No encerramento deste mês de março, em que se dedica espaço para debater as lutas das mulheres, parte da nossa equipe – Ana d´Angelo, João Brant e Paula Campos – entrevistou a jornalista, mestra e doutoranda em Políticas Públicas pela UFRGS, Manuela D’Ávila. Manu foi vereadora em Porto Alegre, deputada federal e estadual pelo Rio Grande do Sul e candidata à vice-presidência do Brasil, em 2018, e à prefeitura de Porto Alegre, em 2020.
Nossa entrevistada também é uma das escritoras de “Sempre foi sobre nós”, que traz relatos de violência política de gênero e será lançado nas próximas semanas pela editora Rosa dos Tempos. É autora dos livros “Revolução Laura”, “Por que lutamos?” e “E Se Fosse Você?” e é fundadora do Instituto E Se Fosse Você?, criado para combater as fake news e redes do ódio.
De vítima de fake news, desde 2014, à estudiosa do tema atualmente, Manu conversou sobre feminismo e desinformação e de como as mulheres são alvos preferenciais do discurso falacioso e de ódio. A violência política contra mulheres na política precisa ser desnaturalizada com urgência e Manu é uma porta-voz emblemática desta causa.
Transformou a hostilidade das redes em seu material de pesquisa e os canais digitais em potentes formas para comunicar, denunciar violências contra as mulheres e instruir a militância. O diálogo passa até pelo Judiciário brasileiro, onde ela levou a proposta de maior celeridade para julgar as fake news.
“Porque são oito anos, pelo menos desde 2014, que eu vivo assim, o Jean (Wyllys) desde um pouco antes. Mas a gente sabe que nós somos os alvos preferenciais, que nós fomos o laboratório da distribuição de um tipo de política de comunicação que sustenta a extrema-direita no mundo e no Brasil”.
Acompanhe abaixo a entrevista, em que ela aponta soluções possíveis para o problema da desinformação:
Paula Campos: Manu, recentemente você fez um relato no Twitter, contando de algumas fake news que você sofreu em 2014. Na semana passada você recorreu também ao Instagram, fez um post contando de algumas violências sofridas por você e pela sua família. Usar as redes sociais para trazer à tona essas histórias, para além de medidas judiciais cabíveis, têm sido uma boa estratégia?
Manuela d´Ávila: A gente não expõe nas minhas redes o conjunto nem de fake news e nem de violências das quais eu sou alvo. A gente eventualmente publiciza alguma vitória judicial ou sistematiza, como eu fiz aquele dia, com algum recorte. Naquele dia era exclusivamente sobre sentir medo, já que o Arthur do Val está morrendo de medo, conjunto de consequências relacionadas às fake news. A gente não faz isso, porque é simplesmente impraticável, ou seja, se eu começar a falar sobre as violências que eu sofro por causa das fake news ou sobre as fake news que são distribuídas e reaquecidas sistematicamente, eu vou só falar sobre isso. Só para vocês terem uma ideia, nos últimos 30 dias, numa semana, a gente foi alvo do presidente da República, na semana anterior da Carla Zambelli, e na posterior do Velho da Havan. Em três semanas três grandes players do outro lado. E muita gente ignora, mas eu não tenho mandato, né? Então eu sou alguém que trabalha, que desenvolve uma atividade profissional, que faz o meu doutorado, que escreve, e que mantém uma mínima organização das suas redes porque são um espaço importante de disputa política. E mesmo que eu não tenha mandato, eu sou alguém que segue acreditando na disputa e na luta política. Mas tentando responder de maneira mais abstrata, não relacionada só a mim, mas relacionado à estratégia em si de usar as redes, eu acho que as redes têm menos o papel de resposta, porque quando a gente publiciza nas minhas redes, eu não atinjo as pessoas que são atingidas pelas redes bolsonaristas. Tem mais o poder de instruir a nossa militância em temas, por exemplo, como o tema do incesto, porque disseram que o PCdoB tinha um projeto que autorizava o incesto. Então, assim, tem um poder de instruir as nossas pessoas e tem um terceiro elemento, que eu acho muito importante que é fazer as pessoas terem alguma ideia do que é a nossa vida, a vida das pessoas que são os alvos prioritários das fake news. Porque são oito anos, pelo menos desde 2014, que eu vivo assim, o Jean (Wyllys) desde um pouco antes, mas a gente sabe que nós somos os alvos preferenciais, que nós fomos o laboratório da distribuição de um tipo de política de comunicação, que sustenta a extrema-direita no mundo e no Brasil. Quando a Laura sofreu as ameaças de estupro e eu publicizei num outro contexto, que não era nem o contexto de falar sobre isso, eu comecei a receber uma ofensiva de solidariedade que me incomodou, por quê? Porque eu dizia assim: “gente, tudo bem, vocês não sabiam que era assim? Vocês não tinham ideia de que eu vivo assim desde que ela nasceu? Vocês acham o quê? Uma vez a agrediram com 45 dias, que depois virou tudo paz e amor?”