A última região africana pendente de descolonização. Uma área maior do que o Reino Unido, ainda na lista de “Territórios Não Autônomos” da Organização das Nações Unidas (ONU). Um espaço cortado pelo maior muro militarizado do planeta, segunda maior muralha (atrás apenas da Grande Muralha da China), com uma extensão total de 2.700km. O Saara Ocidental, no norte da África, é testemunha de uma longa trajetória de luta pela independência – que já passou por momentos de conflito armado, lobby diplomático e que agora parece ter entrado numa fase que inclui também a espionagem eletrônica.
A espionagem é uma antiga ferramenta utilizada em apoio a estratégias de política externa, muitas vezes, em conjunto com a desinformação. Entretanto, o uso de programas espiões em aparelhos eletrônicos de uso pessoal, sobretudo em celulares de chefes de Estado, tornou-se célebre após as revelações de Edward Snowden, em 2013, acerca do monitoramento de autoridades de diversos países, inclusive das chefes de governo do Brasil e Alemanha – então, respectivamente, Dilma Rousseff e Angela Merkel – por parte da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos. Naquele momento, a denúncia de Snowden levou a um amplo debate na comunidade internacional acerca do tema, tendo sido inclusive adotada uma resolução a respeito pela Assembleia Geral da ONU.
Entretanto, nos últimos dez anos houve, além de um avanço tecnológico nas capacidades de espionagem eletrônica, também uma ampliação dos atores que podem acessar esta funcionalidade. Se, na década passada, o monitoramento eletrônico era controlado por órgãos militares de poucos Estados, hoje há empresas privadas que comercializam o uso destes softwares espiões, o que abre espaço para que sejam disponibilizados para aliados (na mesma lógica da venda de armamentos), sem passar pelo escrutínio de órgãos de Estado, e sem qualquer exigência de transparência à sociedade.
Estas novas características da espionagem eletrônica também dificultam a identificação da origem do monitoramento, uma vez que o software passou a ser utilizado por uma diversidade de atores. Na prática, apenas a empresa que comercializou o aplicativo é capaz de determinar, com segurança, quem são seus clientes e quais são os seus alvos. Contudo, um grande vazamento de dados, em 2021, aliado ao cruzamento de informações, levantou suspeitas sobre alguns dos novos atores que podem estar utilizando programas de espionagem eletrônica. Há indícios de que um deles seja um Estado africano imerso numa guerra ainda sem resolução: o Marrocos, antigo aliado norte-americano e que recentemente se aproximou de Israel, justamente um dos locais em que são desenvolvidas as mais avançadas tecnologias para monitoramento de celulares no mundo.
Entenda o conflito no Norte da África
Fazendo fronteira com o Marrocos, a Argélia e a Mauritânia, e com um litoral de 1.110km banhado pelo Oceano Atlântico, o território do Saara Ocidental foi atribuído à Espanha durante a Conferência de Berlim de 1894-1895. O encontro, apelidado de “partilha da África”, foi marcado por uma intensa disputa entre Estados europeus. Para a Espanha, que já ocupava as Ilhas Canárias, era importante garantir a posse da área continental mais próxima destas ilhas, principalmente em face de uma expansão francesa no Norte e Oeste africanos. Ao final, Madri conseguiu garantir o seu protetorado, sagrando como limite com a região dominada pela França o paralelo 21º20’.
Ao longo do século, a Espanha colonizou principalmente a região litorânea do Saara Ocidental, mas a descoberta, em 1963, de uma importante reserva de fosfato levou a uma interiorização desta ocupação. Na época, contudo, o movimento pela descolonização africana já tinha ganhado força, com muitos Estados independentes – 1963, aliás, é o ano de formação da Organização da Unidade Africana (OUA).
Tanto a recém-criada OUA, quanto a ONU, eram naquele momento instituições importantes na luta pelo fim de práticas coloniais. Com a maior parte das colônias francesas e inglesas na África já eram formalmente independentes, a pressão passou a recair principalmente sobre Espanha e Portugal, cujos governos não sinalizavam para qualquer alteração nas suas respectivas políticas coloniais. Em 1966, a Assembleia Geral da ONU adotou a Resolução 2229 (XXI) que reiterava o direito inalienável do povo saaraui à autodeterminação e recomendava a realização de um referendo, organizado pelas Nações Unidas, para que a população local pudesse decidir sobre a sua situação política.
