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Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Eleições argentinas: Milei amplia poder no Congresso em meio a ondas de desinformação

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
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A vitória expressiva da extrema-direita nas eleições legislativas de domingo (26) redesenhou o mapa político da Argentina e ampliou o poder do presidente Javier Milei no Congresso. O partido governista La Libertad Avanza e suas legendas aliadas conquistaram 49 das 127 cadeiras em disputa na Câmara dos Deputados, o equivalente a mais de 40% dos votos válidos, e 13 das 24 cadeiras no Senado, elevando sua representação para 19 parlamentares.

O resultado, considerado surpreendente por analistas e pesquisas de opinião, garante a Milei maior margem para avançar em suas reformas econômicas e conter a derrubada de vetos presidenciais.

Mas o pleito também ficou marcado por outro fenômeno: a intensificação da desinformação eleitoral, especialmente com o uso de conteúdos gerados por inteligência artificial (IA). Vídeos falsos, montagens e deepfakes circularam amplamente nas redes sociais, simulando falas de políticos e candidatos.

Manipulações com IA e o uso político da desinformação

Um dos casos mais emblemáticos ocorreu durante o fim de semana eleitoral, quando um vídeo falso mostrou Jorge Taiana, líder da chapa da coalizão Força Pátria para a Câmara dos Deputados da Província de Buenos Aires, anunciando a retirada de sua candidatura. O conteúdo, criado com IA, era completamente falso, mas se espalhou rapidamente, alimentando boatos e confusão entre eleitores às vésperas da votação.

Caso parecido ocorreu às vésperas da eleição legislativa na cidade de Buenos Aires, em maio deste ano, quando vídeos falsos do ex-presidente Mauricio Macri e da deputada Silvia Lospennato – ambos aliados do partido opositor – foram divulgados anunciando falsamente a retirada da candidatura de Lospennato e em apoio a um correligionário de Milei.

“Esses vídeos circularam em contas de pessoas próximas ao próprio presidente Milei nas redes sociais, na noite anterior à eleição”, explica Lucía Wegelin, coordenadora do Laboratorio de Estudios sobre Democracia y Autoritarismos (LEDA), da Universidade Nacional de San Martín.

Segundo a pesquisadora, o episódio pode ser considerado “o mais grave caso de desinformação”, justamente por atribuir à candidata falas que ela nunca pronunciou. Wegelin ressalta ainda a complacência do presidente Javier Milei e de sua base política, que teriam reagido afirmando que “essas são as regras do jogo hoje e que não há outra opção senão se submeter a elas”.

Para Matías Di Santi, diretor de Mídia do Chequeado – principal veículo argentino de checagem de fatos -, o cenário representa um desafio crítico: “A crescente dificuldade de distinguir o que é autêntico do que é artificial erosiona a confiança pública e alimenta um clima de ceticismo generalizado em relação a qualquer tipo de informação”, afirmou.

A onda de desinformação eleitoral

Os episódios de desinformação que marcaram as eleições legislativas argentinas reacendem o alerta sobre o uso político da inteligência artificial generativa (IAG) na América Latina. A preocupação é ainda maior em um país que já vinha experimentando essa forma de manipulação desde 2023, quando o The New York Times classificou as eleições argentinas como as primeiras no mundo a registrar o uso em massa de IA com fins eleitorais.

Entre os casos verificados, o Chequeado identificou um vídeo manipulado com técnicas deepfake que viralizou nas redes sociais mostrando o ex-presidente Mauricio Macri (2015–2019) pedindo votos para o partido Provincias Unidas, em vez de sua aliança política La Libertad Avanza y Propuesta Republicana (LLA–PRO), “devido a divergências com o presidente Milei”. 

Outro exemplo de desinformação apurado pelo Chequeado envolveu supostas fotos de cartazes da candidata Caren Tepp, do partido Fuerza Patria, em Santa Fé. As imagens traziam frases manipuladas, como “Parem Milei” e “Desapropriem todos os campos”, mas se tratavam de fotomontagens. O texto dos cartazes reais havia sido alterado digitalmente antes de circular nas redes.

Em meio a um ambiente de forte polarização, essas narrativas se espalharam com rapidez e ampliaram a confusão entre eleitores, dificultando a distinção entre o real e o falso.

Em entrevista concedia ao *desinformante, pesquisadores da Equipe de Pesquisa Política (EDIPO), também membros do projeto RADAR (Registro de Ataques das Direitas Argentinas Radicalizadas), avaliaram que as desinformações mais virais nas eleições argentinas deste ano buscavam gerar confusão sobre o uso da Boleta Única de Papel, recurso adotado pela primeira vez em uma eleição nacional, e associar o candidato peronista Jorge Taiana a redes de narcotráfico.

“Durante o próprio dia da eleição, também houve pequenas tentativas de difundir a ideia de fraude eleitoral, mas, como os primeiros resultados favoreceram o governo, essas narrativas foram rapidamente desativadas”, aponta o grupo.

Os pesquisadores também destacam o papel das “milícias digitais” ligadas a partidos e figuras políticas, segundo os quais foram responsáveis por difundir os vídeos falsos em que candidatos apareciam anunciando apoio a adversários, em sua maioria, conteúdos gerados com IA e impulsionados por contas verificadas na plataforma X (antigo Twitter).

