#Panorama2023
Esta entrevista faz parte da série #Panorama2023, entrevistas sobre o contexto da desinformação pós eleições, seus impactos na sociedade e futuros possíveis para combater o problema.
Os últimos acontecimentos no cenário político e social brasileiro podem dar a impressão de que estamos em um mundo do avesso. É a partir dessa perspectiva e de fenômenos como populismo, negacionismo e pós-verdade, no âmbito da internet, que a antropóloga Letícia Cesarino propõe um olhar apurado e não dicotômico no seu recém-lançado livro ‘O Mundo do Avesso: Verdade e Política na Era Digital’ (Ubu Editora).
Em conversa com o *desinformante, a professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina destaca como a arquitetura das plataformas digitais impulsionou novas organizações dos sistemas sociais e quais as consequências desse processo para a democracia, como a emergência de um estado de exceção. Essa entrevista faz parte da série #panorama2023.
Liz Nóbrega: No seu novo livro, ‘O Mundo do Avesso’, você defende que as mídias e as novas tecnologias não devem ser vistas como atores neutros, que não interferem nas transformações sociais, mas também não devem ser vistas como a única causa desses fenômenos atuais. Como você propõe olhar para essa conjuntura atual?
Letícia Cesarino: A ideia é propor uma perspectiva alternativa para olhar o papel da tecnologia não só nos processos políticos, nos processos de produção de verdade em geral, no qual se inclui também os processos políticos, mas através de paradigmas que observam esses fenômenos em sua causalidade mais sistêmica e estrutural. Essa proposta não trabalha com essa dicotomia, que está mais no senso comum, ou seja, ou a tecnologia é um canal neutro e a fonte dos problemas é uma raiz social, política, histórica, mas tampouco ver a tecnologia como causando, por exemplo, a ascensão da extrema-direita de forma unilateral, como algumas interpretações, por exemplo, do evento da Cambridge Analytica, como se aqueles que manipulam os algoritmos tivessem um controle total sobre o usuário que está imerso naqueles ambientes. Então a ideia é trazer realmente uma perspectiva tecnopolítica, olhar a política na tecnologia também, ou seja, existem vieses técnicos embutidos no design dessas tecnologias, dessas arquiteturas algorítmicas, que nos ajudam a entender porque o fluxo do processo sociopolítico está indo numa certa direção e não em outra, ou seja, é um tipo de causalidade que olha mais para a questão das probabilidades, das abordagens e causalidades indiretas, aquelas causalidades circulares também que são bastante típicas das tecnologias cibernéticas. Diferente de outras infraestruturas técnicas, os agentes cibernéticos são máquinas que tomam decisões, e essas decisões interferem muitas vezes de forma subliminar, oculta, no direcionamento do comportamento humano também. Ou seja, a gente propõe, de certa forma, abrir a caixa preta da tecnologia para tentar inferir como ela influencia no comportamento social e humano.
Liz Nóbrega: No seu livro você também aponta para a reconstrução de novas bases a partir da crise no sistema de peritos, ou seja, no jornalismo, instituições, a própria ciência. Como você avalia os perigos desse movimento – que rompeu com estas bases de intermediação – para a democracia brasileira?
Letícia Cesarino: É um processo mais amplo que a democracia brasileira, embora eu ache que o Brasil é um caso especialmente interessante para a gente olhar esses processos em que essa infraestrutura venha a interferir na forma como a política, principalmente a política eleitoral, vem se desenrolando.
O livro olha, por um lado, a aceleração da infraestrutura técnica, direcionando processos de desintermediação que se expressam como uma crise de confiança das pessoas comuns nos intermediários que, antes, estavam no centro do sistema midiático político informacional no mundo pré-digital. Eles não deixaram de existir, eles ainda estão ali, a imprensa, a ciência, a academia, os partidos, mas têm perdido o papel de organizador do sistema para essas novas agências algoritmicamente mediadas.
A gente olha não só para a crise, mas para a reintermediação que acontece junto. Essas reintermediações dizem respeito ao que a gente pode chamar de um novo sistema de peritos ou de uma nova camada intermediária de atores, que são humanos, mas que também são não humanos, porque os algoritmos têm uma participação central nisso, no sentido de estarem reorganizando o sistema sociopolítico.