. É por isso que tem gente que até hoje acha que o Jean sair do Brasil foi uma frescura ou foi uma fraqueza ou foi um traço de um comportamento dele. Claro que foi um traço do comportamento dele diante de uma violência sem fim que ele sofreu. O Felipe Neto apagou, naquele episódio que o acusaram de pedófilo, se eu não me equivoco, 1400 perfis. O Jean bloqueou, nos anos iniciais dos mandados dele, quando ninguém sabia o que era fake news, 400 mil perfis no Facebook. Vocês entendem a dimensão? Uma fake news a meu respeito, na eleição, que a gente conseguiu bloquear, que era aquela do Adélio, quando a gente conseguiu ganhar na justiça já tinha atingido 13 milhões de pessoas, as pessoas não “desveem”, né? Então tem o sentido de instruir nossa turma e tem o sentido de fazer, assim: “gente, percebam que as consequências disso são muito grandes para a democracia e para as pessoas que ousam fazer política enfrentando isso”. Não por nada, aumentam as crises do Bolsonaro, eu volto a ser o alvo, porque eles têm um recall muito grande de mentiras ao meu respeito, isso eu me dei conta nas eleições de 2020. Eu já era a que ligou para o Adélio, eu já era a que defendia o kit gay, eu já era a que defendia o abuso sexual de criança, eu já era maconheira, eu já tinha tatuagem do Che, eu já tinha tatuagem do Lenin, né? Tudo isso está contido no imaginário social, então eles reaquecem isso e colocam mais um pontinho na frente.
Ana d´Angelo – Você falou, por exemplo, “quando o vídeo sai do ar, o estrago já está feito”. O Youtube agora anunciou umas medidas para tirar conteúdo nocivo, mas das eleições passadas. A minha pergunta é: a gente vai estar sempre enxugando gelo? A rapidez do reparo ou da moderação sempre vai ser menor do que a potência daquela campanha desinformativa? E outro ponto é sobre essas fake news que estão sendo requentadas, um entrevistado nosso falou sobre uma foto sua com a camisa “Jesus é travesti”, uma montagem que voltou a circular. O que a gente aprendeu, no final das contas, de 2018 para cá, para ter uma reação e resolver esse problema de uma maneira mais efetiva?
Manuela D´Ávila: Eu sou muito pouco otimista com relação a isso. Eu acho que a gente aprendeu muito pouco e continua responsabilizando as vítimas pela violência e não nos dando conta que, se nós tirarmos essas vítimas de cena, novos alvos surgirão. Eu tenho uma vida absolutamente transformada pelo conjunto de mentiras que são ditas e repetidas a meu respeito nesse último período. Mas, ao mesmo tempo, eles não miram em mim por acaso, né? Em toda a região Sul do Brasil, a única pessoa que lidera a pesquisa majoritária sou eu. As mulheres votam em massa no nosso campo político, se eles aniquilam essas lideranças mulheres que surgiram e que surgem, é mais fácil tentar resgatar uma parte desse conjunto do eleitorado. É dificílimo calcular dano, até do ponto de vista material, quando vai indenizar, o Judiciário tem essa dificuldade, porque o dano é algo subjetivo, além da objetividade ele é também subjetivo. Mas a gente sempre dizia assim: não adianta a gente não ganhar o direito de resposta no JN de uma mentira. Então qual era uma das métricas do Judiciário? Era dizer o seguinte: “bom, o Bonner falou durante um 1min53s que o Brizola era um ladrão? O Brizola tem 1min53s para dizer que não era”, no caso não era o Bonner, era o Cid Moreira. Esses dias eu conversei com o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, com o ministro Fachin, e com o ministro Alexandre de Morais, e eu disse isso para eles: “olha, existe um problema que vocês precisam nos ajudar a enfrentar e esse problema se chama a velocidade do Poder Judiciário. Os humanos não conseguem competir com as máquinas, só que eles podem melhorar muito a sua performance”. Então a gente precisa de um Judiciário julgue com agilidade o impacto das fake news. Eu não perco as ações, eu perco as eleições, só que os meus adversários ganham um troféu muito grande, porque eles já levaram a eleição. Então o que interessa o número de ações que eu ganho ou ganharei contra o prefeito de Porto Alegre? Ele não conseguiu tirar votos meus, ele conseguiu fazer com que uma parte imensa da população não fosse votar porque as fake news aumentam o número de pessoas que decidem não se envolver ´nessa baixaria que é a política´.
