Uma foto feita por IA da cantora Madonna, com as pernas mergulhadas em lama, sugerindo que o governo federal teria bancado seu show no Brasil, enquanto muitos passam por necessidades e dificuldades extremas com as chuvas no Sul do país foi publicada nas redes sociais no dia 4 de maio pelo deputado Maurício do Vôlei (PL-MG).
O que aparentemente é apenas uma crítica da oposição ao governo do presidente Lula ganhou outros contornos com a capacidade de disseminação e polarização das plataformas digitais. A postagem inverídica teve um alcance médio nas redes Facebook (293 reações, 104 compartilhamentos e 82 comentários) e cerca de 184 mil curtidas no Instagram. Muitos dos comentários derivados da postagem nas duas redes criticavam o deputado por ser omisso em relatar que os gastos para o show não foram do governo federal.
Logo depois que a desinformação ganhou fôlego, o ministro da Secom, Paulo Pimenta, publicou um reels enérgico no Instagram pedindo que os produtores de fake news tivessem, ao menos, o respeito pelas vítimas da tragédia ambiental no Sul. Pimenta reforçou que o show da cantora foi realizado com o patrocínio do Banco Itaú e da Heineken, com apoio da prefeitura e Estado do Rio.
Mais no final do dia de ontem, o ministro Paulo Pimenta enviou ao ministro da Justiça Ricardo Lewandowski um ofício solicitando a apuração de ilícitos, individualização de condutas e responsabilização de pessoas propagando fake news vinculadas às enchentes e desastres ambientais ocorridos no Estado do Rio Grande do Sul.
“ Os conteúdos afirmam que o Governo Federal não estaria ajudando a população, de que a FAB não teria agilidade e que o Exército e a PRF estariam impedindo caminhões de auxílio. Destaco com preocupação o impacto dessas narrativas na credibilidade das instituições como o Exército, FAB, PRF e Ministérios, que são cruciais na resposta a emergências. A propagação de falsidades pode diminuir a confiança da população nas capacidades de resposta do Estado, prejudicando os esforços de evacuação e resgate em momentos críticos”, disse o ministro no oficio.
Mas, como sempre acontece nas redes sociais, a desinformação tem uma capacidade de espalhamento muito maior que seu desmentido. Levantamento do Instituto Democracia em Xeque (DX) apurou que tanto influenciadores de direita como os tradicionais políticos usaram a narrativa falsa de investimento público no show em detrimento dos aportes aos refugiados ambientais. No YouTube, dos dez vídeos mais assistidos, nove eram de canais ligados à direita. Este nove vídeos somaram mais de 2,5 milhões de views, o que representa quase a metade obtida por todas as 179 publicações relativas às chuvas no Sul nesta rede social.
“Nem os 78 mortos e 108 desaparecidos, os 18 mil desabrigados e as 116 mil pessoas desalojadas no Rio Grande do Sul sensibilizaram os criminosos produtores de fake news”, protestou o deputado Chico Alencar (Psol-RJ) nas redes sociais. “Fazendo disputa política mesquinha, há uma enxurrada de mentiras nas redes (tantas vezes antissocias), que dizem que o governo federal, ao invés de socorrer o povo gaúcho, patrocinou o show de Madonna… E que a Lei Rouanet tb foi usada pra isso”, completou.
Nomes tradicionais da direita brasileira como o deputado federal Delegado Ramagem (PL-RJ) reforçaram o falso paralelo entre gastos públicos no show da artista estrangeira versus abandono do povo do Rio Grande do Sul. Os ataques também seguiram a cartilha da pauta moral, com avaliações de que o dinheiro público teria sido aplicado em um show “erótico estilo Sodoma e Gomorra”, como publicou o Jornal da Direita Online no Twitter. A deputada Carla Zambelli, em postagem no Facebook, ataca a primeira-dama Janja da Silva dizendo que ela “zomba do povo brasileiro”. A postagem teve centenas de compartilhamentos.
A narrativa negacionista de que o desastre ambiental teria sido fabricado também apareceu em perfis conspiracionistas das redes sociais segundo o mesmo levantamento do DX. Alguns perfis divulgaram teorias conspiratórias de que o desastre climático teria sido fabricado ou que não seria decorrente das mudanças no clima.
Outra linha de desinformação dizia respeito a supostas barreiras e bloqueios que as doações de voluntários encontravam pelo caminho, que teriam sido realizadas pelos governos estadual e federal. As agências de checagem Lupa e Aos Fatos desmentiram todas as informações falsas citadas neste texto e encontradas no levantamento do Democracia em Xeque.
Monitoramento do Aos Fatos mostra que boa parte dos posts aposta no uso de conteúdos de cunho político, sob o argumento de que os esforços de socorro e resgate estariam sendo feitos pela própria população ou pela iniciativa privada. Outros ampliam o quadro ao anunciar medidas falsas como supostos cortes de energia ou exagerando o total de mortes registradas — obrigando as prefeituras a desmentir.
A professora e pesquisadora da UFRGS Raquel Recuero tem monitorado desinformação relativas ao desastre das chuvas e cita alguns exemplos: “Na região onde estou a prefeitura anunciou que vai ter cheia e que ia divulgar um mapa de locais que deverão ser evacuados. Como não divulgou na hora, começam a surgir outros mapas desinformativos de locais que não serão atingidos, gerando pânico. Tem um vácuo que deveria ser preenchido e centralizado pela informação institucional que está sendo ocupado pelo que chega pelo whatsapp”, afirma Recuero.
Outro problema grave apontado pela pesquisadora é que o número de pix oficial divulgado pelo Estado foi sendo replicado e disseminado com números trocados, gerando descrença e dúvida sobre a ação oficial.
“Vamos precisar de um plano de comunicação de crise mais eficiente e de combate à desinformação”, avalia a pesquisadora.