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acervo pesssoal

out 18, 2021 | pontos de vista

Desinformação produz delírio coletivo e polarizado

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A desinformação, mais que um conteúdo falso ou enganoso, é principalmente uma ação de desinformar comportamentos e percepções sobre a realidade, os sujeitos e seus direitos.

Se quisermos entender melhor como a desinformação tem se tornado um elemento central no ataque aos direitos humanos, temos que entender o que ela é, como ela é disseminada, mas, principalmente, o que ela produz.

Em primeiro lugar, a desinformação não é uma simples oposição, negação ou privação de informação, como o prefixo “des” da palavra poderia indicar. Informação, em seus sentidos mais comuns, designa um conteúdo, dado ou fato que é transmitido ou recebido através de uma fala, um texto, uma mensagem, enfim, de um meio de comunicação e que significa “algo”, ou seja, possui significação. Já em seu sentido técnico, a informação também designa um conjunto de dados codificados e organizados de acordo com um padrão de medida probabilística, o bit (binary digit), para que possam ser transmitidos, processados e armazenados por computadores e dispositivos digitais. Em nenhum dos dois sentidos informação e desinformação se opõem. A desinformação não é nem uma informação sem significação, tampouco uma informação incompatível com a linguagem digital.

Então, a desinformação é uma informação, mas de que tipo?  Segundo a UNESCO e o PNUD, é um “conteúdo falso, manipulado ou enganoso, criado e disseminado intencionalmente ou não, e que pode causar danos potenciais à paz, aos direitos humanos e ao desenvolvimento sustentável”[1].

Agora, o peso do contexto político no qual ganhou relevância o problema da desinformação, a saber, as novas dinâmicas de comunicação e produção de informação com o surgimento dos smartphones e das redes sociais, o problema das “fake-news” e a discussão sobre “pós-verdade”, fez e faz com que centremos a maior parte de nossa atenção e esforços na primeira parte da definição, ou seja, no problema dos conteúdos falsos e/ou enganosos e em como eles são criados e difundidos, deixando um pouco de lado a reflexão sobre o que eles produzem.

O foco nas “notícias falsas” e em como as instituições e o jornalismo podem lidar com o fato de que figuras como Trump e Bolsonaro são um claro sintoma de que a desinformação se tornou a regra, e não a exceção, decorre do fato de que o fenômeno realmente tem significado a erosão da esfera pública e uma ameaça fatal à democracia, ambas já em crise há algumas décadas. Vejamos de modo bastante resumido.

Crise da aferição de verdade

Na esfera pública, as instituições tradicionais e figuras de autoridade possuíam a credibilidade e a fé pública para estabelecer diferenciações entre a verdade e a mentira, a certeza e a incerteza, o acerto e o erro, o válido e o inválido, o saber científico e o senso comum, a razão ou desrazão em relação a determinado fato, fonte, opinião, juízo, crença, regra, conhecimento ou norma. Assim, ao falarmos em crise da democracia e de confiança e credibilidade, estamos dizendo que jornais e meios de comunicação, representantes do poder executivo, legislativo e judiciário, intelectuais e cientistas, órgãos e mecanismos de fiscalização e regulamentação etc. estão sendo questionados e desacreditados permanentemente.

Como afirmaram Fernanda Bruno e Tatiana Roque, “talvez estejamos vivendo uma crise nos modos tradicionais de aferição da verdade. Não um questionamento da verdade como relevante, e sim uma crise no modo como sabemos se algo é ou não verdadeiro”. Isto porque a distância da maior parte da população dos critérios que envolvem as tomadas de decisões e a “opacidade dos regimes de verdade” são sinais de que “essa transferência de autoridade, baseada na confiança, não funciona mais como antes”, sendo que “para voltar a adquirir confiança pública, a argumentação científica [e das demais autoridades e instituições] precisaria incorporar outras formas de evidência, incluindo experiências e valores”.[2]

Essa crise de confiança e credibilidade, nos permite levantar a hipótese de que, em relação ao problema da desinformação, não se trata apenas de conteúdos verificáveis ou validáveis a partir de um regime de verdade ou autoridade, mas sobretudo da autenticidade das percepções, dos comportamentos e dos modos de vida que são os alvos da ação de desinformar e da guerra de desinformação.