Paralelamente, no vizinho Marrocos, que havia se tornado independente da França em 1956, movimentos nacionalistas começavam a falar no “Grande Marrocos”, uma área no Magreb que incluiria os atuais Saara Ocidental, Mauritânia, partes do Mali e da Argélia, e que deveria ser – segundo estes políticos – controlada pelo Marrocos. Naquele momento, havia uma intensa disputa política sobre a definição das fronteiras dos novos Estados africanos. Questionava-se se deveriam ser mantidos os limites territoriais traçados pelos europeus ou se novas fronteiras deveriam ser estabelecidas. O risco de fragmentação política do continente, podendo levar a uma escalada de conflitos, acabou fazendo com que as fronteiras já existentes fossem mantidas, mas havia espaço a ser explorado por grupos nacionalistas que reivindicavam expansão territorial, como foi o caso do Marrocos.
Com a demora para a realização do referendo no Saara Ocidental, e em meio ao enfraquecimento do regime de Francisco Franco em Madri, movimentos políticos revolucionários se consolidaram. Em 1973, foi lançada a Frente Popular de Liberación de Saguia el Hamra y Río de Oro, conhecida como Frente Polisario. A pressão da Frente Polisario fez com que a Espanha decidisse iniciar os preparativos para a realização do referendo recomendado pela ONU, começando por um recenseamento da população, em 1974.
O Marrocos, ao ver a possibilidade de que o referendo consagrasse a opção pela independência daquele território (em lugar de uma incorporação ao Estado marroquino), iniciou uma agressiva campanha de sabotagem e ocupação. Em conjunto com a Mauritânia, abriu uma petição na Corte Internacional de Justiça (CIJ), reivindicando a posse daquela área. A partir da negativa da CIJ, cujo parecer reforçou a recomendação de realização do referendo de autodeterminação, o governo em Rabat convocou sua população a marchar em direção ao Saara Ocidental, escoltados pelo Exército e incentivados por benefícios governamentais, no que ficou conhecido como “Marcha Verde”, em novembro de 1975.
Após este episódio e temendo entrar numa guerra, Madri articulou a assinatura de um acordo tripartite – entre Espanha, Marrocos e Mauritânia – que estabelecia seis princípios para o fim da presença espanhola na área e organizava uma administração temporária, compartilhada entre os dois signatários africanos, até que o referendo fosse realizado. Em 27 de fevereiro de 1976, o exército espanhol concluiu sua retirada do Saara Ocidental, levando a Frente Polisario a proclamar a independência da República Árabe Saarauí Democrática (RASD).
Entretanto, a RASD não chegou efetivamente a se concretizar, pois com a saída espanhola os marroquinos e mauritanos ocuparam a região, iniciando um conflito armado contra a Frente Polisario. O uso massivo de violência pelo exército marroquino gerou um exílio de dezenas de milhares de saarauís em direção ao interior e ao sul da Argélia, como no caso dos campos de refugiados em Tindouf. Em 1976, a Força Aérea Marroquina bombardeou algumas das caravanas de migrantes, num episódio de violação de direitos humanos nunca devidamente investigado.
Em 1979, a Mauritânia se retirou da guerra e reconheceu a RASD, mas o conflito com o Marrocos se perpetuou. Alterando a sua estratégia de ofensiva para defensiva, Rabat iniciou a construção de um muro delimitando a área que já controlava: cerca de dois terços do território do Saara Ocidental, incluindo toda a faixa litorânea. A Frente Polisario ficou com o terço restante, em sua maioria desértico. Vencida militarmente, a Frente Polisario passou a investir em uma campanha diplomática: em 1982, a RASD conseguiu ser admitida como membro pleno da OUA, o que fez com que o Marrocos se retirasse da instituição dois anos depois. Em 1991, conseguiu que o Marrocos assinasse um cessar-fogo e que o Conselho de Segurança da ONU adotasse, por unanimidade, a resolução que estabeleceu a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental (MINURSO).
Fonte: Descifrando la Guerra (2020).