Então, um, o elemento da velocidade, e, dois, o compromisso das plataformas com o enfrentamento à desinformação e ao ódio. Porque as plataformas ganham dinheiro com o ódio, com o compartilhamento de notícias falsas, o Twitter já admitiu publicamente, mas, na prática, o que eles dizem não entender é bastante é óbvio para quem trabalha com tecnologia. Se publicarem uma foto minha na década de 1990, num congresso da UNE, vai ter lá um olho meu na foto, o Facebook passa o leitor de identidade dele e vai descobrir que o olho é o meu, mesmo que só tenha um olho no canto da página. Então eles também conseguem identificar, por exemplo, as notícias falsas.
Então a gente precisa entender o impacto disso na democracia brasileira e global. É patético a gente achar que 2022 vai ser melhor que 2018. Vejam bem, eu achava, quando eu aceitei disputar em 2020, que ia ser muito mais fácil que 2018, porque eu pensava assim: “nossa, eu disputei 2018 contra o Bolsonaro, o que vai ser pior que isso?”.
João Brant: Fala um pouco então de 2020, Manuela? Isso que eu queria te ouvir.
Manuela D´Ávila: 2020 me atropelou, entende? Então, assim, a gente precisa de velocidade no Judiciário e de.pressão política sobre as plataformas para que elas também tenham responsabilidade, não apenas sobre identificação de notícias falsas, porque isso não serve, mas da retratação da honra que eles ganharam dinheiro ajudando a destruir.
João Brant: Manu, a interpretação de boa parte dos analistas sobre 2020 foi de que ela tinha sido muito melhor do que em 2018, do ponto de vista de fake news, e que isso mostrava que estávamos num bom caminho. A gente levantou naquele momento vários questionamentos dizendo: “olha, onde a máquina da extrema direita se organizou de maneira estruturada e coordenada para atuar, ela causou estragos bastantes significativos”, e o principal exemplo era justamente a campanha de Porto Alegre. Que elementos você pode trazer que ajudam a iluminar o que foi a eleição de 2020 para a prefeitura de Porto Alegre em relação a fake news?
Manuela D´Ávila: Primeiro, eles têm um sistema poderoso de distribuição de desinformação que está sendo nutrido permanentemente com dados novos. Mesmo com a nova lei geral de proteção de dados. Eles têm uma combinação entre virtual e real, o território tem um papel para eles. Eles têm uma capilaridade territorial muito vasta, sobretudo a partir de dirigentes dos núcleos das igrejas evangélicas. Porque nunca foi só a fake news, João, é um sistema. Um sistema que tem fake news, que tem omissão da imprensa, participação e/ou omissão da imprensa. A imprensa viu o que acontecia comigo em Porto Alegre e não falou nada, isso também é um papel ativo. Eles trabalham com dados ultra minerados, cada vez mais.
Eu lembro que o último ato de rua que eu fiz no primeiro turno, eu recebi, na hora que eu estava no carro, indo para o extremo sul da cidade, um vídeo de eu sendo presa. Eu nunca fui presa, não é um vídeo reeditado, é um vídeo montado, um vídeo- reportagem, que é uma das formas que eles atuam, simulando falsas reportagens. Nós sabíamos que ele era amplamente compartilhado pelo Whats e a turma do Whats, mesmo com a disposição, não identificou disparo em massa. Não melhorou do ponto de vista nu e cru, o que faziam em 2018 fizeram em 2020.