Isto fica claro, por exemplo, em um dos dispositivos centrais das redes sociais. Todos somos convocados a autenticar, através do botão “curtir”, tanto as publicações, atitudes, opiniões, fotos, discursos, quanto as regras, normas, leis e modos de viver que julgamos dignos de valor, válidos, enfim, autênticos. Julgamos a autenticidade de como vivem as pessoas e de como se organiza a sociedade como se tratássemos de fenômenos equivalentes e equiparáveis. A discussão mais imediata sobre a autenticidade aparece no jornalismo em relação às fontes e à veracidade das informações e verificação dos fatos, mas ela também surge, por exemplo, no debate sobre comportamentos inautênticos nas plataformas, como no caso dos bots.

“Meus fatos, minhas leis”

O problema do autêntico e do inautêntico é explícito nas funções e interfaces das redes sociais, mas também pode ser indicado como o pano de fundo que ajuda a compreender a pujança e generalização de fenômenos como o empreendedorismo, coaching, autoajuda, self-management, educação continuada, entre outros. Mais que somente faces da meritocracia e da competição generalizadas, trata-se do que Foucault chamou de “tecnologias de si”: os indivíduos são impelidos a serem gestores da própria vida e isto em uma complementaridade entre as regras a serem seguidas e o sentido pessoal de tais práticas – não basta estabelecer regras alimentares, é preciso se inserir em narrativas do vegetarianismo, veganismo, probióticos, etc.; não basta encontrar um emprego mais satisfatório e menos exploratório, é preciso inserir o trabalho em uma busca de autorrealização, em um “projeto de vida”; entre outros vários exemplos que poderíamos enumerar.

Por outro lado, a discussão sobre os chamados “fatos alternativos” trazida pelo trumpismo é um sintoma do paroxismo dessa tendência de autenticar – no sentido mais básico da palavra de “reconhecer como verdadeiro” – quando cada indivíduo diz existirem os “meus fatos, minhas verdades, minhas leis”. As dinâmicas normativas eminentemente sociais/coletivas das normas, valores e leis passam a ser moduladas pela autorização e pelo julgamento de cada indivíduo conectado, sendo a informação relevante/verdadeira aquela que confirma “minhas” crenças, emoções e ideologias. E como sabemos, por oposição, “fake-news” passa a ser tudo que as nega ou as confronta.

Como afirmou Michel Serres “O conectivo substitui o coletivo”[3] e essa substituição, no bojo de uma cultura de consumo, propaganda e espetáculo – naquilo que Eugênio Bucci chamou de “superindústria do imaginário” -, faz com que cada pessoa passe a se sentir o dono da própria realidade. Como sintetizou Matthew D`Ancona, “você escolhe sua própria realidade, como se escolhesse comida de um bufê. Também seleciona sua própria mentira, de modo não menos arbitrário”.[4]

Não apenas porque a emoção tem se sobreposto à verdade ou o afeto à razão, como querem alguns analistas da desinformação, é que precisamos falar de uma prática, de uma ação de desinformar, mas também porque através de uma análise mais detalhada do que a desinformação produz talvez possamos repensar o que ela é e como operam as estratégias e meios de sua disseminação.

Por exemplo, tomemos a tipologia apresentada no relatório “Jornalismo, Fake-News e Desinformação”, da UNESCO, por Claire Wardle e Hossein Derakhshan entre “informação incorreta”, “desinformação” e “má informação”, que apresenta ainda sete categorias de desinformação que têm “intenção de dano”: sátira ou paródia; conteúdo enganador; conteúdo impostor; conteúdo fabricado; conexão falsa; contexto falso; contexto manipulado.[5] Tal tipologia e categorias são muito promissoras para a prática jornalística e para a checagem de fatos – consequentemente, para dizer o que é a desinformação – mas nos ajudam muito pouco a compreender o ela produz. E como enfrentá-la, dado que parecem servir para conter “a enxurrada de falsidades com um esguicho de água da verdade”[6]. Algo na linha do que Franco Berardi “Bifo” caracterizou como um descompasso de formato, potência e velocidade entre o universo dos emissores e o dos receptores de informação, dado que a recepção já não consegue evoluir ao mesmo ritmo, e mesmo acompanhar, a produção de novas informações.[7] Trata-se do famoso problema do “enxugar gelo” colocado para o trabalho das agências de checagem; mas que, a despeito disso, têm sido peça chave para diagnosticarmos em que consiste a ação de desinformar e as estratégias sistemáticas de sua disseminação.