Apesar de ter sido um passo importante no reconhecimento da legitimidade do referendo, a MINURSO é a única missão de paz da ONU pós-1978 sem um mandato para monitorar violações aos direitos humanos, o que enfraquece a sua capacidade de exercer pressão para agilizar a organização do referendo. Em 2010, a Frente Polisario rompeu com a MINURSO, alegando que sua morosidade para obter resultados concretos na prática contribuía para a manutenção do status quo. Mais de 45 anos após o início do conflito armado, a situação atual é de uma população saaraui majoritariamente exilada, e de um incremento nos assentamentos marroquinos sobre os dois terços ocupados, o que mudou radicalmente o perfil populacional do Saara Ocidental.
Armas digitais são a novidade no conflito
Tendo garantido a vitória militar, o próximo passo para Rabat passou a ser o reconhecimento internacional da sua soberania sobre o território do Saara Ocidental. Esta meta demandou, além do esforço diplomático, um imenso investimento em lobby. De fato, o Marrocos é um dos países que mais gasta com lobby no mundo. Mas, a partir de 2019, surgiram indícios de que um novo elemento teria entrado em cena: o uso em série de aplicativos espiões com fins políticos.
Os primeiros indícios de que o Marrocos estaria monitorando celulares pessoais indicam que esta espionagem tenha ocorrido em 2019. Naquele ano, aproveitando-se do fato de que o principal parceiro saaraui, a Argélia, encontrava-se em meio a uma forte instabilidade política, Rabat iniciou uma campanha para garantir a legitimidade da ocupação do Saara Ocidental. Uma das principais ações envolvia o estímulo para que seus Estados parceiros estabelecessem missões diplomáticas na área ocupada – o que significava, na prática, reconhecer a jurisdição marroquina sob aquele território. No período de um ano, entre dezembro de 2019 e dezembro de 2020, foram abertos 19 consulados nas cidades de Dakhla ou Laayoune. Nem a MINURSO nem o Conselho de Segurança da ONU se pronunciaram sobre essa política marroquina.
Paralelamente, em outubro de 2019 a Anistia Internacional publicou o primeiro relatório com indícios de que o Marrocos estaria utilizando um software de espionagem da empresa israelense NSO Group para colher informações de pelo menos dois marroquinos: um ativista e um advogado de direitos humanos. Alguns meses depois, outros dois jornalistas investigativos denunciaram ter sido espionados: Omar Radi e Ignacio Cembrero, este último um espanhol especializado em escrever sobre a região do Magreb. Posteriormente, um terceiro relatório da organização revelou mais uma ativista de direitos humanos em cujo celular havia sido encontrado o software espião Pegasus. A vítima, Aminatou Haidar, militante em favor da independência do Saara Ocidental, bem como as características do modo de invasão do seu aparelho, levavam a crer que se tratava de mais um caso de espionagem com origem no Marrocos.
Enquanto corriam as denúncias da Anistia Internacional, o conflito no Saara Ocidental voltava às manchetes. Em 13 de novembro de 2020, a Frente Polisario afirmou que o Marrocos havia rompido o acordo de cessar-fogo firmado em 1991 ao iniciar uma operação para reabrir uma estrada bloqueada no extremo sul do território saaraui, perto da fronteira com a Mauritânia. O governo marroquino, por sua vez, acusou a Frente Polisario de praticar atos de vandalismo, bloquear o trânsito e acossar funcionários da missão da ONU na região, afirmando que o objetivo da operação militar havia sido o de restaurar a livre circulação civil e comercial em direção à Mauritânia. O que para os saarauís era visto como uma agressão e violação do seu território, para os marroquinos era a retomada do controle sobre uma região supostamente em sua jurisdição. Na prática, o cessar-fogo já não seria mais reconhecido.
Em meio a esta reativação formal do conflito, o então presidente Donald Trump, nos últimos dias do seu mandato, divulgou uma nota afirmando que a independência saaraui deixara de ser um horizonte realista para a resolução da questão, e que os EUA passariam a reconhecer oficialmente a soberania do Marrocos sobre todo o território do Saara Ocidental, acatando a proposta marroquina de criar uma região autônoma na zona saaraui. A mudança foi divulgada no mesmo dia em que os EUA anunciaram ter mediado a retomada de relações diplomáticas plenas entre Marrocos e Israel – mais um entre uma sequência de Estados de maioria muçulmana que normalizou suas relações com Israel após intermediação norte-americana (Bahrain, Emirados Árabes Unidos e Sudão haviam feito o mesmo, alguns meses antes).
