A recente eleição legislativa em Portugal evidenciou o avanço da extrema-direita no país, rompendo com a imagem de resistência que o contexto político português havia mantido em relação à ascensão ultraconservadora, observada em outras partes da Europa. O principal protagonista dessa virada foi o Chega, partido fundado em 2019 por André Ventura, que defende uma agenda fortemente anti-imigração e nacionalista. A legenda conquistou 58 assentos parlamentares — o mesmo número alcançado pelo histórico Partido Socialista — consolidando-se como uma força política de peso no cenário nacional.
Mais do que o resultado eleitoral em si, chama atenção a forma como o Chega estruturou sua campanha: a desinformação desempenhou um papel central na mobilização de sua base e na construção de sua narrativa política.
O fenômeno da ascensão da ultra-direita suscita preocupações acerca do futuro das democracias liberais ao redor do mundo, uma vez que a chegada desses grupos ao poder vem acompanhada de ataques aos pilares do Estado Democrático de Direito, como o respeito aos direitos fundamentais, a independência das instituições e a liberdade de imprensa.
Somam-se a essas ameaças o receio de que os ideais difundidos por esses grupos, como o negacionismo ambiental e científico, os ataques sistemáticos a minorias políticas, a promoção de pautas antifeministas, anti-imigração, anti-LGBTQIA+, racistas e xenofóbicas, venham a ser transformados em políticas públicas restritivas, reduzindo direitos e colocando em risco liberdades individuais.
Desinformação como método
Nesse contexto, a eleição portuguesa oferece uma oportunidade para compreender melhor a atuação desses grupos e o crescimento de um ambiente informativo deteriorado pela desinformação. A estratégia do Chega baseou-se em repertórios ideológicos comuns à extrema-direita populista, como a dicotomia “nós” contra “eles”, culpando elites, imigrantes e a imprensa pelos problemas do país, além de uma comunicação digital calcada em desinformação, teorias conspiratórias e apelos emocionais.
Monitoramentos como o realizado pelo MediaLab de Portugal indicaram que André Ventura foi o líder partidário que mais veiculou conteúdos desinformativos durante a campanha. A atuação do partido lhe rendeu o apelido de “trompete da desinformação”.
Nas duas últimas eleições, o Chega propagou boatos sobre um suposto envenenamento de seu líder — que, segundo investigações, foi apenas um espasmo esofágico — e alegou atentados contra suas caravanas, posteriormente identificados como estalos de escapamentos de motocicletas. Também foi acusado de manipular dados sobre imigração, fomentando narrativas alarmistas de “invasão migratória” e “ameaça cultural”.
Extrema-direita e desinformação
Ou seja, a relação entre a extrema-direita e a desinformação pode ser descrita como uma simbiose: uma cooperação estratégica em que ambos os fenômenos se alimentam mutuamente e se fortalecem em conjunto.
Essa dinâmica se concretiza, sobretudo, pela exploração dos algoritmos das redes sociais, cujo modelo de negócio — baseado na economia da atenção — favorece a fragmentação do debate público, a criação de bolhas informacionais e a priorização de conteúdos com forte apelo emocional. Atores políticos de extrema-direita utilizam essas plataformas para disseminar desinformação e teorias da conspiração, tanto de forma orgânica quanto patrocinada. Com isso, ampliam de maneira significativa o alcance e a visibilidade de seu discurso.
Em um cenário marcado pela elevada dependência das redes sociais como fonte primária de informação, tais elementos compõem uma tempestade perfeita: intensificam a polarização política, corroem a confiança na imprensa e reduzem drasticamente a resiliência democrática diante da desinformação.
Obviamente, é necessário considerar que, embora o ambiente digital amplifique essas vozes, o crescimento desses grupos também reflete outras questões, como a incapacidade de atores políticos tradicionais de oferecer respostas eficazes a antigos e novos descontentamentos sociais. Neste cenário, a extrema-direita, se coloca como oposição a elite política tradicional, explora ressentimentos e promove agendas antidemocráticas, oferecendo soluções simplistas para problemas complexos.
Algoritmos como agente político
Ainda assim, a tecnologia é um elemento crucial para o modelo contemporâneo de ascensão da extrema-direita e amplificação do cenário desinformativo. Alguns autores têm defendido que a tecnologia deixe de ser compreendida apenas como um ambiente e passe a ser analisada também como um agente político. É o que propõem Fabrino Mendonça, Rafael Almeida e Fernando Filgueiras no livro Algorithmic Institutionalism (Institucionalismo Algorítmico, em tradução livre), que argumentam que os algoritmos atuam como instituições. O resultado é que as sociedades têm, cada vez mais, seu tecido social moldado por camadas sobrepostas de comportamento algorítmico e humano.
Essa compreensão da tecnologia como agente ativo permite aprofundar a análise sobre como a desinformação é potencializada nos ambientes digitais. Se os algoritmos funcionam como instituições, moldando comportamentos e filtrando o que circula no debate público, então a desinformação deixa de ser apenas um conteúdo enganoso para se tornar um mecanismo estrutural que contamina deliberadamente o espaço informacional. O que dificulta a construção de discussões baseadas em fatos e evidências, corrói a percepção coletiva da verdade, satura o ambiente comunicacional a ponto de obscurecer temas realmente relevantes e impede que as pessoas tomem decisões bem fundamentadas.
É como provocar um incêndio: mesmo depois que o fogo é apagado, a fumaça persiste, criando um ambiente saturado onde o instinto de sobrevivência se sobrepõe à razão. Pensar com clareza e agir de forma racional se torna um desafio. Essa “fumaça” informacional cria um cenário caótico em que a dúvida se torna a regra, e não a exceção. Assim, a desinformação não apenas desvia a atenção de questões cruciais, mas mina os próprios alicerces do debate público saudável.
Para enfrentá-la, não basta apagar o incêndio; é preciso também investir em estratégias que dissipam a fumaça. Essas soluções passam pelo restabelecimento da confiança nas autoridades epistêmicas do conhecimento, pelo fortalecimento do jornalismo profissional, pela responsabilização dos agentes que produzem e disseminam desinformação de forma sistemática e pela regulamentação das plataformas. O resgate de um sistema informacional íntegro é essencial para o enfrentamento da ação daqueles que hoje atacam a democracia.