Vocês acham que é pouca coisa a base de dados que a Havan tem com o seu cartão próprio? Só para dar um exemplo, assim, de algo que tem essa nuvem em cima. E aí é uma outra tecnologia, que não é relacionada às fake news, mas que é relacionada ao ódio que é sempre associado à desinformação, porque a gente está falando de desinformação e nunca é só desinformação, é desinformação e ódio, desinformação e preconceito. Se a gente acha que machismo e racismo estruturam a sociedade brasileira, se você não está combatendo e enfrentando ativamente, como nos ensina o professor Silvio Almeida, você está alimentando. Quando a Angela Davis diz: “não dá para ser só não racista, tem que ser antirracista”, é porque não existe ponto de neutralidade nisso. Então nós temos uma sociedade brasileira com o ódio às mulheres e o ódio aos negros e negras, para usar dois exemplos, muito mais agudizado, muito mais incrementado do que nós tínhamos em 2018, pelo simples fato de que essa gente passou o dia inteiro alimentando algo que nós sabemos que estrutura as relações do nosso país. Todas as novas lideranças são alvo de ameaça de morte, de um conjunto de mentiras, que legitimam determinadas violências. É impossível pensar bolsonarismo sem pensar em ódio às mulheres, e na gênese do bolsonarismo existe desinformação e mentira, né? Mas a intersecção entre ambas virou a tecnologia central em 2020. E aí, claro, não é que eles usam o exemplo de Porto Alegre, é que quais foram as capitais que a gente teve competitividade.
A revista AzMina computou e de 100% da violência que aconteceu nas redes, 95% foi contra mim e 5% foi contra todo o restante das mulheres candidatas. Então ou a gente consegue entender qual é o lugar que a desinformação e o ódio, ou os ódios ocupam como tecnologias para operar a política ou a gente é capaz de derrotar o Bolsonaro e continuar refém disso, né?
Ana d´Angelo: Tem uma crítica, não sei se tão recente, que de certa forma a esquerda, com as pautas identitárias, teria perdido um pouco o bonde da história. A gente está falando de redes, mas aí eu estou falando de ter deixado de atingir uma parcela maior de classe C e D nessas eleições de 2018 e 2020. Eu acho também que tem uma crítica à linguagem, que seria uma linguagem hermética, uma linguagem psolista, mais fechada, e que as pessoas não se sentiram representadas. O que você pensa dessa crítica?
Manuela D´Ávila: Ana, quando eu concorri a primeira vez a vereadora, no ano de 2004, eu tinha 22 anos, usei uma foto minha sorrindo, de perfil, e eu cumprimentava as pessoas na televisão que nem eu cumprimento, que é “E aí, beleza, eu sou jornalista”. Eu me neguei a gravar um programa sem dizer “bom dia, boa tarde ou boa noite”, porque é o mínimo. E eu fui ridicularizada porque as pessoas que me ridicularizavam são mais velhas que os meus pais. O meu nasceu em 1955, certo? Eu sou uma senhora de 40 anos, certo? E sou o que de mais moderno, junto com outras pessoas da esquerda da minha geração, nós temos na internet. Acho que a nossa turma precisa entender que o meu avô achava ridículo homens de brinco, entende? Existem transformações que são geracionais e é natural que essas transformações geracionais impactem setores diferentes. E elas passam sobretudo por linguagem, comportamento.
E há uma reafirmação, o Silvio Almeida fala isso naquele livro O Racismo Estrutural. “Sempre quem tece essa crítica, dizendo que mulheres que lutam são identitárias, que negros e negras que lutam são identitários, é alguém que faz isso reafirmando a sua própria identidade de homem branco”, ponto. Eu acho que a incapacidade de entender a complexidade do processo de desinformação fez, por exemplo, que um amplo setor da esquerda, que atravessa partidos distintos, descaracterizasse o “Ele Não”, só para dar um exemplo. A tal da Frente Ampla já aconteceu no “Ele Não”, tinha as mulheres do Amoedo, as do Boulos, as nossas, todas juntas, as do Ciro, contra Bolsonaro, já era amplo e era politizado.
