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Foto: Tomaz Silva /Agência Brasil

out 31, 2025 | Destaques, Notícias

Desinformação sobre operação mais letal do RJ expõe disputas políticas e reprodução de estigmas

Foto: Tomaz Silva /Agência Brasil
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Na manhã de 28 de outubro de 2025, enquanto escrevia um capítulo de sua tese sobre letalidade policial contra crianças e adolescentes no Rio de Janeiro, o doutorando em Comunicação da UFRJ Caio Brasil Rocha, morador do Complexo do Alemão, ouviu os primeiros tiros. Em minutos, a rotina de escrita foi substituída pelo medo. “Precisei parar tudo e me afastar da janela”. Desde então, Caio não conseguiu mais abrir o arquivo de sua tese. 

Assim como Caio, milhares de moradores dos complexos da Penha e do Alemão tiveram suas rotinas brutalmente interrompidas pela megaoperação policial realizada em 28 de outubro de 2025, já considerada por especialistas como a maior chacina da história do Brasil.

A ação, conduzida por forças estaduais sob a justificativa de frear o avanço territorial do Comando Vermelho e cumprir mais de uma centena de mandados de prisão, deixou ao menos 120 mortos, entre eles quatro policiais, e 113 pessoas presas, 118 armas apreendidas, 14 artefatos explosivos e uma quantidade ainda não contabilizada de drogas.

No entanto, veículos jornalísticos e organizações de direitos humanos têm cobrado maior transparência, apontando que ainda permanecem dúvidas sobre pontos cruciais, como o destino das gravações das câmeras policiais, o funcionamento do chamado “muro do Bope”, as circunstâncias das mortes na mata e a identificação precisa das vítimas.

Paralelamente aos confrontos, outra guerra se instaurava nas redes sociais. Durante e nas horas seguintes à operação, múltiplas narrativas começaram a circular, muitas falsas ou distorcidas, inclusive produzidas e amplificadas por ferramentas de inteligência artificial generativa. A confusão informacional rapidamente transformou o episódio em um campo de disputa política e simbólica.

A desinformação em momentos de crise

Segundo Luciane Belin, pesquisadora do NetLab/UFRJ, esse fenômeno segue um padrão: “em situações de crise se criam ambientes de insegurança, medo e incerteza. As pessoas querem respostas e explicações imediatas, porque ter alguma informação faz com que elas se sintam mais seguras”, explica.

As checagens publicadas nas horas seguintes à operação ajudam a ilustrar esse cenário. Uma das desinformações verificadas trazia um vídeo antigo de policiais do Bope furtando casas, como se tivesse sido gravado durante a ação de 28 de outubro. O conteúdo, porém, era descontextualizado e mostrava outra operação, em outra data.

Outra peça mostrava um helicóptero da polícia derrubando um drone do Comando Vermelho, uma imagem inteiramente gerada por inteligência artificial, sem qualquer correspondência com a realidade.

Também circulou uma mensagem falsificada, que anunciava falsamente o Estágio 4 de crise na cidade, um nível que indica ocorrências simultâneas de médio e alto impacto em diferentes regiões. Naquele dia, no entanto, o alerta anunciado pelo Centro de Operações e Resiliência da Prefeitura do Rio era de Estágio 2, que aponta risco de ocorrências pontuais de maior gravidade, sem generalização.

Essas peças de desinformação, apesar de rapidamente desmentidas por agências de checagem, geram impactos imensuráveis. “Quando se corrige uma desinformação, essa correção não tem o mesmo impacto e não reverte por completo o efeito que a desinformação já causou”, disse o pesquisador da UFRJ, Caio Brasil Rocha.

Para Dandara de Paula, gerente de programas do Instituto Marielle Franco, a desinformação nesses contextos se configura como uma versão atualizada e tecnológica de práticas históricas de controle social.

“A desinformação é a face mais atual e tecnológica de um projeto de dominação das consciências que ocorre há séculos, mas que se atualiza e se refina cotidianamente. As informações falsas e narrativas veiculadas sobre quem são as vítimas da violência policial e do terrorismo de Estado no Brasil são usadas para tentar justificar uma barbárie que se recrudesce a cada dia”, afirmou Dandara.

Conotação política e disputa de narrativas

A tragédia nos complexos da Penha e do Alemão rapidamente ganhou conotação política, à medida que figuras públicas e influenciadores passaram a utilizar o episódio para reforçar discursos sobre “guerra ao crime” e “ausência do Estado”, inclusive com a veiculação de anúncios pagos em plataformas digitais com suas versões fatos. 

O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), afirmou que o governo federal teria negado ajuda à operação e que, por isso, o estado “estava sozinho”. “Tivemos pedidos negados 3 vezes: para emprestar o blindado, tinha que ter GLO, e o presidente [Lula] é contra a GLO. Cada dia uma razão para não estar colaborando”, disse Castro, referindo-se à Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

Mais tarde, o governador amenizou o tom, afirmando que sua fala foi mal interpretada: “Houve uma leitura errada da minha fala. Não pedi ajuda. A pergunta do repórter foi se o governo federal estava participando da operação, eu falei que não…”.

Em reação, o Ministério da Justiça afirmou não ter recebido pedidos relacionados à operação desta terça-feira (28) e destacou a atuação contínua no estado desde 2023, incluindo 178 operações realizadas pela Polícia Federal neste ano, 24 delas voltadas ao combate ao tráfico de drogas e armas.

Fernando Frazão/Agência Brasil

Reportagem da Agência Pública mostrou que interesses políticos também têm direcionado a narrativa em nível legislativo. A oposição ao governo Lula (PT), segundo o texto, vem utilizando esta chacina policial como ferramenta política no Congresso, em um movimento coordenado da direita e extrema direita para aprovar um projeto de lei que pretende enquadrar organizações como o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC) como grupos de terrorismo.