É como se a crise do sistema anterior e a resolução dessa crise estivessem acontecendo ao mesmo tempo. Por isso que a gente ainda não teve uma ruptura linear muito forte, que é o que poderia acontecer quando a desorganização é muito grande, sem essa recomposição. O mais provável é que esteja havendo de fato uma recomposição. A questão que fica é: em que sentido essa reintermediação está acontecendo? O livro também propõe um modelo, que é parcialmente preditivo, sobre como esse novo social, no sentido lato do termo social, estaria se recompondo. A aposta é os agentes centrais nesse processo são esses intermediários que fazem a mediação entre o usuário comum, ou seja, aquele que é mais influenciado do que influenciador, e o próprio ambiente algorítmico. Ou seja, esse novo social que está se formando não é uma relação direta entre o usuário comum e a agência algorítmica. Entre essas duas escalas intervém esse novo social, que segue uma lógica que no livro eu chamo de reconhecimento bifurcado, que se dá principalmente em torno do que a gente pode chamar, de forma bem ampla, de influenciadores, não só os influenciadores típicos da indústria da influência digital, mas atores, canais, enfim, organizações, que conseguem segmentar a rede dentro da qual o usuário comum vai estar recebendo seus fragmentos de verdades, digamos assim, que vão ser integrados dentro daquele ambiente e compartilhado entre todos aqueles indivíduos que compõem aquele segmento de rede.
Liz Nóbrega: Qual é a influência que você percebe dessa reintermediação nos processos políticos e na democracia, não só brasileira, mas mundial. Como esse novo sistema vai alterando os sistemas políticos?
Letícia Cesarino: Num primeiro momento essas mudanças no âmbito da política foram identificadas por boa parte da literatura como da categoria do populismo. O populismo é uma forma de construir identidade política que é mais típica de momentos de crise e reorganização. Uma multidão que recompõe sua identidade política em torno das narrativas propostas por um líder, que seria uma liderança populista típica no mundo pré-digital, e com um caráter diferente da política democrática em momentos de normalidade.
É um tipo de identidade política muito calcado nos afetos, nesse social mimético de multidão, onde as pessoas repetem o comportamento do outro e o comportamento do líder também. É um social altamente ritualizado, corporificado – mesmo na internet que tem esse caráter supostamente virtual, desincorporado, a gente vê que na verdade a política passa muito por aspectos corporais. Por isso que as multidões que a gente vê no online precisam estar periodicamente se revertendo em multidões no offline, foi muito o caso do bolsonarismo nesses quatro anos, que fez constantemente essa oscilação entre a multidão online e o offline.
Ou seja, a extrema-direita no Brasil, o bolsonarismo, mostra como o que a gente identifica como a política populista pode estar se tornando algo normalizado dentro do atual ambiente de mídia por causa da economia da atenção, do modo como o tipo de social é intermediado pelas plataformas.
Isso num primeiro momento parece disruptivo porque a democracia liberal precisa de cidadãos reflexivos, ela precisa de tempo, precisa de um espaço para debate, ela precisa que as pessoas compartilhem um mundo comum, que as pessoas confiem nas instituições político-eleitorais, por exemplo. E esses padrões do populismo digital não. Eles propõem uma outra forma de fazer política, principalmente, em torno desse código, que no livro eu chamo de código amigo-inimigo, que bifurca o campo político em dois campos, onde um é o espelho invertido do outro e aquelas pessoas que estão lá dentro não compartilham a mesma realidade porque elas já estão em redes separadas. E o que faz a realidade para a gente é a rede onde a gente está.
Isso parece que veio para ficar. A democracia daqui para frente vai ter que lidar com isso de alguma forma, mas me parece que há outras vias de reintermediação acontecendo também e não apenas essa mais disruptiva que se manifesta nas guerrilhas digitais, nos públicos conspiratórios e mais radicalizados. O próprio sistema democrático precisa compor os padrões antigos da política democrática com esses novos padrões da economia e da atenção.
Liz Nóbrega: Em relação ao processo eleitoral, você deu entrevista dizendo que a gente estava vivendo num estado de exceção e valia lógica de uma guerra da comunicação. Você acredita que essa lógica continua no pós-eleições?
Letícia Cesarino: Sim, existe uma certa camada de estado de exceção… são várias, mas uma permanente é essa das plataformas. Os mecanismos de regulação e moderação internos dessa infraestrutura são totalmente avessos, ou quase totalmente avessos à regulação pública, que seria o correto de acontecer porque essas infraestruturas estão mediando resultados eleitorais.
Me parece que existe esse estado de exceção dentro da própria infraestrutura técnica.
Em cima disso, a gente tem a atuação desses atores de extrema-direita, dos públicos conspiratórios, que intensificam ainda mais esse estado de exceção, porque eles não permitem que o sistema informacional se estabilize em consensos.
Por exemplo, um consenso que até então era elementar: quem teve mais votos ganhou a eleição, acabou, segue a vida, quem não gostou espera até a próxima eleição. Ou seja, as plataformas oferecem esse ambiente de estado de exceção para que atores mal-intencionados atuem no sentido de não permitir essa estabilização e manter vivo o estado de exceção na camada política ou político-eleitoral.