A proposta de soberania marroquina com autonomia saaraui havia sido lançada por Rabat em 2007 e tinha o apoio tácito da França – que não tinha, contudo, reconhecido formalmente a soberania marroquina, como fez Trump. Para o Marrocos, a “troca” do reconhecimento americano pelo retorno às relações com Israel era vista como vantajosa, apesar do desgaste que poderia causar junto à opinião pública (majoritariamente muçulmana e apoiadora da causa Palestina), pois esperava-se que outros países da União Europeia seguissem o exemplo de Washington. Entretanto, não foi o que ocorreu imediatamente, e mais uma vez o recurso à espionagem digital entrou em campo.
A crise diplomática hispano-marroquina e o monitoramento de autoridades
No dia 21 de abril, o líder da Frente Polisario, Brahim Ghali, foi internado na Espanha com Covid–19, o que gerou uma enérgica resposta marroquina, convocando o embaixador espanhol em Rabat para prestar esclarecimentos. Em seguida, no dia 17 de maio, o Marrocos abriu os postos fronteiriços do Tarrafal e Benzú, que dão acesso a Ceuta (enclave espanhol no continente africano), gerando uma onda migratória de mais de 10.000 pessoas e levando o governo espanhol a convocar o Exército para conter os migrantes, o que acarretou cobertura midiática desfavorável à Espanha e deixou 77 pessoas desaparecidas.
Em meio à crise diplomática, foi publicada uma reportagem investigativa do grupo francês Forbidden Stories, que afirmava que os celulares de Emmanuel Macron, do ex-primeiro-ministro Édouard Philippe e de outros 14 membros do governo francês haviam sido espionados em 2019 utilizando o software Pegasus, da israelense NSO Group. A matéria indicava o governo marroquino como origem dos ataques, mas Rabat negou veementemente as acusações e ameaçou entrar na Justiça – marroquina e internacional – para identificar os responsáveis por divulgar as “alegações infundadas”.
Entretanto, pouco depois o governo espanhol descobriu que autoridades e jornalistas na Espanha também estavam sendo monitorados com o programa Pegasus, inclusive o presidente Pedro Sánchez e a ministra de Defesa Margarita Robles. Ainda que não tenha havido nenhuma acusação formal, o período da espionagem coincidia com o momento máximo das tensões diplomáticas hispano-marroquinas, entre maio e junho de 2021, o que poderia indicar que a origem seria o Estado vizinho africano. Especula-se que tenha sido através da espionagem eletrônica que o Marrocos descobriu a chegada de Ghali para tratamento médico na Espanha, fato que deu início à crise diplomática entre os dois países.
O Marrocos nega veementemente ter feito qualquer tentativa de espionagem. O governo espanhol afirma que não pode confirmar a origem do ataque e que a investigação judicial corre em sigilo. Uma tentativa de abertura de comissão parlamentar de inquérito sobre o caso foi barrada em Madri. A situação, contudo, despertou o interesse do Parlamento Europeu, que ao final de 2022 estabeleceu uma comissão especial de análise sobre o tema.
As revelações dos casos de espionagem instigam o debate sobre o uso político de softwares de monitoramento. Apesar da dificuldade em rastrear os responsáveis pela infecção, é inegável que o acesso a programas espiões pode ter influência direta sobre o resultado de contenciosos em política internacional. Os dados obtidos podem ser utilizados para antecipar posicionamentos de outros Estados, para barrar o trabalho de jornalistas e ativistas, ou até mesmo como forma de chantagem. Assim, acumulam-se evidências do uso de um aplicativo de celular como “arma” militar ou, pelo menos, como ativo diplomático. Tendo em vista o seu alcance e potencial, como devem ser tratados estes casos? A maioria dos Estados já têm regulação prevista sobre a espionagem tradicional, que geralmente implica a penalidade máxima, mas como se deve agir em relação à espionagem digital? Nos casos de uso do Pegasus, a situação se torna ainda mais complexa, pois trata-se de uma empresa privada capaz de decidir sobre quais Estados terão acesso ao seu produto, o que dificulta ainda mais a obtenção de informações. Cabe a organizações internacionais como a ONU e a União Africana promoverem debates sobre este tema, ainda pouco explorado como assunto com profundas implicações sobre a política internacional.