Sim, devemos falar das fake news — mas com filtro
Bernardo Barbosa
Dar atenção ou não a um conteúdo com desinformação é um dilema enfrentado diariamente por quem trabalha com checagem de fatos. De um lado, há o temor de amplificar algo que pode estar circulando apenas em grupos bastante restritos; de outro, existe a necessidade de colocar à disposição do público um esclarecimento sobre um assunto que já corre solto nas redes sociais e nos aplicativos de mensagem.
Em resumo, ao avaliar se devemos ou não falar sobre uma fake news que viralizou, a minha resposta inicial é: depende.
Não creio que haja uma resposta exata sobre como abordar um conteúdo com desinformação, mas mesmo para uma análise caso a caso é possível pensar em metodologias que possam ser aplicadas de forma mais ampla, como já costumam fazer as agências de verificação de fatos ao redor do mundo. A metodologia não funciona apenas como um manual de checagem, mas também como um filtro, uma forma de selecionar o que vai ser analisado.
No caso do UOL Confere, onde trabalho, este filtro passa não só pelo assunto da fake news, mas por quem a disseminou, em que contexto ocorreu a disseminação e qual o alcance obtido pela desinformação. Isso está explicado no nosso método de trabalho, que é público e pode ser acessado no site do UOL.
Na prática, isso significa que buscamos dar preferência a checar manifestações de (ou sobre) pessoas que tenham alguma relevância no debate público, o que vai de políticos a influenciadores digitais; e quando estes conteúdo falam de temas atuais e de interesse mais amplo, ou seja, que possam ter importância para além de suas bolhas.
Também avaliamos se estas falas geraram um número substancial de interações em plataformas digitais, na casa dos milhares de compartilhamentos ou visualizações, ou se foram ditas em situações — uma entrevista transmitida ao vivo, um pronunciamento em rede nacional de rádio e TV, um discurso na ONU — que podem extrapolar os nichos dos autores das declarações checadas.
Esta análise está muito longe de ser uma ciência exata, mas se a desinformação atende a estes critérios, então creio que ela deva, sim, ser abordada e desmentida. Quanto mais distante deles estiver uma fake news, mais desimportante ela será, e aí o silêncio tende a ser o melhor serviço prestado.
A decisão de fazer e publicar uma checagem não ignora o fato de ser improvável que ela chegue às mesmas pessoas que foram alvo do conteúdo incorreto. Também não desconsidera que, mesmo quando a checagem eventualmente atinge um destes alvos, o receptor pode simplesmente não acreditar nos fatos que estão ali explicitados, a depender do nível de envolvimento daquela pessoa com o tema da desinformação ou com quem a proferiu.
Neste ponto, vale lembrar que estas dificuldades têm relação direta com a dinâmica do consumo e circulação de conteúdo em plataformas digitais, cujo objetivo é fazer com que os usuários permaneçam ativos nelas por cada vez mais tempo e, com isso, cedam cada vez mais dados que possam ser vendidos para anunciantes.
Uma das formas encontradas pelas plataformas para chegar a este objetivo é oferecer, de forma automatizada, mais do mesmo ao usuário. Isso favorece a formação das chamadas “câmaras de eco” — ou seja, ambientes que bloqueiam a interferência do que possa desafiar as ideias já ali estabelecidas — e exacerba características da psicologia humana que nos tornam vulneráveis a informações falsas.
Outro aspecto que pode dificultar uma avaliação mais objetiva da necessidade ou não de falar de uma fake news é a instrumentalização da desinformação no debate público, uma prática que pode ocorrer ou não por meio das plataformas digitais.
Uma mentira pode ser usada para aprofundar divergências entre grupos políticos e, com isso, intensificar a mobilização contra ou a favor de um tema ou pessoa. Fake news também funcionam para criar distrações que mudam o foco do debate — as famosas cortinas de fumaça — ou obter engajamento (e dinheiro) em plataformas digitais.
Nestas circunstâncias, é necessário tentar avaliar se uma checagem prestará um serviço relevante de esclarecimento ou se apenas servirá involuntariamente para manter acesa uma falsa polêmica ou alimentar incertezas sobre um determinado assunto. Raciocínio similar pode ser aplicado por qualquer usuário das redes: cabe refletir se o compartilhamento indignado de um post com desinformação só contribui para amplificá-la e se ela não foi postada justamente para surfar neste tipo de reação.
A complexidade deste ambiente mostra o tamanho do desafio do combate à desinformação. Não é possível evitar que fake news continuem sendo inventadas, nem impedir que as pessoas continuem acreditando nelas. Mas é possível — e desejável, creio eu — colocar à disposição do público conteúdos que desmintam alegações falsas sobre temas de interesse amplo, das vacinas contra a covid-19 ao preço da gasolina, passando pelas urnas eletrônicas.
Em resumo: quando se trata de algo que viralizou, pode valer a pena, sim, falar da fake news. Acredito que as checagens são muito importantes para conter uma disseminação ainda maior de um conteúdo incorreto. São elas que estão à mão para serem encaminhadas no WhatsApp a amigos e familiares com dúvidas, aparecem nos resultados das buscas no Google e servem de subsídio para a redução da circulação de desinformação no Facebook e Instagram.
Bernardo Barbosa é editor-assistente do UOL Confere, a editoria de checagem do UOL, onde também foi repórter de política e checador do Projeto Comprova. Passou pelas redações de Aos Fatos, CNN Brasil, O Globo e Agência Efe.
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Quando uma informação falsa é colocada em xeque, a tendência é que seu alcance diminua
Kyene Becker*
Com o surgimento das redes sociais, o modo de se relacionar, viver e, principalmente, de consumir informação mudou. Segundo uma pesquisa feita pelo Facebook IQ, 66% dos entrevistados disseram buscar informações sobre a Covid-19 pelos aplicativos do Meta (como o Facebook e o WhatsApp). E diante dessa situação, como deveríamos combater a desinformação, comum nestes espaços? É melhor agir rapidamente ou manter um silêncio estratégico?