Alertas ignorados do Ministério Público Fiscal

Às vésperas das eleições, o Ministério Público Fiscal (MPF) da Argentina – órgão autônomo e independente do sistema de justiça do país –  já havia alertado para os riscos de campanhas massivas de desinformação e do uso indevido de inteligência artificial (IA) no processo eleitoral.

Em parecer divulgado no final de setembro – segundo reportagem de um veículo argentino -, o fiscal federal Ramiro González recomendou uma série de medidas de prevenção e fiscalização, destacando os perigos das deepfakes para a integridade democrática e a confiança pública.

Entre as propostas, o MPF defendeu a adesão ao Compromisso Ético Digital, iniciativa da Câmara Nacional Eleitoral (CNE) — equivalente argentino ao Tribunal Superior Eleitoral brasileiro — que desde 2019 reúne partidos, entidades jornalísticas, empresas e plataformas digitais, como X, TikTok, Google e Meta, com o objetivo de preservar o debate democrático e promover o voto informado.

González também pediu à juíza María Servini que solicitasse relatórios sobre ações de educação e sensibilização já realizadas ou planejadas, especialmente em torno do novo sistema de votação com Boleta Única de Papel.

O parecer ressaltava que a IA não deveria ser tratada como um tema de censura política, mas alertava que o ambiente digital não pode se tornar uma “zona livre” de responsabilidade, exigindo o envolvimento de diferentes poderes do Estado para garantir integridade, transparência e informação de qualidade durante as eleições.

Compromissos insuficientes e omissão do Estado

Além do Compromisso Ético Digital, os especialistas ouvidos pela matéria destacaram outras ações da CNE para enfrentar a desinformação eleitoral. Entre elas, publicações com orientações sobre como identificar notícias falsas e explicações sobre o funcionamento da Boleta Única de Papel, esclarecendo dúvidas e desmentindo versões falsas que circularam durante a campanha, como a alegação de que a tinta das canetas nos locais de votação poderia ser apagada.

A Câmara também atuou como fonte para o Chequeado na produção de conteúdos para TikTok, Instagram e X, com o objetivo de prevenir, explicar e desmentir desinformações relacionadas ao processo eleitoral.

Entretanto, as ações se mostraram limitadas diante dos desafios da desinformação, avaliam especialistas. Pesquisadores da EDIPO e da iniciativa RADAR apontam que o Compromisso Ético Digital não impediu a circulação de conteúdo falso, sobretudo na plataforma X, nem coibiu anúncios pagos com desinformação na Meta.

Na província de Santa Fé, por exemplo, circulou uma campanha agressiva de fake news promovida por aliados do governo nacional contra a principal candidata da oposição. “Ela chegou a obter uma decisão judicial favorável nos últimos dias do processo eleitoral, mas a campanha não cessou em momento algum”, relatam.

Para Lucía Wegelin, o problema é ainda mais estrutural. “A Câmara Nacional Eleitoral depende, em última instância, do Poder Executivo, e não houve nenhum tipo de ação para combater a desinformação ou sequer para colocar o tema na agenda pública de forma efetiva”, afirma.

A pesquisadora avalia que a postura do governo de Javier Milei foi oposta à de enfrentamento: “A força política que conduz o presidente se valeu de um dos atos mais graves de desinformação da campanha eleitoral”, em referência ao uso de deepfakes já mencionados na matéria.

Quanto a um horizonte de medidas enérgicas para coibir práticas de desinformação eleitoral, como a regulação do uso de IA e das redes sociais, Wegelin avalia que “não há, e nem haverá, a curto prazo, qualquer tipo de intervenção sobre essa problemática, porque o governo não a vê como um problema, mas como uma nova ferramenta de suas batalhas eleitorais.”

Iniciativas jornalísticas e da sociedade civil

No cenário argentino, iniciativas de jornalismo e checagem de fatos se destacam pelo potencial de reduzir os impactos da desinformação, especialmente diante da limitada atuação do poder executivo nacional. Em 2025, o Chequeado relançou, em parceria com a agência francesa AFP, a aliança Reverso, um projeto cívico-jornalístico colaborativo que reúne meios de comunicação de todo o país e organizações da sociedade civil.

O objetivo da iniciativa é fortalecer a luta contra a desinformação nas campanhas eleitorais por meio do jornalismo de verificação, da educação midiática e de outras ações cívicas. Segundo Matías Di Santi, que também coordena a aliança Reverso, a organização tem se dedicado a atualizar suas ferramentas para enfrentar a desinformação, especialmente a gerada por inteligência artificial.

“Nesse sentido, os antídotos que propomos são a verificação rigorosa, a alfabetização midiática, um compromisso real por parte das plataformas tecnológicas e a educação. Todos esses pontos são fundamentais para ajudar a população a pensar criticamente e a discernir a intenção por trás de um conteúdo. É a única forma de combater a desinformação em um cenário em que a IA consegue recriar conteúdos com um nível de realismo nunca antes visto”, afirmou Di Santi.

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