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Pontos de vista

Acervo pessoal

jul 18, 2022 | pontos de vista

Diga-me qual fake news compartilhas e eu te direi quem és

Acervo pessoal
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Recentemente, uma fake news sobre refugiados ganhou a atenção de europeus nas redes sociais. A manchete fictícia trazia os dizeres: “Nações Unidas alertam sobre movimento massivo de refugiados da África: 500 milhões de pessoas estão a caminho da Europa”. O suposto screenshot da notícia ganhou notoriedade por também usar a logo do New York Post e circulou no Facebook e no Twitter, até que foi confirmado falso. A repercussão da matéria, no entanto, chama a atenção porque demonstra o poder do desconhecimento e do medo no momento decisório sobre compartilhar ou não um conteúdo falso. Estudos anteriores já demonstraram que fatores que contribuem para o compartilhamento de fake news são justamente o potencial alarmante de um conteúdo, o grau de conhecimento prévio de um indivíduo e as suas perspectivas políticas [1,2].

Fake news sobre refugiados circula nas redes sociais

No caso em questão, medos antigos impulsionados por racismo, que já atingiram o continente entre 2015 e 2017, voltam à tona. Em 2016, o debate sobre a política migratória foi determinante para decidir o destino da União Europeia, tendo a saída do Reino Unido (Brexit) sido principalmente motivada pelo desejo britânico de “retomar o controle” de suas fronteiras [3]. Após a onda populista, parecia que os movimentos nacionalistas da Europa tinham sido superados diante dos últimos resultados eleitorais na França e na Alemanha. No entanto, a viralização de um conteúdo com essa manchete serve para alertar que talvez o momentum que impulsionou líderes populistas de direita não está tão para trás assim.

O conteúdo que viraliza também demonstra outro lado da moeda já discutido: a recepção seletiva a refugiados [4]. Em 2016, refugiados sírios eram vistos enquanto ameaças aos valores europeus, tendo sido discriminados sob a desculpa de que seus costumes não correspondiam às concepções liberais da Europa. A recepção negativa aos sírios é a ponta do iceberg de uma islamofobia que discrimina muçulmanos como um todo [5,6]. Essa seleção, no entanto, não se reduz à intolerância religiosa, mas também ao racismo, havendo um determinado “tipo” de imigrante e refugiado que é desejável comparado a outros. A escolha por grupos foi sinalizada na própria recepção acolhedora de países europeus de refugiados ucranianos, incluindo aqueles historicamente hostis a políticas migratórias receptivas, como a Polônia [7]. Ao mesmo tempo, a cobertura midiática, caracterizada por também disseminar enquadramentos de imigrantes enquanto ameaças, mudou de postura e também foi simpática à chegada de refugiados ucranianos, havendo jornalistas que ousaram dizer frases como: “eles são como nós”.

Aqui, vale a pena apontar para a oposição entre “nós” e “eles”, um outro recurso linguístico muito utilizado em narrativas populistas, nacionalistas, xenofóbicas e homofóbicas. Estudos anteriores demonstram que pessoas pertencentes a um determinado grupo têm tendência a utilizarem estereótipos positivos para referirem a si mesma, ao mesmo tempo em que tratam os grupos considerados como “outro” com estereótipos negativos [8,9]. Essa auto descrição positiva, em oposição à descrição negativa do outro contribui para a generalização, desumanização e consequente falta de empatia em relação aos grupos alvos [10]. Discursos de ódio e crimes de ódio, então, passam a ser naturalizados e, em alguns casos, até mesmo justificados.

No caso brasileiro, diversas notícias falsas que se tornam virais são justamente aquelas que contribuem para a discriminação. Nas últimas eleições, por exemplo, uma imagem falsa que circulou foi a da política Manuela D’Ávila utilizando a camisa “Jesus é Travesti”. Outro conteúdo falso que ganhou notoriedade foi o de “mamadeiras de piroca” distribuídas em escola. Além disso, em 2019, circulou a imagem de uma mulher destruindo um boneco, e a legenda dizia que se tratava de um ensaio pró-aborto.

No fundo, notícias e imagens falsas com essas perspectivas demonstram a tentativa de grupos privilegiados continuarem a discriminar e marginalizar grupos outros, além de prejudicar os seus direitos fundamentais. Nos casos ilustrados acima, fica nítida uma perspectiva machista e homofóbica, com a tentativa de deslegitimização de grupos LGBTs e de mulheres. No caso da notícia de refugiados africanos que chegam ao continente europeu, o racismo e a xenofobia se escancaram. Em todos esses casos, percebe-se que o tipo de conteúdo compartilhado diz muito mais sobre quem compartilha do que sobre os seus alvos. Trata-se de pessoas racistas, xenofóbicas, machistas e homofóbicas que querem continuar do alto de seus privilégios às custas da proliferação do ódio a outros.

Referências:
[1] Baptista JP, Gradim A. Understanding Fake News Consumption: A Review. Social Sciences. 2020;9(10):185. doi:10.3390/socsci9100185
[2] Batailler C, Brannon SM, Teas PE, Gawronski B. A Signal Detection Approach to Understanding the Identification of Fake News. Perspect Psychol Sci. 2022;17(1):78-98. doi:10.1177/1745691620986135
[3] Hobolt SB. The Brexit vote: a divided nation, a divided continent. Journal of European Public Policy. 2016;23(9):1259-1277. doi:10.1080/13501763.2016.1225785
[4] Zessin-Jurek L, Katalin Kelemen Á. Refugees Welcome to History and Memory: Polish (and Jewish) World War II Exiles in Hungary. Hungarian Studies Review. 2022;49(1):62-92. doi:10.5325/hungarianstud.49.1.0062
[5] Ahmed S, Matthes J. Media representation of Muslims and Islam from 2000 to 2015: A meta-analysis. International Communication Gazette. 2017;79(3):219-244. doi:10.1177/1748048516656305
[6] Silva D. The Othering of Muslims: Discourses of Radicalization in the New York Times , 1969-2014. Sociol Forum. 2017;32(1):138-161. doi:10.1111/socf.12321
[7] Pasamonik B. Moral Panic About Refugees in Poland as a Manifestation of Cultural Transformation. Multicultural Studies. 2017;1(2017):87-101. doi:10.23734/mcs.2017.1.087.101
[8] Bilewicz M, Soral W. Hate Speech Epidemic. The Dynamic Effects of Derogatory Language on Intergroup Relations and Political Radicalization. Political Psychology. 2020;41(S1):3-33. doi:10.1111/pops.12670
[9] Dyduch-Hazar K, Mrozinski B, Golec de Zavala A. Collective Narcissism and In-Group Satisfaction Predict Opposite Attitudes Toward Refugees via Attribution of Hostility. Front Psychol. 2019;10:1901. doi:10.3389/fpsyg.2019.01901
[10] David Y. Gendering political conflict: the racialized and dehumanized use of gender on Facebook. Feminist Media Studies. Published online April 10, 2021:1-19. doi:10.1080/14680777.2021.1905020

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Isabella Gonçalves

Isabella Gonçalves é doutoranda na Universidade Johannes Gutenberg Mainz, Alemanha e bolsista da DAAD. Atualmente, ela pesquisa o enquadramento estereotipado de migrantes e refugiados na cobertura da mídia. É bacharel em jornalismo e mestra em comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora.

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