ascensão ultraconservadora, observada em outras partes da Europa. O principal protagonista dessa virada foi o Chega, partido fundado em 2019 por André Ventura, que defende uma agenda fortemente anti-imigração e nacionalista. A legenda conquistou 58 assentos parlamentares — o mesmo número alcançado pelo histórico Partido Socialista — consolidando-se como uma força política de peso no cenário nacional.

Mais do que o resultado eleitoral em si, chama atenção a forma como o Chega estruturou sua campanha: a desinformação desempenhou um papel central na mobilização de sua base e na construção de sua narrativa política.

O fenômeno da ascensão da ultra-direita suscita preocupações acerca do futuro das democracias liberais ao redor do mundo, uma vez que a chegada desses grupos ao poder vem acompanhada de ataques aos pilares do Estado Democrático de Direito, como o respeito aos direitos fundamentais, a independência das instituições e a liberdade de imprensa.

Somam-se a essas ameaças o receio de que os ideais difundidos por esses grupos, como o negacionismo ambiental e científico, os ataques sistemáticos a minorias políticas, a promoção de pautas antifeministas, anti-imigração, anti-LGBTQIA+, racistas e xenofóbicas, venham a ser transformados em políticas públicas restritivas, reduzindo direitos e colocando em risco liberdades individuais.

Desinformação como método

Nesse contexto, a eleição portuguesa oferece uma oportunidade para compreender melhor a atuação desses grupos e o crescimento de um ambiente informativo deteriorado pela desinformação. A estratégia do Chega baseou-se em repertórios ideológicos comuns à extrema-direita populista, como a dicotomia “nós” contra “eles”, culpando elites, imigrantes e a imprensa pelos problemas do país, além de uma comunicação digital calcada em desinformação, teorias conspiratórias e apelos emocionais.

Monitoramentos como o realizado pelo MediaLab de Portugal indicaram que André Ventura foi o líder partidário que mais veiculou conteúdos desinformativos durante a campanha. A atuação do partido lhe rendeu o apelido de “trompete da desinformação”.

Nas duas últimas eleições, o Chega propagou boatos sobre um suposto envenenamento de seu líder — que, segundo investigações, foi apenas um espasmo esofágico — e alegou atentados contra suas caravanas, posteriormente identificados como estalos de escapamentos de motocicletas. Também foi acusado de manipular dados sobre imigração, fomentando narrativas alarmistas de “invasão migratória” e “ameaça cultural”. 

Extrema-direita e desinformação

Ou seja, a relação entre a extrema-direita e a desinformação pode ser descrita como uma simbiose: uma cooperação estratégica em que ambos os fenômenos se alimentam mutuamente e se fortalecem em conjunto. 

Essa dinâmica se concretiza, sobretudo, pela exploração dos algoritmos das redes sociais, cujo modelo de negócio — baseado na economia da atenção — favorece a fragmentação do debate público, a criação de bolhas informacionais e a priorização de conteúdos com forte apelo emocional. Atores políticos de extrema-direita utilizam essas plataformas para disseminar desinformação e teorias da conspiração, tanto de forma orgânica quanto patrocinada. Com isso, ampliam de maneira significativa o alcance e a visibilidade de seu discurso.

Em um cenário marcado pela elevada dependência das redes sociais como fonte primária de informação, tais elementos compõem uma tempestade perfeita: intensificam a polarização política, corroem a confiança na imprensa e reduzem drasticamente a resiliência democrática diante da desinformação.

Obviamente, é necessário considerar que, embora o ambiente digital amplifique essas vozes, o crescimento desses grupos também reflete outras questões, como a incapacidade de atores políticos tradicionais de oferecer respostas eficazes a antigos e novos descontentamentos sociais. Neste cenário, a extrema-direita, se coloca como oposição a elite política tradicional, explora ressentimentos e promove agendas antidemocráticas, oferecendo soluções simplistas para problemas complexos.

Algoritmos como agente político

Ainda assim, a tecnologia é um elemento crucial para o modelo contemporâneo de ascensão da extrema-direita e amplificação do cenário desinformativo. Alguns autores têm defendido que a tecnologia deixe de ser compreendida apenas como um ambiente e passe a ser analisada também como um agente político. É o que propõem Fabrino Mendonça, Rafael Almeida e Fernando Filgueiras no livro Algorithmic Institutionalism (Institucionalismo Algorítmico, em tradução livre), que argumentam que os algoritmos atuam como instituições. O resultado é que as sociedades têm, cada vez mais, seu tecido social moldado por camadas sobrepostas de comportamento algorítmico e humano.

Essa compreensão da tecnologia como agente ativo permite aprofundar a análise sobre como a desinformação é potencializada nos ambientes digitais. Se os algoritmos funcionam como instituições, moldando comportamentos e filtrando o que circula no debate público, então a desinformação deixa de ser apenas um conteúdo enganoso para se tornar um mecanismo estrutural que contamina deliberadamente o espaço informacional. O que dificulta a construção de discussões baseadas em fatos e evidências, corrói a percepção coletiva da verdade, satura o ambiente comunicacional a ponto de obscurecer temas realmente relevantes e impede que as pessoas tomem decisões bem fundamentadas. 

É como provocar um incêndio: mesmo depois que o fogo é apagado, a fumaça persiste, criando um ambiente saturado onde o instinto de sobrevivência se sobrepõe à razão. Pensar com clareza e agir de forma racional se torna um desafio. Essa “fumaça” informacional cria um cenário caótico em que a dúvida se torna a regra, e não a exceção. Assim, a desinformação não apenas desvia a atenção de questões cruciais, mas mina os próprios alicerces do debate público saudável. 

Para enfrentá-la, não basta apagar o incêndio; é preciso também investir em estratégias que dissipam a fumaça. Essas soluções passam pelo restabelecimento da confiança nas autoridades epistêmicas do conhecimento, pelo fortalecimento do jornalismo profissional, pela responsabilização dos agentes que produzem e disseminam desinformação de forma sistemática e pela regulamentação das plataformas. O resgate de um sistema informacional íntegro é essencial para o enfrentamento da ação daqueles que hoje atacam a democracia.

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Letícia Alcântara

Pesquisadora do Aláfia Lab, é jornalista e doutoranda em Comunicação e Culturas Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Realizou estágio doutoral no Institut de Recherche Médias, Cultures, Communication et Numérique (IRMÉCCEN), da Université Sorbonne Nouvelle. Tem experiência como coordenadora de comunicação política em mandatos parlamentares na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Sua pesquisa atual investiga democracia, capital digital e habilidades digitais entre as populações brasileira e francesa.