O que nós temos que transformar é o movimento de mulheres num movimento que dê conta de mais respostas para as mulheres brasileiras. Mais de 50% das mulheres brasileiras que são mães de crianças pequenas, como eu, não trabalham, porque não tem creche nesse país. Essa é uma pauta do movimento de mulheres, é a economia de cuidados. Agora, tentar dizer que a desigualdade brasileira não tem nada a ver com a luta antirracista é de uma desonestidade ou de um desconhecimento profundo, só tem duas alternativas, certo? Porque se ciências sociais fossem laboratório, se a gente isolasse a questão de classe social… eu sou marxista, então vamos lá, são conceitos clássicos, para não falar de identidade, vamos lá. Se a gente isola num laboratório a classe, como que a gente consegue explicar que, isolados no laboratório, um homem branco e uma mulher negra recebem salários absolutamente distintos? Para ficar em parâmetros, conceitos absolutamente clássicos, me explica como, qual é a razão? Mesmo trabalho, mesma formação, por que o mecanismo de exploração opera diferente? O que explica que a sociedade brasileira entenda como violência a ameaça à minha filha branca e não entenda como violência a execução de uma menina indo para o balé de uma comunidade pobre do Rio de Janeiro? Porque entender como violência é parar o Brasil, se não parou não entendeu como violência. Se fosse a minha filha teria parado, a gente sabe do que eu estou falando. A minha filha é uma menina branca, filha de uma mulher branca. Então esses são temas centrais. Veja bem, para mim são dois temas diferentes: um tema é linguagem, internet, outro tema são novos movimentos que surgem. Nós temos experiências riquíssimas, como é o caso do Chile, como é o caso da Espanha, o caso de Barcelona é uma experiência transformadora, de novas agendas conectadas com o mundo do trabalho, com o território e com as redes. Ah, bom, mas o problema de a gente estar ausente dos territórios é da internet? O problema de deslocamento dos territórios é um problema do nosso campo, não é um problema de quem está na luta na internet. E vejam que a internet pode ser uma parceira interessantíssima para a relação com os territórios – o Bolsonaro fez isso em 2018, ele não tinha nenhuma penetração territorial, não tinha um partido nacionalizado, e a partir de uma organização de dinheiro e de informação fez organização territorial. E o tema da linguagem é um tema que a gente vai ter que encontrar um equilíbrio, porque também tem que ser natural, como tudo na vida.
João Brant – Manu, eu queria te ouvir sobre soluções e saída possíveis. A gente tem buscado explorar essa questão e no fundo a gente fez um mapa de nove ou dez saídas possíveis, justamente para sair um pouco da lógica de que tem bala de prata, mas também para sair da lógica de que não tem solução. Então você tem trabalhado nisso, você fala de um lugar de quem já pensou isso como vítima, como estudiosa, como legisladora, enfim, dedicada a enfrentar esse tema. Se você tivesse que citar os principais pontos, os principais caminhos, onde estão essas saídas?
Manuela D´Ávila: Um, eu acho que é evidente que ainda nos falta um regramento mais claro com relação às plataformas no Brasil. A gente sabe que é altamente complexo, e eu vivi essa experiência lá atrás, já no Marco Civil da Internet, antes disso ainda com os resquícios da CPI do Google, que gerou o AI-5 Digital, quer dizer, a gente está falando de processos que vieram lá de trás, de formulação de legislação na internet. Hoje a gente tem o deputado Orlando Silva, que tem virado aquela pessoa que constrói as pontes dentro do Congresso. E tem tentado fazer isso com um regramento sobre fake news. Mas o fato é que existe pouca regra, existe pouca disposição das plataformas e as plataformas funcionam na base de pressão, porque o negócio dele é movido à violência e à mentira. Porque é movido a cliques e o que gera os cliques é isso. Então, assim, ninguém age contra o seu negócio espontaneamente. Isso é da natureza do capitalismo. Eles não são filantropos, são empresas que ganham dinheiro assim. Então o tema das regras eu vou sintetizar dizendo que eu acho que os caminhos que o Orlando tem construído são caminhos importantes, de síntese e de médias do que se é capaz de construir num Brasil governado por Bolsonaro. Dois, fiz esse apelo aos ministros do STE, é preciso sensibilizar o Judiciário com relação à velocidade das ações e o impacto do mal no processo eleitoral, ou seja, o Judiciário não pode estar aí para mitigar moralmente os impactos que nós sofremos individualmente, quando quem é lesado não somos nós individualmente apenas, mas a democracia brasileira. A minha vida não é destruída porque eu escolhi ser escritora, eu sou alvo disso porque eu represento alternativas distintas na política. Então se alguém que quer viver a política tem que ser vítima de violência necessariamente no nosso país, algo há. E não se trata de uma indenização pecuniária individual o que vai resolver isso. Três, eu acho que nós precisamos investir em tecnologia do bem, contra os robôs do mal, robôs do bem. Então nós ainda temos uma capacidade muito diminuta, muito centralizada, ainda muito na mão de poucos, digamos assim, capazes de identificar rapidamente ataques que são feitos à honra de pessoas com interesse político. Em geral, as avaliações são feitas depois: “ah, em tal ataque à Manuela, 50% era robô”. Mas a gente não tem instrumentos que consigam rapidamente, e de maneira ampla e democrática, fazer com que todas as pessoas que operam na internet e que possam ter interesse, que elas recebam essas informações. Eu acho isso bastante preocupante porque a gente está sempre reagindo a ataques. A gente aqui no instituto já tem uma certa expertise, a gente já sente o cheiro, já conhece o método deles. Mas isso não pode ser assim, entende, gente? Não estou falando de mim, estou falando de eleições, estou falando de temporadas que são rápidas, uma eleição dura 45 dias.