Essa é uma dúvida que não tem uma resposta categórica. É fato que, quando uma fake news ganha alcance e visibilidade nas redes sociais, é extremamente importante a desmentir da maneira mais rápida possível. Com base na minha experiência no Boatos.org, site de checagem que atuo há sete anos, quando uma informação falsa é colocada em xeque e apresenta um lado contraditório, a tendência é que seu alcance e sua visibilidade diminuam.
No segundo turno das eleições de 2014, uma mensagem ganhou força nas redes sociais. Ela apontava que Alberto Youssef, delator da Lava Jato, teria sido encontrado morto na prisão. Se não houvesse uma ação rápida para repelir a história falsa (e absurda), poderia haver impacto direto na votação.
Após a morte de Marielle Franco, uma imagem falsa atribuída a ela viralizou em redes sociais (junto com outras fake news sobre o caso). Novamente, se não houvesse o trabalho de checagem, a história circularia livremente e seria mais danosa ainda.
Em alguns casos, o silêncio não se mostrou promissor. Temos diversos exemplos de pessoas que acabaram mortas após serem acusadas nas redes sociais de crimes que não cometeram. Em 2014, no Brasil, uma mulher foi espancada até a morte após uma história falsa com um retrato falado circular no Facebook. Em 2018, no México, dois homens acabaram linchados e mortos após serem vistos perto de uma escola, enquanto uma fake news sobre sequestros de crianças circulava no WhatsApp.
Os exemplos citados mostram não só a importância de serviços de combate às fake news como o Boatos.org. Nos dois casos, conseguimos um alcance considerável nos desmentidos e servimos como referência para os grandes veículos de comunicação, o que aumenta ainda mais a abrangência do desmentido.
Apesar de ser indiscutível que um desmentido é de suma importância para frear o alcance de uma fake news, há um ponto que vai além da questão “falar ou silenciar”: nem toda história falsa merece ser imediatamente desmentida – ou, mesmo, merece ser desmentida.
E, ao contrário do que muita gente pensa, nem sempre vale a pena falar sobre uma história (e nem sempre falamos). Isso porque esse tipo de conteúdo pode apresentar algumas armadilhas que podem piorar – e muito – a situação da fake news. Dentre elas, destaco três: as bolhas das redes sociais, a tática da distração e a dubiedade.
Nem toda informação falsa, de fato, viraliza: As redes sociais apresentam um funcionamento que estimula a criação das chamadas “bolhas ideológicas”. Como consequência, as bolhas não só vão causar o sentimento de que todos pensam igual a você, como também a sensação de que temos acesso à opinião do mundo inteiro. Dessa forma, fica fácil acreditar que uma história falsa viralizou quando, na verdade, está restrita a sua bolha.
E falar sobre histórias falsas que não têm alcance ou visibilidade pode ter o efeito completamente oposto. Ao invés de encerrar o assunto, o desmentido ou o “falar sobre” vai aumentar a popularidade da história. Por conta disso, ao desmentir uma informação falsa é importante não “requentar” a história, mas sim se concentrar nos motivos pelos quais ela é falsa.
Distração: Desde que as fake news passaram a ser construídas por grupos organizados com finalidades específicas, como influenciar o debate público, o modo de lidar com as informações falsas mudou. Isso porque boa parte das fake news não são criadas sem propósito, ou seja, muitas histórias são criadas para tirar a atenção do público de outras notícias.
Especialmente, quando essas notícias atingem de forma negativa a pessoa que se pretende “proteger”. Nessa situação, falar sobre a história falsa é justamente o que esses grupos querem. Afinal, quanto mais as redes estiverem inundadas da fake news, menor será a importância e o alcance dados à notícia que se quer abafar.
Nem sempre a história é desmentida de um jeito responsável: Checadores de informação sempre mostram de maneira clara quando uma informação é verdadeira ou falsa. Ao longo dos anos, alguns veículos de comunicação – que não são especialistas em desmentir informações – acabaram aumentando o alcance de certas fake news e até piorando o caso. Isso porque geraram dubiedade na informação.
Um exemplo muito comum é o uso da frase “nega que”, em títulos de reportagens, para abordar uma situação de fake news. Em muitos casos, os veículos de comunicação não deixam claro que a tal acusação que está sendo negada, na verdade, é uma informação falsa. E durante horas ou dias, a fake news pode ser validada por parte da mídia – porque muitas pessoas apenas leem os títulos, mas não as reportagens que explicam toda a situação.
Com usuários de redes, a situação não é diferente. Ao compartilhar a publicação original de uma fake news, mesmo com um comentário negativo ou de indignação, apenas se está colaborando para popularizar ainda mais a história. Nestes casos, é preferível que sempre se compartilhe o desmentido de algum serviço de checagem, porque esses serviços utilizam técnicas para minimizar o impacto das fake news.
Neste sentido, a melhor pergunta não é “se devemos desmentir” e sim quais boatos devemos desmentir. Uma das etapas mais importantes de uma checagem é a mensuração se, de fato, um conteúdo merece ser desmentido ou silenciado. Para tanto, serviços de checagem que tenham a expertise de mensurar, para além das bolhas, se uma informação falsa merece ser desmentida ou silenciada são primordiais. Falar sobre fake news é um assunto importante, mas requer cuidados e responsabilidade. Definitivamente, não é (assim como o Brasil) para amadores.
Kyene Becker é jornalista do Boatos.org e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Linguística – IEL/Unicamp
*Com a colaboração de Edgard Matsuki