Apesar de 99% dos brasileiros que usam a internet se conectarem pelo celular, chegar no fim do mês com acesso à internet móvel não é, nem de longe, uma realidade para todos. Uma pesquisa divulgada no fim de 2021 pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e pelo Instituto Locomotiva revela que 45% dos entrevistados das classes C, D e E declararam que ficaram sem pacote de dados no celular ao menos em parte do último mês. A internet, para usuários pré-pago das classes D e E, só dura 19 dos 30 (ou 31) dias do mês.
Para o pesquisador do Laboratório de Políticas de Comunicação, Jonas Valente, isso é um reflexo do modelo brasileiro baseado em franquia, em que há a contratação de um número de gigas específicos e um bloqueio por parte da operadora quando é utilizada a franquia de dados completa. “Em muitas operadoras, quando aquela franquia chega ao fim, ou você tem uma queda de velocidade absurda que praticamente inviabiliza o uso você tem o bloqueio daquele serviço”, destaca.
Essa prática dá oportunidade para o crescimento de um modelo guiado pelo chamado zero rating, traduzido livremente como zero tarifa. É um formato que pode se expressar de algumas formas, mas que em geral trata-se da não cobrança do uso de internet para determinados serviços. Ou seja, o uso de determinado aplicativo não é descontado da franquia de dados contratada e, mesmo após o fim dos gigas daquele plano de celular, alguns serviços continuam funcionando, mais conhecido como “apps ilimitados” nos planos oferecidos pelas operadoras. “Como acontece hoje no Brasil? Você contrata um pacote de uma operadora e ele vem com WhatsApp grátis, Deezer grátis, Instagram grátis e, mesmo quando a sua franquia acaba, você continua acessando”, explica Valente.
A pesquisadora do Lapin, Júlia D’Agostini, aponta que esse modelo é colocado como um brinde para o usuário e destaca que há um argumento positivo sobre a questão que indica que dessa forma pelo menos o usuário teria a oportunidade de continuar conectado ainda que não possua mais franquia disponível. “Só que essa visão contraria questões fundamentais da governança da internet e, apesar de viabilizar realmente algumas soluções, deixa de lado muitas questões e principalmente tira do usuário a autonomia de escolher o que ele quer e o que ele pode acessar em uma internet aberta e global”, coloca D’Agostini.
A Conexis Brasil Digital, que reúne as empresas de telecomunicações e de conectividade, informou, por nota, que “as prestadoras de telecom reafirmam entendimento, já expressado pelo Ministério das Comunicações, Anatel, Senacon e pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.Br), de que a tarifação zero por escolha da prestadora não afronta a garantia da neutralidade da rede, e não faz violações a práticas consumeristas”.
A pesquisadora Júlia D´Agostini destaca que existem experiências em que o zero rating é respaldado em nome de uma situação específica. Na pandemia, por exemplo, o uso de alguns aplicativos de saúde pública não foram cobrados pelas operadoras. Da mesma forma, nas eleições de 2020, o Tribunal Superior Eleitoral firmou parceria com operadoras de telefonia para que o acesso ao site da Justiça Eleitoral não fosse debitado na franquia de dados durante o período.
Zero rating e desinformação
Porém, um dos principais problemas que os pesquisadores apontaram em entrevista ao *desinformante é a privação do consumidor que utiliza um plano de telefonia móvel com essas características. Valente destaca uma autocensura dos usuários, o que foi revelado na pesquisa do Idec, para o uso de serviços que não estão enquadrados naqueles de tarifa gratuita. “Essa é uma pesquisa histórica que mostra como de fato ocorre isso, em que a pessoa vai regular, vai começar a segurar o consumo de tudo aquilo que não é zero rating. Isso significa que essa pessoa vai entrar menos em sites jornalísticos, pode fazer menos pesquisas no Wikipedia”.
D’Agostini também aponta para a importância de se pensar o acesso à internet como um direito universal e essas questões afetam o direito ao acesso à informação e ao conhecimento. “O cenário que a gente tem hoje no Brasil de acesso à internet é um cenário excludente”, reforça a pesquisadora, visto que a parcela mais pobre da população tem um acesso restrito.
Essas restrições, além da autoprivação, apresentam dificuldades para uma informação de qualidade quando a franquia acaba. Em um exemplo prático, quando os dados móveis do usuário acabam, ele fica de certa forma preso ao que recebe de conteúdo em aplicativos de mensagem ou redes sociais que fazem parte do pacote. Porém, além de não conseguir ler o conteúdo completo que às vezes está em um link externo, também não consegue verificar determinada informação para saber a veracidade dela.
“Em que pese algumas operadoras incluírem serviços noticiosos em suas ofertas de planos, na maior parte estas são em vendas casadas, impedindo que usuários de mais baixa renda adquiram estes recursos adicionais. Após o fim das franquias, a situação fica ainda mais problemática com a restrição de qualquer experiência online a essas aplicações, o que impede a possibilidade de recorrer a procedimentos básicos de checagem. Desta forma, a combinação franquia + bloqueio + práticas de precificação diferenciada torna-se combustível para a disseminação de desinformação”, destaca o Idec.
Neutralidade da rede
Outro ponto que merece destaque quando se fala em zero rating é o fato de a prática violar o princípio chamado neutralidade da rede, estabelecido no Marco Civil da Internet. A norma indica que deve-se “tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”. Para os pesquisadores entrevistados pelo *desinformante, a prática mencionada viola este princípio. No entanto, como explica Jonas Valente, o órgão regulador Anatel avaliou a situação e decidiu que não há essa violação.
“Como pesquisadora, eu e diversos diversos profissionais, entendemos que há uma violação da neutralidade de rede porque a discriminação do tráfego deveria ser uma medida excepcional e baseado em algum fundamento legal, então a partir do momento em que o acesso à internet é bloqueado e a gente tem uma oferta de acesso só a determinadas aplicações a gente tem sim uma violação desse princípio da neutralidade de rede”, explica Júlia D’Agostini.
Além da neutralidade, os pesquisadores apontam para um problema de concorrência e privilégios nos acordos comerciais. “Isso reforça a cultura de uso dessas aplicações, reforça o poder de mercado delas e dificulta que novas aplicações consigam entrar no mercado exatamente porque elas não conseguem ter recursos suficientes para fazer esse tipo de acordo comercial”, explica Valente.