Quando essas duas coisas se juntam, a lógica política toma muito mais uma lógica da guerra, que é como a política opera em estado de exceção, do que uma lógica da política democrática que exigiria um plano de fundo mais estável, mais organizado, que é o que a gente não está tendo exatamente nesse momento.
Depois do resultado do 2º turno, o que a gente viu foi uma radicalização dessa lógica de exceção, porque ela está colocando em jogo não só o resultado eleitoral em si, não gostei de quem ganhou, discordo, mas os próprios mediadores que autorizam o resultado eleitoral, que são o Tribunal Superior Eleitoral, são as urnas, etc. E é muito preocupante quando a gente vê atores que são do sistema convencional, como um partido político, que é o Partido Liberal, fazendo esse tipo de jogo, porque o público conspiratório estremece em si, esse é o lugar natural dele, ele sempre vai fazer isso, mas é um público que precisa ser, digamos assim, colocado no seu lugar de minoria e não influenciar o resto do processo político.
Então eu acredito que nós pós-eleição essa situação vai se perpetuar, sendo alimentada por essas narrativas conspiratórias, até pelo menos a posse do novo presidente. Pode ser que depois que ele tome posse, a coisa se estabilize, acalme um pouco. E aí a gente tem essa perspectiva dos próximos quatro anos: trabalhar para que nas próximas eleições isso não ocorra novamente, é o maior desafio que a gente tem a partir do ano que vem, principalmente.
Liz Nóbrega: Qual seria uma saída possível para esse mundo do avesso? Na verdade, há uma saída para esse mundo do avesso ou a gente precisa se adaptar a ele?
Letícia Cesarino: Em um certo nível eu acho que a gente realmente tem que se adaptar, mas as mudanças são possíveis em cima dessa realidade que já está dada, ou seja, mudanças incrementais em vários níveis. Eu acho que uma delas, pela qual eu me interesso mais, que é o objetivo do livro contribuir também, seria repensar essas arquiteturas, ou seja, uma solução técnica para um tipo de social que não é exatamente natural e espontâneo, ele é um social que é tecnicamente mediado, existe um nível de artificialização no modo como a extrema-direita foi inflada nos últimos anos. Então se a causa tem um componente técnico importante, a solução também tem um componente técnico importante, ou seja, pensar outros tipos de vieses algorítmicos, no sentido de amenizar alguns desses efeitos não intencionais das plataformas. Eu não vejo muita perspectiva disso no curto prazo, o que a gente vai ter aí possivelmente são regulações secundárias, mas tudo bem, pelo menos as plataformas já estão responsivas a esses problemas, porque até relativamente pouco tempo atrás nem isso acontecia.
Uma outra frente importante no Brasil, possivelmente em outros países também, será uma regulação legal mais específica para períodos eleitorais. A mídia anterior, não digital, tem uma série de regulações para período eleitoral, as plataformas praticamente não têm. Eu acho que é uma janela temporal que é mais fácil de você atuar em termos legislativos e de controle, que não vale para qualquer situação, mas vale para situações eleitorais. E pressionar, já que hoje o dado é a autorregulação das plataformas. Até isso mudar, os agentes públicos, a própria sociedade civil, pressionar as plataformas no sentido de intensificarem o controle dessas agências mais disruptivas, os extremistas conspiratórios. É claro que pelo seu próprio modelo é impossível elas acabarem com esse problema, mas ainda assim elas estão muito aquém do que elas poderiam estar fazendo no sentido de um mínimo de controle, um mínimo de imposição de regras para esses agentes, que até relativamente pouco tempo praticamente faziam o que queriam. Conseguem se camuflar muito facilmente, conseguem evadir a moderação que existe muito facilmente, então as plataformas podem agir mais.
Um terceiro elemento frente que eu colocaria é a ocupação desse ambiente de mídia por outras forças políticas que não a extrema-direita. Eu diria que principalmente nas camadas intermediárias, que são essas camadas que fazem uma ponte entre o público mais radicalizado, mais subterrâneo, que está nos aplicativos de mensagens, por exemplo. É muito difícil mexer pela própria característica desse tipo de plataforma, mas existe, principalmente no Youtube, um canal intermediário que permite que essa extrema-direita faça um recrutamento de adesão a partir de um público mais convencional. E nessa camada intermediária, que não seria exatamente uma lógica jornalística, mas uma lógica da indústria da influência da internet mesmo, a esquerda, o campo progressista, o campo democrático ainda está muito aquém do que poderia estar na ocupação dessas posições, na ocupação desse território, do que a direita, a extrema-direita. Esse é o ponto estratégico mais urgente que eu diria hoje: a ocupação dessa camada intermediária.