A reportagem observa ainda que o governador Cláudio Castro tem adotado o termo pouco usual “narcoterrorismo” em entrevistas após a operação, expressão que também tem sido recorrente nos discursos da oposição nas últimas semanas.

Em entrevista à imprensa na quarta-feira (29), Cláudio Castro também afirmou que o Executivo estadual não poderia solicitar a decretação de uma GLO, informação que a checagem da agência Pública mostrou ser falsa: governadores podem, sim, solicitar a medida, que é decretada pelo presidente da República.

O episódio também gerou desinformações espalhadas por figuras públicas de outros estados brasileiros. Um vídeo do deputado estadual do Paraná Ricardo Arruda (PL) associa o governo federal à facção Comando Vermelho usando argumentos já desmentidos. 

O fenômeno da politização da tragédia se amplifica pelas redes sociais. Luciane Belin observa que o debate começou antes mesmo do pico das operações. “O volume de publicações iniciou como repercussão a uma fala do presidente Lula na Indonésia, em 24 de outubro, sobre traficantes serem vítimas dos usuários. Parte das redes já vinha associando o presidente ao tráfico de drogas, e isso se intensificou com imagens feitas com IA”, explicou. 

Contextualizando o fenômeno com a realidade do Rio de Janeiro, Caio Brasil Rocha observa que a desinformação vem sendo usada no estado de forma cada vez mais sofisticada. Segundo ele, o que antes era uma prática mais restrita, imputando apenas delitos ou desvios de moral às vítimas, hoje ganhou outro contexto.

“Não se trata só do uso da desinformação por uma figura pública ou como modo de gestão; ela também afeta a imagem de outras pessoas que não são necessariamente vítimas de questões legais, mas que fazem parte do ecossistema político brasileiro”, explica.

Belin acrescenta que a segurança pública se torna terreno fértil para disputas ideológicas, especialmente em ano pré-eleitoral, quando violência e insegurança estão entre os principais medos da população. Segundo ela, a narrativa de que a violência policial seria uma solução eficaz contra o tráfico passa sensação de resposta imediata, embora essas operações historicamente aumentem o número de mortes, muitas vezes de civis.

Desinformação e a reprodução de estigmas

Durante entrevista coletiva na quarta-feira (29), um dia após a ação nos complexos da Penha e do Alemão, Castro declarou que “tirando a vida dos policiais, o resto da operação foi um sucesso”. Já para Pablo Nunes, cientista político e diretor do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), entrevistado pelo UOL, a megaoperação contra o Comando Vermelho é sem precedentes e representa a chacina mais letal da história do Rio de Janeiro.

Segundo Luciane Belin, em contextos de crise como este, a desinformação atua como uma poderosa ferramenta de disputa narrativa, favorecendo quem investe em campanhas que propagam informações falsas.

“Nas redes sociais e aplicativos de mensagens circula um grande volume de conteúdos enganosos, muitas vezes emocionais ou alarmistas. Esse tipo de material reforça estereótipos, polariza o debate e consolida visões de mundo alinhadas a determinados posicionamentos políticos”, explica.

Fernando Frazão/Agência Brasil

Dandara de Paula acrescenta que as narrativas desinformativas são centrais na legitimação da violência policial. “São informações falsas e distorcidas que justificam a brutalidade do Estado e ações policiais que resultam na morte de centenas de pessoas. A desinformação sustenta esse tipo de ação”, afirma.

Ela ressalta que, historicamente, o fenômeno reforça estigmas raciais e sociais, construindo a imagem de pobres e negros, especialmente jovens, como violentos e perigosos.

Caio Brasil Rocha, complementa: “Hoje, a desinformação é um instrumento da gestão da segurança pública, que se sofistica ao longo do tempo para construir justificativa e dar um tom de legitimação a ações como essa.”

Caminhos para enfrentar a desinformação

Especialistas defendem que combater a desinformação exige esforço coletivo e coordenado. Segundo Dandara de Paula, é essencial criar espaços de produção e divulgação de informações confiáveis, que reconheçam e valorizem publicamente as vidas da população negra e empobrecida.

“É necessário gerar, compartilhar e debater dados sobre a violência policial e estatal, estabelecendo disputas no campo político e cultural que desafiem narrativas construídas com base na destruição simbólica e material de vidas negras e faveladas”, afirma.

Ela reforça ainda que a desinformação deve ser enfrentada pela preservação da memória e pela busca por justiça e reparação, especialmente nos casos ocorridos nos Complexos do Alemão e da Penha. Ela destaca a necessidade de contestar narrativas de “guerra às drogas” ou de “combate ao crime organizado”, que utilizam a brutalidade policial para sustentar agendas políticas que resultam na morte de pessoas negras e periféricas.

Em denúncia encaminhada à ONU e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entidades como Instituto Marielle Franco e a Coalizão Negra por Direitos destacam que a ofensiva policial desta terça-feira integra um “genocídio da população negra e periférica” e enfatizam que a propagação de informações falsas é parte das estratégias que sustentam essas ações.

De forma mais ampla, especialistas e organismos internacionais apontam que o enfrentamento da desinformação requer ações integradas envolvendo governos, plataformas digitais, sociedade civil, veículos de imprensa e a população. A Unesco, por exemplo, recomenda uma abordagem baseada em direitos humanos, incluindo regulação transparente das plataformas, educação midiática nas escolas, incentivo ao jornalismo de qualidade e fortalecimento da pesquisa sobre o tema.

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