Todos esses aspectos que vimos nos levam ao cerne da questão: a desinformação parece produzir um delírio coletivo e polarizado. Por um lado, estão as práticas sistemáticas de desinformação como um modo de alterar comportamentos e percepções sobre a realidade, os sujeitos e seus direitos, que têm sido formuladas por meio da consideração e escuta atenta das experiências e valores dos que se consideram excluídos ou desconsiderados na esfera pública e nas instâncias de decisão democráticas. Por outro, estão os que acusam de negacionismo, irracionalismo e fascismo todos aqueles que possuem percepções e comportamentos “inautênticos” de acordo com os critérios de racionalidade, verdade, validade e credibilidade que são justamente os alvos de descrença e desconfiança. Um impasse, uma aporia, mas principalmente uma fissura irredutível para a qual escorre a ordem democrática.

Atacar o outro para garantir a si mesmo

Tomando a definição de Marcia Tiburi para delírio como “forma de mentalidade psicossocial” em que “a realidade desaparece e é substituída por uma construção fantasiosa que tem a função de compensar um vazio, mesmo que seja de explicação”. Podemos dizer que o delírio nega que haja uma verdade factual e que a realidade seja “compartilhada com as demais pessoas porque está sempre em produção a partir do imaginário e do simbólico partilhados em níveis diversos”[8]. E que no lugar desse vazio de realidade, de verdade ou de subjetividade socialmente partilhadas, o delírio erige discursos de autorrealização para o indivíduo ou para grupos que partilham da mesma negação ou dos mesmos discursos de ódio.

O delírio exemplifica bem um dos principais produtos da desinformação: é preciso atacar o outro para garantir a si mesmo, para continuar seguro do que se é. É preciso que a realidade, a razão, as regras, os grupos e as verdades da qual eu faço parte sejam consideradas as autênticas para que enquanto indivíduo eu possa me autorrealizar. E é preciso que a verdade ou a mentira, a certeza ou a incerteza, o acerto ou o erro, o válido ou o inválido, a razão ou desrazão, a informação ou a desinformação do outro sejam consideradas inautênticas para que o grupo, do qual eu enquanto indivíduo faço parte, partilhemos de uma mesma verdade ou de uma mesma negação – como ocorre nas mais estapafúrdias teorias de conspiração como o QAnon, mas também com fanáticos da objetividade.

Longe de não conter informação, a desinformação, na verdade, nos informa sobre processos históricos e político-sociais que estamos vivendo e que estão transformando a democracia, a esfera pública e a maneira como podemos nos comunicar e viver juntos, ou não.

[1] BRANT, J; SANTOS, J; DOURADO, T; PITA; M. Regulação de combate à desinformação – estudo de oito casos internacionais e recomendações para uma abordagem democrática. Fundação Friedrich Ebert Brasil, p. 2.

[2] BRUNO, F; ROQUE, T. A ponta de um iceberg de desconfiança. In: BARBOSA, M (org.) Pós-verdade e fake news: reflexões sobre a guerra de narrativas. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019, p. 17-9.

[3] SERRES, M. Tempo de crise – o que a crise financeira trouxe à tona e como reinventar nossa vida e o futuro. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2017, p. 25.

[4] D`ANCONA, M. Pós-verdade – a nova guerra contra os fatos em tempos de fake News. Barueri: Faro Editorial, 2018, p. 57.

[5] Ver: UNESCO. Jornalismo, Fake News e Desinformação – Manual para Educação e Treinamento em Jornalismo, p. 48-56.

[6] BRUNO; ROQUE, op. cit.., p. 21.

[7] BERARDI, F. La fábrica de la infelicidad – nuevas formas de trabajo y movimiento global. Madrid: Traficantes de Sueños, 2015, p. 24.

[8] TIBURI, M. Delírio do poder: psico poder e loucura coletiva na era da desinformação. Rio de Janeiro: Record, p. 26 – 38.

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Lucas Vilalta

Coordenador da área de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog. É mestre e doutorando em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autor dos livros “Bolsonaro, la bestia pop”; “Simondon: uma introdução em devir”, entre outros, além de ensaios e artigos sobre filosofia da informação e novas tecnologias digitais, filosofia macumbeira, literatura e crítica literária, história e filosofia da música, e direitos humanos.

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