Eu deposito todas as minhas fichas, para além disso, em a gente garantir internet de mais qualidade para o povo. Vocês sabem que eu estudo isso agora no doutorado, moderação de conteúdo e acesso à internet, fake news. Mas eu acho que a gente tem uma visão equivocada de que a internet é a responsável pela crença nos conteúdos de desinformação, quando, na realidade, a baixa qualidade da internet do povo brasileiro é uma das responsáveis. Ou seja, mais internet, acesso à internet de mais qualidade pode fazer com que as pessoas tenham mais capacidade de checar informações, de pesquisar. Agora, as pessoas têm as tarifas zero rating, elas têm ali aquelas porcarias no WhatsApp que elas recebem, elas clicam no link, gente, não interessa que o link vai mandar para um lugar que a notícia não é falsa, como muitas vezes é.
Então nós precisamos garantir, isso devia ser ponto central no programa do presidente Lula, nós precisamos garantir internet de qualidade como um direito, direito humano fundamental, não ser refém do que as pessoas querem que você consuma na internet. A internet é nossa máxima, a ideia de que ali os conteúdos navegam livremente. E hoje o povo brasileiro é submetido a um conjunto de interesses econômicos que na prática afetam a ideia da neutralidade de rede. Aí com isso eles não têm liberdade de consumir conteúdos bons. E a sexta questão, acho que nós deveríamos nos espelhar no exemplo da Finlândia, nós precisamos conscientizar as pessoas sobre como funciona a internet, sobre como buscar informações, como checar notícias, como identificar clickbait, como conhecer fontes confiáveis. Quando a gente é criança, eu tenho uma filha pequena, a gente não sabe atravessar a rua, a gente não entende o código de trânsito, a gente olha ali e qual é o maior perigo de uma criança perto de uma rua? A criança vê a bola e não pensa que o carro está vindo, ela vai atrás da bola com tudo, tem muita criança que morre assim. A internet é mais ou menos parecida com isso, a gente é treinado a aprender que existe sinal, que o vermelho é para parar o carro, que é o verde é para andar, que o de pedestre tem um desenho, que quando a gente aperta o botão dá para ir na faixa de pedestre. A gente precisa ensinar isso, é o letramento midiático digital. Acho que isso é fundamental porque 67% das pessoas não sabem o que é fato, o que é opinião. A gente precisa fazer um amplo programa de letramento midiático e digital.
Eu tenho que desmentir coisas óbvias ao meu respeito. Essa do “Jesus é Travesti”, eu dei uma entrevista em Portugal um dia e o jornalista me disse assim: “pois não sabes, fiquei horas a te defender na minha família, porque que mal tem que usaste a camisa de Jesus é Travesti?”. Ele estava me defendendo na casa dele de uma camiseta falsa. Um jornalista, certo? Porque ele nunca se deu ao trabalho de checar, ele não se deu conta, um jornalista de um jornal grande português. Ele não se deu ao trabalho de ver que era uma foto compartilhada sem um remetente, era um print de onde? Será que ele não podia botar um pouquinho mais perto? Isso não é um problema que atinge só as camadas populares, como muitos setores sociais, de maneira elitista, deduzem. Esse é um problema que atinge a todas as camadas sociais, a todas as classes sociais, e atinge, diferente do que presumem, mais aos mais velhos do que aos mais jovens. E os mais jovens nesse caso precisam ser letrados para ensinar aos mais velhos. O meu pai passou a usar cinto de segurança, porque eu fui a criança que encheu o saco dele em defesa do cinto de segurança e de não jogar o lixo pela janela do carro, todas as pessoas de 40 anos me entendem. O papel das crianças e dos adolescentes na transformação dos mais velhos, sobretudo em assuntos que os mais novos têm mais capacidade de saber, é fundamental. Todas as pessoas aprendem com as pessoas que sabem mais e é por isso que a gente precisa instruir as nossas crianças e os nossos adolescentes.