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Pontos de vista

acervo pessoal

dez 4, 2023 | destaques, pontos de vista

A era dos especialistas amadores e nosso viés de confirmação

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Trata-se, efetivamente, de um paradoxo. Numa era em que os consensos sociais têm se tornado artigos cada vez mais raros, surge uma consenso bastante difuso: um dos maiores e mais desafiadores problemas de ordem social, política – e até mesmo sanitária – na atualidade é a chamada desinformação.   

No universo científico, tal problema tem se tornado objeto de investigação por muitas e diferentes frentes interdisciplinares que, definitivamente, extrapolam o campo da comunicação e mesmo das Ciências Humanas. Não faltam artigos científicos publicados por pesquisadores da área de saúde, por exemplo, com o intuito de abordar a relação entre desinformação, comportamentos de risco e problemas sanitários. Na Filosofia, desinformação e epistemologia. Nas Ciências da Computação, os padrões de difusão em rede de tais conteúdos. Na Psicologia, as variáveis de ordem cognitiva que incidem sobre disposições individuais em crer em falsas informações e notícias falsas.

A lista é extensa. A desinformação, onipresente.

Indutor de enganos ou reforço das crenças?

Sabe-se que o termo ainda é um conceito em disputa. Não havendo um consenso sobre sua definição, podemos ficar com duas acepções relativamente úteis: a desinformação pode ser compreendida como informações falsas, distorcidas e mentirosas produzidas com o intuito de induzir ao erro e ao engano. Mas podemos subtrair daí a intencionalidade e ficarmos, simplesmente, com a definição de que desinformação se refere a conteúdos falsos, distorcidos, mentirosos que, efetivamente, induzem ao engano. Ou, talvez, não necessariamente levem ao engano, mas se acoplam a ele.

Para tentar ser mais claro: talvez a desinformação seja menos um indutor de enganos do que aquilo que o indivíduo precisa para reforçar suas convicções prévias e suas crenças. E se essa interpretação estiver correta, talvez esse problema seja ainda maior do que julgam até os mais pessimistas.

Como fartamente documentado em muitos estudos, há uma tendência humana em buscar informações que se adequem às suas crenças prévias e evitar aquelas que as falsificam. No primeiro caso, trata-se do famoso viés de confirmação. No segundo, trata-se do nosso pavor em assistir às nossas convicções serem postas em xeque: a dissonância cognitiva.

E num mundo cuja comunicação deixou de estar centralizada em alguns poucos veículos de comunicação para se apresentar descentralizada em redes digitais com uma infinidade de fontes de informação, o conteúdo que buscamos pode estar a alguns poucos cliques de distância. E, talvez, pouco importaria a justeza e correção da informação. Basta que reverbere as nossas crenças.

Em 2018, muitos jornalistas e articulistas vaticinaram: as fake news deram a eleição a Jair Bolsonaro. Mas será que foi isso mesmo que aconteceu? Os eleitores de Jair Bolsonaro foram induzidos ao engano pela indústria de desinformação que operou em favor do então candidato a presidente? Difícil crer nisso. Basta um teste para desconfiar dessa conclusão: tente enganar um bolsonarista apresentando-lhe uma fake news sobre Jair Bolsonaro. Ou, melhor. Tente convencê-lo com alguma verdade indigesta sobre Jair Bolsonaro. O bolsonarista certamente não acreditará naquela fake news e muito provavelmente não será convencido pela verdade.

Alguns podem argumentar que o exemplo seja inadequado, visto que, muito provavelmente, estamos a tratar de pessoas vinculadas passionalmente a uma liderança política e, potencialmente, radicais em suas posições. Ledo engano. Não são apenas os fanáticos que defendem suas crenças com unhas e dentes e se blindam contra verdade desconfortável. Tente, por exemplo, convencer Bela Gil de que o uso de flúor na água potável e em cremes dentais são seguros para a saúde ou algum usuário de homeopatia de que o suposto fármaco funciona, na melhor das hipóteses, como um efeito placebo.

As relações que estabelecemos com as informações são profundamente mediadas pelos sistemas de crenças que nós forjamos ao longo da vida por meio de nossas vinculações, experiências, filiações e partilhas. Num mundo centralizado em alguns poucos veículos de comunicação, ainda seria possível vislumbrar uma maior uniformidade na opinião pública em relação a determinadas questões e agendas públicas se na imprensa houvesse tais consensos majoritários. Em um mundo de comunicação descentralizada, é virtualmente improvável que ocorra algo do tipo.

Crise epistêmica da democracia

Para complicar um cenário que já não é nem um pouco simples, temos aquilo que alguns tantos autores chamam de crise epistêmica ou crise epistêmica da democracia. Eu gosto, particularmente, de como o visionário Andrew Keen encara esse fenômeno com base na discussão sobre capital social e autoridade em seu livro O Culto do Amador.

Sugestivo, o título entrega a tese central da obra: vivemos a era dos especialistas amadores ou dos amadores especialistas. O regime de distribuição de capital social e autoridade se alterou brutalmente na era das plataformas digitais. O que confere a autoridade a alguém não é exatamente a sua formação e expertise em determinada área do conhecimento por meio de uma formação rigorosa, mas em razão daquilo que se diz e como se é reconhecido por seus seguidores nas redes digitais.

É isso que fez de Olavo de Carvalho um filósofo, os moleques do MBL especialistas em filosofia liberal e economia e médicos que não entendem patavinas do método científico blefarem sobre ciência. O mundo da comunicação ordinária e cotidiana das plataformas digitais criou numerosas redes de distribuição de reconhecimento e autoridade que passa a largo do rigor das especialidades modernas. É mais sobre capacidade de mobilização do que conhecimento.

Tudo isso posto, penso que temos um desafio cujos termos não têm sido, talvez, tratados devidamente. Há muitos esforços para combater a desinformação que partem da premissa de que aos indivíduos faltam habilidades e competências para distinguir verdade de mentira, fato de invenção. Não me parece um diagnóstico razoável. Não faltam consumidores e distribuidores de desinformação com boa formação educacional. Nem são eles consumidores e distribuidores de qualquer desinformação, mas daquela que favorece seus pontos de vista, suas crenças, convicções.

E se esse diagnóstico for mesmo acertado, talvez não estejamos exatamente diante de um problema, mas de uma nova circunstância, de uma nova era que, talvez, tenha apenas dado a régua e o compasso para um traço ontológico da humanidade no que se refere à sua relação com a informação e o conhecimento. E se o problema não é a instrução e a educação, só resta um caminho para lidar com essa desafio: concentrar todos os esforços em formas de regulação dessas plataformas cujo modelo de negócio favorece, evidentemente, a produção de conteúdos social, política e sanitariamente nocivos para a vida coletiva.

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Camilo Aggio

Camilo Aggio é professor no Departamento de Comunicação Social da UFMG e pesquisador credenciado no PPGCOM/UFMG. Faz parte do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD) e é membro do grupo de pesquisa Margem. Vice-coordenador do Grupo de Trabalho de Comunicação e Política da COMPÓS e do GT Fenômenos e Práticas da Política Online da Compolítica.

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